Artigo de Jorge Martín
Na segunda-feira de manhã, enquanto tomava o pequeno-almoço, ocorreu-me verificar o que a imprensa espanhola dizia sobre a vitória do Barça na Supertaça. Quase me engasguei com a geleia de abrunhos quando um editorial estridente do El País saltou do ecrã. “A Europa tem de reagir“, gritava a manchete, quase histericamente. Alarmado, comecei a ler a opinião deste porta-voz autorizado da classe dominante espanhola. De onde veio este pânico e qual foi a resposta que o El País exigiu?
O argumento central do editorial é que “a Europa enfrenta uma ofensiva política liderada por Elon Musk“. Os magnatas das empresas tecnológicas, alerta El País, “usam as suas plataformas para influenciar a política europeia, espalhar desinformação e promover a agenda da extrema-direita“. A ameaça é grave, segundo o jornal, uma vez que “o tecnopopulismo põe em risco a própria democracia”. Parece ameaçador, não é?
Comecemos pelo início. Não há dúvida de que Elon Musk lançou uma ofensiva política na Europa, atacando, por sua vez, Starmer, Scholz e Macron. Ele também usou a plataforma fornecida pela rede social de que é proprietário, X, para promover demagogos reacionários como Farage, na Grã-Bretanha, e a AfD, na Alemanha.
No entanto, pode-se pensar que essas atividades estão dentro dos limites do liberalismo burguês e da liberdade de expressão que supostamente é um de seus pilares. Parece que não. El País exige “uma reação mais forte da UE para salvaguardar a sua soberania digital” para “acabar com a desinformação e proteger os cidadãos da União“. Por outras palavras, a UE deve proteger-se de opiniões de que não gosta através de leis que permitam a censura… em nome da democracia e da liberdade de expressão!
Qual é a objeção aqui? Que Musk tem muito dinheiro? El País lembra que ele é “o homem mais rico do mundo“. Mas toda a média não é controlada pelos super-ricos? O El País, para dar um exemplo, é propriedade do grupo PRISA. O grupo PRISA é um dos maiores grupos de media espanhóis, controlando jornais como El País, AS, Cinco Días, El HuffPost, além de ser líder em radiodifusão na Espanha (Cadena SER, Los 40), na Colômbia (Caracol, W Radio) e Chile (ADN), além de estar presente em outros dez países. A Prisa é também proprietária da editora educativa Santillana, presente em 20 países. X é, naturalmente, uma das maiores redes sociais do mundo, mas o El País não é propriamente um jornal local numa pequena cidade.
E quem controla o grupo PRISA? O principal acionista da PRISA, com quase 30% das ações, é o fundo de investimento Amber Capital, de propriedade do bilionário Joseph Oughourlian, que também é dono de vários clubes de futebol. O segundo maior acionista da PRISA é o grupo empresarial francês Vivendi, com 11% das ações.
Escavando um pouco a superfície, o que descobrimos é que, sob o capitalismo, todos os grandes grupos de média, sejam eles “tradicionais” (rádio, TV, jornais), ou redes sociais (Meta, X, Telegram, etc.), são de propriedade de grandes empresas capitalistas ou bilionários. Em conjunto, têm um controlo quase total sobre o acesso à informação por parte dos cidadãos comuns. Cada um destes grupos tem um determinado ponto de vista político, incluindo o El País. Todos defendem o sistema capitalista, mas cada um com a sua inclinação política. A este respeito, Elon Musk e sua plataforma X não são diferentes de outras empresas de média.
Mas talvez o que realmente incomode o El País é que esses bilionários “tecnopopulistas” espalham desinformação? Quem vive em casas de vidro não deve atirar pedras. Todos os meios de comunicação burgueses participam na disseminação de desinformação, e o jornal El País não é exceção. Os meios de comunicação capitalistas em todo o lado mentem sobre as verdadeiras razões da guerra na Ucrânia e sobre o que está realmente a acontecer em Gaza. Justificou a invasão do Iraque, o bombardeamento da Sérvia, etc.
