O XXII congresso do PCP: é preciso mudar de rumo!

Em dezembro, o Partido Comunista Português (PCP) irá se reunir no seu XXII congresso. Passaram quatro anos do seu último congresso, e que quatro anos! Uma pandemia que se cobrou milhares de vidas e paralisou a economia mundial, uma crise inflacionária sem precedentes, o acirramento das tensões geopolíticas, uma grande guerra na Europa e uma guerra regional no Médio Oriente, o ascenso e queda de governos à esquerda e à direita, e grandes lutas e movimentos de massas.

Em Portugal, passamos de um governo em minoria do PS apoiado pelo PCP e o BE, ao chumbo do orçamento de 2021, à vitória de Antónia Costa nas eleições de 2022, formando-se um governo que, apesar da sua maioria absoluta, era tão frágil que caiu após um ano, preparando o terreno para a vitória do PSD no início deste ano. Foram anos também de grandes lutas, mobilizações e greves, com uma grave crise do custo de vida e da habitação como pano de fundo. Para o PCP, foram anos difíceis, com uma mudança no seu secretário-geral derrotas e retrocessos em todos os âmbitos: o eleitoral, mas também na sua militância e enraizamento social.

É fundamental tirar todas as conclusões sobre estes anos e preparar-se para o próximo período, que será ainda mais convulso do que o anterior. Infelizmente, as teses apresentadas ao congresso pela direção do PCP ficam, na nossa opinião, aquém das necessidades do momento. Longe de preparar a militância para a próxima etapa na luta de classes, a confundem e desmoralizam.

Luta de classes, por onde andas?

A primeira parte do documento debruça-se sobre a situação internacional. As teses são bastante detalhadas, examinando o estado da economia mundial, a evolução técnica do capitalismo, a crise ecológica, e, sobretudo, as relações entre as grandes potências. A situação mundial está marcada, diz corretamente o documento, “pela crise estrutural do capitalismo e pela ofensiva exploradora e agressiva do imperialismo”.

Porém, há um grande ausente nesta análise: a luta de classes. Ora, as perspetivas internacionais das organizações comunistas não são estudos acadêmicos sobre relações internacionais, mas uma bússola que deve identificar as tendências gerais na luta de classes e na consciência das massas, com o objetivo de orientar a militância do partido.

As teses não dedicam uma só palavra sobre as inúmeras mobilizações, estalos e revoltas que têm abalado inúmeros países nos últimos anos: a rebelião contra o racismo e a violência policial nos EUA no verão de 2020 após o assassinato de George Floyd, que foram as maiores mobilizações na história do país; o “estallido” na Colômbia contra o governo reacionário de Iván Duque em 2021; a revolta no Kazakhstão em 2022; a resistência massiva contra o golpe de Estado no Perú em 2022; o derrube do regime Rajapaksa no Sri Lanka em 2022; a luta de massas contra a reforma das pensões em França em 2023; a onda de greves sem precedentes na Inglaterra e nos EUA em 2023 (neste último caso, as greves aumentaram por 280%); os protestos históricos contra o genocídio na Palestina em todo o mundo Ocidental, destacando-se as ocupações de universidades nos EUA; a insurreição no Quénia neste ano e a revolução no Bangladesh que derrubou o regime de Sheikh Hasina, só por mencionar alguns casos. No plano político, temos presenciado violentas oscilações à direita mas também à esquerda, numa situação marcada por uma instabilidade aguda e pela incapacidade da burguesia de atingir um equilíbrio. Governos reformistas de esquerda têm chegado a o poder no Perú (tendo sido depois derrubado num golpe), na Colômbia ou no Sri Lanka, enquanto em França a esquerda obteve resultados históricos nas legislativas deste ano. Certamente, estas forças reformistas de esquerda não têm soluções reais aos problemas, mas o seu ascenso é sintomático da radicalização das massas e da procura de uma mudança. A crise do sistema está empurrando as massas à procura de soluções radicais e, não as encontrando, acontecem guinadas e reviravoltas políticas bruscas. O que falta em toda a parte é o fator subjetivo: um partido revolucionário de massas armado com um programa socialista.

