Reflexões sobre o programa eleitoral do Bloco de Esquerda 

É pública a nossa posição sobre as eleições, mas os votos que fazemos pelo reforço da esquerda não apaga as diferenças que temos quer com o PCP, quer com o Bloco de Esquerda. Segue-se uma reflexão crítica ao programa eleitoral apresentado pelo BE.  

Um programa que ignora a profunda crise do capitalismo 

Com efeito, a crise do capitalismo está ausente do programa eleitoral do Bloco de Esquerda. Tanto na avaliação da situação em que se encontra o país como nas propostas que são apresentadas, o período de crise sistémica que vive o capitalismo é olimpicamente ignorado: nem um parágrafo lhe é dedicado, nem sequer uma linha. 

Isto não é uma causalidade, mas resultado das perspetivas reformistas da direção do Bloco de Esquerda, pois se não há relação entre a crise social do país e a evolução do capitalismo mundial, então, todos os problemas que enfrentam a juventude e a classe trabalhadora poderão ser resolvidos mediante escolhas “inteligentes” e “moralmente justas” feitas por um governo que em Portugal, mesmo com a sua economia atrasada, periférica e dependente, decida “fazer o que nunca foi feito”. Quão longe estamos até do documento fundador do Bloco de Esquerda, quando em 1999 em Começar de Novo se proclamava que “a globalização não pôs fim às crises que atravessaram o século XX. Pelo contrário, mundializa-as“!  

Os limites dum governo nacional 

Tomemos, por exemplo, a questão da crise climática. Para nós, comunistas, é impossível de travar as alterações climáticas e a degradação ambiental no quadro do capitalismo e do Estado nacional. Enquanto as alavancas económicas estiverem nas mãos e ao serviço duma minoria, enquanto subsistir a concorrência entre grandes grupos económicos e as rivalidades entre os vários Estados e os blocos geopolíticos, não será possível a definição, coordenação e implementação duma política global de combate às alterações climáticas.  

Veja-se o espetáculo degradante das Conferências das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas: ou os países participantes não são capazes de chegar a acordos, ou quando os alcançam no papel, tratam de violá-los em seguida, não porque os capitalistas sejam maus ou “negacionistas”, mas porque poluir lhes é (mais) lucrativo. Assim, ao ignorar a natureza predadora do capitalismo e perante o sacrifício das metas climáticas no altar do lucro, tudo o que resta ao Bloco são piedosas intenções, como “abandonar o comércio de carbono, impondo limites imperativos para os países, para cada setor de atividade e para as empresas poluentes(será na COP29?) ou no plano internacional, defender o financiamento às políticas de adaptação e às perdas e danos(pags 70 e 71) E por que não pedir ao tigre que se torne vegetariano? 

À escala de um só país e no quadro das relações capitalistas, a transição verde só poderá ser feita através da subsidiação permanente das empresas privadas (que por via dos impostos e regulações se tornam menos competitivas no mercado mundial), do recurso ao protecionismo económico e da faturação dos seus custos aos consumidores, isto é: à população trabalhadora. 

Derrubar os capitalistas ou chegar a um acordo com eles? 

Nas 275 páginas do programa eleitoral do Bloco de Esquerda não faltam medidas que, se fossem aplicadas, teriam um importante impacto na vida da classe trabalhadora. A questão é saber se, nesta fase do capitalismo, é possível avançar com o clássico programa reformista da social-democracia? Nós dizemos que não, mas não somos apenas nós: são os próprios capitalistas que o dizem e assim o têm agido em conformidade ao passaram as últimas décadas a cortar e restringir todas as conquistas sociais que a classe trabalhadora alcançou após a segunda guerra mundial. 

De qualquer modo, em nome do rigor e seriedade, a direção do Bloco não se limitou a elencar medidas, quis também fazer contas: “como financiar a criação de emprego, o aumento do investimento e a reconversão energética” (pag.101)?  

A reposta dada, basicamente, diz que será através da restruturação e renegociação da dívida pública. Para lá de certas engenharias como o uso da “almofada financeira” do Instituto de Gestão do Crédito Público para comprar dívida e reduzir o nível de endividamento (como se Medina não tivesse recorrido já a esse ardil…), a a grande aposta passa pela renegociação da dívida atual e pela futura compra de dívida pelo Banco Central Europeu. Mas porque haveria o BCE de fazê-lo?  

É impossível que a direção do Bloco não saiba que as intenções do BCE… são exatamente opostas àquelas que são as suas propostas! A espiral inflacionária dos últimos anos e o aumento dos níveis de endividamento de grandes países (como Itália ou França) tornam absolutamente utópicas as expetativas do Bloco em relação a qualquer mirífica reestruturação ou renegociação significativas da dívida pública portuguesa.  