O El País mente deliberadamente sobre a Venezuela há mais de 20 anos. Não só tem um ponto de vista político em relação à Venezuela – que, em última análise, reflete os interesses das multinacionais espanholas –, mas ainda mente descaradamente para manipular a opinião pública a favor desse ponto de vista, um ponto de vista imperialista espanhol.
Para dar apenas um exemplo, em 2019, quando Guaidó tentou proclamar-se presidente da Venezuela sem ter sido eleito, o El País afirmou no seu editorial que “o regime expôs a sua face mais miserável ao queimar alguns camiões carregados de medicamentos e alimentos” a propósito de um incidente na fronteira com a Colômbia. Isso revelou-se ser completamente falso. Mais tarde, após o mal ter sido feito, o El País viu-se obrigado a publicar uma pequena errata em que reconhecia que “estes acontecimentos nunca ocorreram“. Este é um exemplo exemplar de desinformação, e pelo El País, nada menos.
Então, o que é que o El País está a protestar? Talvez seja o facto de estes bilionários norte-americanos terem lançado “uma ofensiva política” contra a Europa. Como se atrevem a interferir na política de outro país! Ah, mas acontece que os milionários donos do El País fizeram precisamente a mesma coisa, ou seja, lançaram uma ofensiva política contra Trump nos EUA. Basta ler os editoriais do El País para perceber que o jornal fez campanha ativa contra Trump durante as eleições norte-americanas, apresentando a sua possível vitória nos termos mais apocalípticos possíveis e defendendo uma vitória de Harris como a única forma de “salvar o sistema“.
Assim, é o cúmulo da hipocrisia por parte do El País queixar-se de que Musk recorre à desinformação, e que interfere nos assuntos europeus, quando este mesmo jornal é culpado do mesmo.
A situação real da liberdade de imprensa sob o capitalismo foi muito bem resumida por Lenin há mais de 100 anos:
“A publicação de um jornal é um grande e lucrativo empreendimento capitalista no qual os ricos investem milhões e milhões de rublos. ‘ Liberdade de imprensa na sociedade burguesa significa liberdade para os ricos sistematicamente, incessantemente, diariamente, em milhões de cópias, enganar, corromper e enganar a massa explorada e oprimida do povo, os pobres. “Esta é a verdade simples, geralmente conhecida, óbvia que todos vêem e percebem, mas que ‘quase todos’ ‘timidamente’ passam em silêncio, timidamente escapam.” (‘Sobre a liberdade de imprensa‘ de Como garantir o sucesso da Assembleia Constituinte, 28 de setembro de 1917)
E mais tarde, num decreto do governo soviético, acrescentou:
“Para a burguesia, a liberdade de imprensa significava liberdade para os ricos publicarem e para os capitalistas controlarem os jornais, uma prática que em todos os países, inclusive nos mais livres, produziu uma imprensa corrupta.” (Projeto de Resolução sobre a Liberdade de Imprensa, 4 de novembro de 1917)
O editorial do El País contém também um apelo patético e impotente à burguesia europeia para “promover o crescimento das empresas locais e dar prioridade ao uso das tecnologias europeias“. Na realidade, no atual panorama internacional, a Europa representa um conjunto de potências imperialistas de segunda categoria e em declínio, com interesses díspares, que se assustam porque Trump ameaça retirar a proteção que o imperialismo norte-americano tradicionalmente lhes proporcionou sob a égide da NATO. E não há muito que possam fazer em resposta, apesar dos apelos alarmistas do El País.
Perante a indignação dos “magnatas tecnopopulistas” que atacam a Europa, o principal jornal do progressismo e da democracia em Espanha exige que a UE “aplique medidas severas contra plataformas que violam as regras comunitárias“. Ou seja, em nome da defesa da democracia e da liberdade de expressão… exige a censura das opiniões que considera “perigosas”.
Este é um assunto muito sério. Sejamos claros. Quaisquer regulamentos que os Estados capitalistas criem com a desculpa de combater a desinformação ou o extremismo, que usam hoje para supostamente combater a extrema-direita, serão também usados amanhã para combater opiniões que consideram perigosas por aqueles de nós que se opõem ao sistema capitalista. Você não precisa procurar muito para confirmar isso. Medidas deste tipo já foram utilizadas em Espanha e para além das suas fronteiras para reprimir a liberdade de expressão.