Ignorando todas estas questões, o documento do PCP é, de facto, extremamente pessimista. Para os dirigentes do partido, a situação mundial é caraterizada pela “intensa ofensiva” do “grande capital” contra “os valores democráticos e humanistas, o pensamento crítico e o direito à informação, e pela promoção do individualismo, da mentira, do obscurantismo, da xenofobia e do racismo, do chauvinismo, da guerra, do ódio, do anticomunismo e do revisionismo histórico”. Os dirigentes do PCP até falam do ressurgimento do “fascismo”. Ora, não podemos confundir o ascenso de partidos de extrema-direita reacionários, que quase sempre aproveitam o falhanço de governos reformistas de esquerda, e cujo atrativo se dissipa logo depois de terem tomado o poder (como aconteceu no Brasil com Bolsonaro e como está a acontecer na Argentina com Milei), com o fascismo, que é um movimento contra-revolucionário de massas, apoiado na pequena burguesia enlouquecida pela crise, que visa esmagar a classe trabalhadora e impor uma ditadura férrea.

Segundo o PCP, o principal travão desta ofensiva do “grande capital”, do “imperialismo” e até “do fascismo” não é a luta da classe trabalhadora, mas “a resistência de diversos países que optam pela normalização das relações internacionais no respeito pelos princípios da Carta das Nações Unidas e do direito internacional”. Não só espalha o PCP ilusões perigosas nos intuitos de países como a China ou a Rússia, mas mostra também o seu desprezo pela luta de classes como fator decisivo na situação mundial.

“Rearrumação de forças” ou conflitos inter-imperialistas?

Para o PCP, está em curso, uma “rearrumação de forças” internacional”, que tem “como traços fundamentais o declínio relativo dos EUA e das restantes potências imperialistas reunidas no G7 e os avanços econômicos, sociais e científico-técnicos alcançados pela China e a sua afirmação no plano internacional”. O ascenso da China, a criação de blocos independentes de Washington como os BRICS e a promoção de alternativas ao dólar são definidas como “uma tendência positiva na evolução da situação internacional que o imperialismo procura contrariar a todo o custo”. Dir-se-ia lendo estas teses que as únicas potências imperialistas são os EUA e os seus aliados mais próximos. Sem dúvida, os EUA são a potência imperialista mais poderosa no mundo e, por este motivo, são também a mais reacionária. Mas isso não esgota a questão.

Convém aqui relembrar a conceção de Lenine do imperialismo, que os dirigentes do PCP parecem ter esquecido. O imperialismo não se limita a uma política exterior agressiva, mas é sobretudo um fenómeno económico. As cinco caraterísticas básicas do imperialismo segundo Lenine são:

  1. Concentração monopolista
  2. Fusão do capital bancário e industrial, criando-se uma oligarquia financeira
  3. Exportação de capitais
  4. Associação transnacional de capitalistas
  5. A partilha do mundo

Pode alguém negar a concentração monopolista, o domínio da alta finança, a exportação de capitais, as associações transnacionais ou a gula por novos mercados por parte do capitalismo russo ou chinês? Alguns argumentam que a China, sendo governada pelo Partido Comunista Chinês, não é um país capitalista. Mas como pode sobreviver esse argumento diante da realidade de décadas de privatizações, investimento estrangeiro e a criação e ascensão duma classe capitalista e dum sector privado que representa 60% do PIB da China, 60% do investimento realizado, 80 % do tecido empresarial e 80% da criação de novos empregos? E o que é que podemos dizer sobre a Rússia, onde o capitalismo foi restaurado há mais de trinta anos, ou sobre a Índia? Que alívio supõe para um operário explorado na China, na Índia ou na Rússia que os a “sua” burguesia se oponha ao dólar?