Aliás, faria bem à direção do Bloco recordar o exemplo grego e de como o governo do Syriza foi esmagado pelas instituições e poderes da União Europeia quando tentou com eles negociar… E pode o Bloco de Esquerda escrever grandiloquentes declarações sobre “a insubmissão à União Europeia dos tratados e das regras do euro”(pag 241), pois a não ser que o Bloco esteja disposto a mobilizar a classe trabalhadora em Portugal para derrubar o capitalismo, tudo não passam de ingénuas declarações ou, na pior hipótese, de ilusões conscientemente semeadas sobre a possibilidade de reformar a União Europeia por dentro, como, de facto, propõe (pag 272). 

E na verdade, o Bloco não está disposto a derrubar o capitalismo, apenas pretende aplicar o clássico programa da social-democracia (como explicou Catarina Martins) de intervenção e regulação do Estado, obtendo o controlo acionista” da Galp, a EDP e a REN (pag117) garantir o controlo público dos CTT” (pag 121) ou nacionalizar a ANA, até porque o programa nos explica como “na União Europeia, para além de Portugal, apenas Chipre, Hungria e Eslovénia tinham todos os seus aeroportos concessionados a entidades privadas” (pag 122).  

Neste programa não é explícito como seria obtido o “controlo acionista”, embora em anteriores eleições tivesse o Bloco afirmado que “o programa de reversão das privatizações será adequado às condições de cada empresa, negociado com os acionistas no âmbito de um quadro legal adequado, financiado pela emissão de dívida pública e estendido ao longo do tempo necessário para minimizar os riscos e efeitos.” Não bastando todos os proveitos já obtidos através de empresas que foram vendidas a preço de saldo e que nunca deveriam ter saído da esfera do estado, ainda se propõe o Bloco… ressarcir os seus grandes acionistas, aumentando para isso a dívida pública! 

O mesmo em relação aos “instrumentos de reforço da propriedade e intervenção públicas no sistema bancário”. A timidez de propostas é de tal ordem que se resumem a transformar dívida bancária ao Fundo de Resolução em ações do Estado ou reclamar “poderes soberanos sobre decisões relativas à intervenção de bancos em situação financeira insustentável” (pag 127)… Quer a direção do Bloco derrubar o capitalismo… ou salvá-lo? 

Lá fora como cá dentro… ou cá dentro como lá fora? 

A política externa dum país representa sempre os interesses da sua classe dominante. No que diz respeito às propostas do Bloco nesta área, a natureza do seu ecletismo, uma vez mais denuncia a recusa da direção do Bloco desafiar (que é diferente de conciliar…) os interesses da classe dominante. 

Isso é já é bem visível nas propostas que faz o âmbito da União Europeia, onde se reclama uma mais justa redistribuição do esforço fiscal entre as classes e melhor alocação de fundos comunitários entre os países (pag.272-273). Mas torna-se particularmente chocante quando chegamos à questão da Ucrânia: o mesmo BE que acusa o PS de “submissão – aos senhores do poder e da guerra”… não é o mesmo BE que nos últimos dois anos defendeu as sanções à Rússia e o envio de armas para a Ucrânia , corroborando a estratégia de expansão da NATO e o armamento do seu proxy, ao mesmo tempo que exige a sua dissolução?!? Julgará a direção do Bloco que, por defender agora “negociações de paz” (pag 273) para resolver a guerra… a guerra se resolve? Que os interesses contraditórios do imperialismo americano (e europeu) em choque com os interesses do imperialismo russo se conseguem harmonizar pela diplomacia dialogante de hipotéticas negociações?  

O mundo não funciona como os dirigentes do Bloco gostariam que funcionasse. E, infelizmente, vemos como os elementos essenciais do programa e da estratégia do Bloco se fundam não na confrontação, mas na negociação: negociação com o PS de Pedro Nuno Santos, negociação com com os acionistas das (poucas) empresas a nacionalizar, negociação com a União Europeia da Ursula Von der Leyen, negociação até com Vladimir Putin e Joe Biden!  

Os jovens e os trabalhadores deste país não precisam de dirigentes dispostos à negociação de paliativos que, à primeira crise séria, se evaporam, como se viu com a experiência do governo da Geringonça e pelo qual tão penalizado foi o Bloco de Esquerda. Para quê, então, insistir nesse caminho? Do que nós precisamos é de uma mudança radical e de uma organização comunista revolucionária que queira lutar por essa revolução. 

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