Basta ver um dos exemplos que o El País dá do tipo de medidas que exige: a Roménia. Ali, a vitória de um candidato antissistema (um demagogo reacionário) na primeira volta das eleições presidenciais levou a um uivo de protestos por parte da UE e, finalmente, ao cancelamento das referidas eleições pelo Tribunal Constitucional, com a desculpa de que a “interferência estrangeira” tinha ocorrido através de uma campanha no TikTok.
Assim, em nome de uma ameaça “à própria democracia“, El País exige que a Europa “abandone a passividade” e “adote medidas severas“, como… o cancelamento das eleições se o candidato favorito do jornal progressista por excelência não ganhar. É aqui que reside a essência da “progressividade” do El País.
Sejamos claros. Trump e Musk são reacionários totalmente contrários aos interesses da classe trabalhadora. Mas isso não os torna de forma alguma piores do que Biden, Harris e Starmer, que representam os interesses do establishment imperialista e capitalista que arma, financia e apoia o massacre de palestinianos em Gaza pelo Estado sionista de Israel. Ah, sim, mas fazem-no cobrindo-se cinicamente com a tanga da inclusão, da diversidade e da equidade.
A desinformação e a manipulação grassam nas redes sociais. Nisso, as redes sociais não são muito diferentes da “respeitável” média burguesa – aquela que nos vendeu a história de que Saddam Hussein possuía “armas de destruição em massa”, aquela que levantou um coro de protestos hipócritas contra a violação das fronteiras soberanas da Ucrânia enquanto justificava a invasão do Líbano por Israel como “legítima defesa”.
Não, na realidade todos os meios de comunicação social mentem e manipulam, por vezes abertamente, outras vezes sorrateiramente ou disfarçadamente, com o objetivo de defender os interesses dos seus proprietários capitalistas.
É por isso que a classe trabalhadora precisa de seus próprios meios de comunicação. É por isso que os comunistas revolucionários devem ter os seus próprios jornais e publicações, cuja independência política é garantida porque são financiados apenas pelas contribuições dos seus leitores e simpatizantes.
A verdadeira liberdade de imprensa e a liberdade de expressão só serão garantidas quando a classe trabalhadora tomar o poder e expropriar os meios de comunicação social para os colocar ao serviço da maioria. Como explicava o programa do Partido Comunista Russo em 1919, após a tomada do poder:
“A democracia burguesa limitou-se à extensão formal dos direitos e liberdades políticas, como o direito de reunião, o direito de associação e a liberdade de imprensa, a todos os cidadãos. Mas, na realidade, a prática administrativa e, sobretudo, a escravização económica dos trabalhadores sob a democracia burguesa, sempre impossibilitaram os trabalhadores de fazerem um amplo uso desses direitos e liberdades.
“Pelo contrário, a democracia proletária, em vez de reivindicar formalmente direitos e liberdades, na verdade os concede primordial e principalmente às classes da população que foram oprimidas pelo capitalismo, ou seja, o proletariado e o campesinato. Para isso, o governo soviético expropria a burguesia de edifícios, tipografias, papelarias, etc., e coloca-a à inteira disposição dos trabalhadores e das suas organizações.
“A tarefa do Partido Comunista da União Soviética é atrair massas cada vez maiores da população trabalhadora para o gozo dos direitos e liberdades democráticas e ampliar as possibilidades materiais para isso.” (programa de 1919 do Partido Comunista Russo)
Aqui só teríamos que acrescentar às “prensas de impressão e armazéns de papel”, servidores e redes sociais. A verdadeira liberdade de imprensa e a liberdade de expressão só podem ser garantidas através da abolição do regime de propriedade privada. Enquanto isso, é nosso dever desmascarar a repugnante hipocrisia de progressistas e liberais que uivam a favor da censura e da suspensão das eleições… tudo em nome da “defesa da democracia”.