O que estamos a presenciar no plano internacional é, de facto, a luta inter-imperialista pelo controlo de um mercado mundial minguante, minado pela crise e saturado pela sobreprodução. Esta luta não tem nada de progressista. Pelo contrário, é um sintoma do declínio senil do capitalismo, nomeadamente da sua forma básica de organização política, o Estado-nacional, que já não pode conter as enormes forças produtivas e que se tem de lançar à conquista e à pilhagem de novos mercados, com um custo terrível para a humanidade em termos de proteccionismo, guerras, etc.

Partindo de premissas falsas, o PCP tira conclusões erradas. Dizem as teses:

Perante os enormes perigos para a Humanidade que representam a corrida aos armamentos, a escalada de conflitos, as acções de desestabilização e ingerência a intensificação da política de sanções e bloqueios, as permanentes tentativas de instrumentalização ou de ataque à Organização das Nações Unidas e o crescente desrespeito pelo direito internacional- substituído por uma dita “ordem mundial baseada em regras” determinada pelo imperialismo -, reveste-se de particular importância a luta pela paz, pelo desarmamento, pela defesa dos princípios da Carta das Nações Unidas, contra as agressões da NATO, pela dissolução deste bloco político militar e pela criação de um sistema de segurança colectiva.”

Ignorando que o imperialismo, com as guerras que dele decorrem, representa a fase superior do capitalismo, o PCP cai no pântano do pacifismo pequeno-burguês, que agita por uma “paz” abstrata e sustentada no “direito internacional” e nas Nações Unidas (ou seja, nas diferentes combinações e regras marcadas pelos próprios imperialistas só para serem depois violadas). Mas as guerras e tensões não são caprichos de Washington, mas emanam das contradições do capitalismo. Só lutando pelo seu derrube podemos lutar genuinamente pela paz. Como disse Lenine:

O fim das guerras, a paz entre as nações, a cessação da pilhagem e da violência – tal é o nosso ideal, mas somente os sofistas burgueses podem seduzir as massas com esse ideal, se este último estiver divorciado de um chamado direto e imediato para a ação revolucionária.”

E ainda com maior contundência, nos seus termos de admissão a Internacional Comunista:

Os Partidos que desejam filiar-se à Internacional Comunista devem denunciar não somente o social-patriotismo aberto como também a falsidade e a hipocrisia do social-pacifismo, demonstrando sistematicamente aos trabalhadores que, sem o derrube revolucionário do capitalismo, nenhuma corte internacional de arbitragem, nenhum tratado de redução de armamentos e nenhuma reorganização ‘democrática’ da Liga das Nações [predecessora das Nações Unidas] livrará a humanidade de novas guerras imperialistas.”

A única luta coerente pela paz hoje é a luta pela revolução socialista mundial, uma luta que o PCP tem trocado por apelos ocos ao direito internacional, às Nações Unidas e a uma paz abstrata.

“Patriotismo de esquerda” ou internacionalismo proletário?

O internacionalismo comunista não é uma questão folclórica, mas parte da constatação que a economia de todos os países está estreitamente interligada, com uma divisão do trabalho mundial, e que as forças produtivas que o proletariado está chamado a herdar têm um caráter internacional. O imperialismo, de facto, como explica Lenine, é um reflexo do caráter reacionário do Estado-nacional, que há tempos se tornou demasiado estreito para as colossais forças produtivas criadas pela humanidade, obstaculizando o seu desenvolvimento. Nós comunistas opomo-nos aos manejos dos imperialistas e defendemos a autodeterminação dos povos oprimidos pelo seu jugo. Porém, a solução que damos ao pesadelo imperialista não é um regresso a uma impossível autarquia nacional, mas a revolução socialista em todo o mundo é a união harmoniosa da economia mundial através da planificação democrática.

A “política patriótica que inscreve a soberania e independência nacionais como objectivo central” e que coloca “o marco nacional como campo determinante de luta e a afirmação e exercício da soberania nacional como condição para a defesa e conquista de direitos” é, portanto, impossível e reacionária, pois procura reforçar o Estado-nacional que representa um entrave ao desenvolvimento das forças produtivas. Este patriotismo deseduca a classe trabalhadora sobre a sua missão internacional. Ainda pior, tolda o antagonismo entre a burguesia portuguesa e o proletariado português. O nosso principal inimigo está na nossa casa e tem nomes e apelidos portugueses: são os grandes capitalistas de Portugal.

O abandono do PCP do internacionalismo exprime-se também na sua visão do movimento comunista internacional. As teses criticam os “métodos de actuação que não respeitam princípios de relacionamento comprovados, como igualdade de direitos, respeito pelas diferenças, autonomia de decisão, não ingerência nos assuntos internos, franqueza e solidariedade recíprocas”. Mas este “federalismo” não tem nada a ver com a política comunista. Para os dirigentes do PCP, o centralismo democrático acaba no Minho e no Guadiana. Vejamos como colocava Lenine a questão:

O nacionalismo pequeno-burguês chama internacionalismo ao simples reconhecimento da igualdade de direitos das nações, conservando (sem falar já do carácter puramente verbal de tal reconhecimento) intacto o egoísmo nacional, enquanto o internacionalismo proletário exige, primeiro, a subordinação dos interesses da luta proletária num país aos interesses dessa luta à escala mundial; segundo, exige que a nação que alcançou a vitória sobre a burguesia seja capaz e esteja disposta a fazer os maiores sacrifícios nacionais com vista ao derrubamento do capital internacional. Assim, nos Estados já completamente capitalistas, que têm partidos operários que são verdadeiramente a vanguarda do proletariado, a luta contra as deturpações oportunistas e pacifistas pequeno-burguesas do conceito e da política do internacionalismo é a primeira e principal tarefa.”

Nada a ver com a visão estreita e provincial dos dirigentes do PCP.

“Política de direita” ou crise do capitalismo?

A visão do PCP da política nacional é igualmente pessimista. Segundo as teses, o governo do país caiu nas garras da “política de direita”, que está a impulsionar um “processo contra-revolucionário” promovido pelos “grupos econômicos” e pelo “capital monopolista”. Esta situação está relacionada à crise política de 2022 e ao falhanço da “geringonça”.


O PCP faz um balanço bastante positivo da sua colaboração com os governos minoritários do Partido Socialista após 2015, sobretudo no período 2015-2019, “um período que mostrou que foi possível com a luta dos trabalhadores e a intervenção do PCP impedir a concretização de projectos negativos em curso, responder a problemas mais urgentes, alcançar avanços”. Contudo, a partir de 2021 o PS tornou-se contra os seus aliados, desejando dar uma guinada à direita, numa operação “sustentada numa indisfarçável ambição de poder”, criando uma crise política da que saiu com uma maioria absoluta que lhe permitiu aplicar uma “política de direita”, logo continuada pelo PSD. Os dirigentes do PCP não fazem, portanto, uma verdadeira autocrítica sobre os anos 2015-2021, colocando o ónus da responsabilidade pelo triste desfecho daquela experiência no PS.

A “política de direita” de Costa e Montenegro é “de ataque aos direitos dos trabalhadores, de agravamento da exploração, de entrega dos serviços públicos aos negócios privados, de privatizações, de privilégios aos grupos económicos”. Fala-se também da “imposição do neoliberalismo e do pensamento único que o acompanha”. Toda esta terminologia indica que a crise que estamos a viver não é a consequência inevitável do sistema capitalista e das suas leis objetivas, mas que é fruto das escolhas ideológicas dos governos. O âmago reformista desta argumentação resulta evidente: é possível um outro capitalismo, que não seja “de direita”, que não seja “neoliberal”, do mesmo jeito que é possível uma burguesia “não monopolista”. E não é nenhum segredo que o PCP luta mesmo por esse capitalismo “progressista”. Segundo as teses, o PCP deve aspirar a “uma economia mista com um forte sector público”. Embora fale no socialismo como horizonte final, o PCP reafirma que o seu objetivo imediato é a “democracia avançada”, objetivo pelo qual a classe operária pode, e deve, aliar-se com “com outras classes e camadas sociais antimonopolistas”. As teses até ironizam sobre aqueles que apontam para a “tomada do poder pela classe operária como tarefa universal imediata”.

O almejo de um capitalismo progressista é contradito pela constatação, nas próprias teses do PCP, que este sistema está é “em crise que não dá resposta aos problemas e aos anseios da Humanidade”. É essa mesma crise que ditou a “política de direita” de António Costa, e não as suas ideias pessoais ou a mão sinistra dos “grupos económicos”. Na nossa época, a nossa tarefa não é tornar o capitalismo mais humano (o que é de facto impossível), mas derrubá-lo. A tomada do poder pelos trabalhadores, sobre a que as teses ironizam, não acontecerá amanhã, mas todos os comunistas devemos colocar-nos esta missão, não num futuro longínquo, mas agora.

Devido à sua função económica, o proletariado, que representa hoje a grande maioria social, é a única classe verdadeiramente revolucionária. No caminho à revolução só pode basear-se nas suas próprias forças. Há de pugnar pelo apoio dos setores empobrecidos e radicalizados da pequena burguesia, mas deve fazê-lo através do seu próprio programa revolucionário, e não através de “alianças” que o levem a sacrificar os seus pontos de vista.

A nossa interpretação dos acontecimentos dos últimos anos é muito diferente da do PCP. É verdade que a “geringonça” introduz algumas reformas positivas numa conjuntura econômica relativamente favorável em 2015-2019, e, sobretudo, como consequência das lutas contra a troika dos anos anteriores. Mas estes avanços foram muito limitados, e a recuperação (fraca e instável) da crise de 2008 foi feita à custa da classe trabalhadora. O PS explorou a sua aliança com o PCP e o BE, protegendo o seu flanco esquerdo, arrogando-se quaisquer avanços conseguidos, mas sempre partilhando com os seus parceiros a responsabilidade pelos seus erros e retrocessos. Foram esbatendo-se as diferenças políticas entre o PS e o PCP e o BE aos olhos das massas. Os apoiantes do governo foram congregando-se à volta do parceiro mais forte da aliança, o PS. Com a pandemia, o clima econômico voltou a piorar. A inflação e a crise do custo de vida engoliram a maioria das reformas conquistadas. A margem de manobra do governo estreitava-se. Isso criou o ambiente para o chumbo do orçamento. A mudança na política de Costa para os ataques e a austeridade não foi consequência de qualquer “viragem à direita”, mas das pressões do capitalismo. A maioria absoluta de Costa era, como avisamos naquela altura, um “gigante com pés de barro”, já que teve de assumir plena responsabilidade pela gestão de uma crise que estava a aprofundar-se. O desgaste do PS foi, portanto, vertiginoso. Mas o PCP e o BE não aproveitaram esse desgaste, pois eram também identificados com o governo de Costa com quem tinham colaborado durante seis anos. Foi, portanto, a direita e a extrema-direita a tirar partido.

“Condições de luta mais exigentes” ou oportunidades desaproveitadas?

O menosprezo pela luta de classes paira também sobre as secções do documento relativas à política nacional. Haveria em curso um “processo contra-revolucionário” em Portugal, “acompanhado pelo recrudescimento de concepções retrógradas e reaccionárias, com a promoção de forças de extrema-direita e a difusão do anticomunismo”. São “condições de luta mais exigentes que ocorrem numa situação internacional complexa e instável e num País marcado pelo avanço do processo contra-revolucionário com o crescente domínio do grande capital”. Esta “ofensiva” é, segundo as teses, o motivo principal dos retrocessos do PCP. Aceitemos por um momento este argumento e desenvolvamo-lo: há uma crise capitalista profunda, mas mesmo assim as condições de luta são desfavoráveis, porque o grande capital está a espalhar com sucesso a sua propaganda reacionária e anticomunista. A conclusão é que até numa fase de decomposição terminal do sistema a burguesia não só conserva, mas fortalece, a sua hegemonia ideológica. As massas ficam firmemente algemadas à classe dominante, incapazes, na sua estupidez, de romper com as “concepções reaccionárias”. A revolução torna-se assim impossível no geral.

Ora, perguntamos ao PCP quando é que a classe dominante abrandou a sua ofensiva ideológica? Acaso se comportava de outro jeito em 2015, quando o PCP e o BE obtiveram resultados históricos? Enquanto não for derrubada, a classe dominante sempre terá poderosas ferramentas para espalhar a sua ideologia. Como já explicaram Marx e Engels:

As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual.”

Aliás, resulta bastante paradoxal ouvir estes arrazoamentos por parte do PCP, um partido que foi forjado, que recrutou os seus melhores quadros e fortaleceu a sua base social, no contexto de uma ditadura sangrenta, assente na censura e o controlo férreo da imprensa, na deturpação sistemática e na perseguição implacável de qualquer oposição. Mesmo assim o PCP foi fortalecendo-se na luta contra a ditadura, cuja propaganda foi perdendo a sua capacidade persuasiva.

Achamos, porém, que toda a argumentação do PCP sobre o “processo contra-revolucionário” é desonesta. Sem dúvida, há em Portugal uma nova vaga de ataques às condições de vida da classe trabalhadora, que tem também uma dimensão ideológica. É a consequência da crise capitalista. Mas a ofensiva ideológica tem um impacto limitado. “Os factos são teimosos,” costumava dizer Lenine. Todo o embelezamento do capitalismo pelos seus ideólogos, toda a sua propaganda, choca com a dureza da vida quotidiana dos trabalhadores.


O facto caraterístico na vida política nacional e mundial é, de facto, a incapacidade da burguesia de atingir qualquer estabilidade política. Os seus esforços por conseguir estabilidade económica quebram a estabilidade política, e vice-versa. É verdade que em Portugal houve um surto eleitoral de forças reacionárias, nomeadamente do Chega. Mas o que é que significa esse seu auge? André Ventura fez uma demagogia desvergonhada, apresentando-se como um inimigo do status quo. Devido ao falhanço do PCP e do BE, associados ao desacreditado governo de Costa, o Chega pôde assim converter-se no voto de protesto. Isto não foi necessariamente consequência do domínio ideológico do Chega e do enraizamento dos seus preconceitos, mas da conjuntura peculiar criada pelo falhanço da “geringonça”. Muitos votantes cansados e frustrados pegaram no boletim do Chega para dar uma “chapada ao sistema”. Enganaram-se, como descobrirão. Como já aconteceu noutros países, às guinadas à direita seguirão viragens à esquerda, esporeadas pelo profundo descontentamento e raiva perante a crise do sistema.

Por outro lado, seria um erro impressionista afirmar que Portugal tem simplesmente virado à direita. Há uma polarização à direita, mas também à esquerda, que não encontra expressão política devido aos erros e insuficiências do PCP e do BE. As mobilizações de massas dos últimos anos, pela habitação, pela Palestina, contra o racismo, contra a crise do custo de vida; as greves dos professores, do SNS, nos transportes; a manifestação história no 25 de abril de 2024; o surgimento de novos movimentos sociais, amiúde ligados à juventude, como o movimento pela justiça climática ou pelos direitos LGBT… Tudo indica que o “processo molecular da revolução” está a avançar entre uma camada importante, sobretudo da juventude.

A argumentação do PCP procura tirar a responsabilidade pela difícil situação do partido dos seus dirigentes e descarregá-la sobre as massas que já não o seguem. Mas as condições objetivas –de crise, instabilidade e reviravoltas– são, de facto, muito favoráveis para as organizações comunistas e revolucionárias. Se os dirigentes PCP não as souberam aproveitar é consequência dos seus erros, e não da estupidez das massas ou da fortaleza do inimigo de classe.

Reformas e revolução

As teses do PCP debruçam-se sobre os diferentes problemas que enfrenta a classe trabalhadora: de baixos salários, de serviços públicos insuficientes, de falta de acesso à cultura, etc. Sem dúvida, nós comunistas temos de prestar muita atenção a estes problemas concretos. As teses analisam a ligação entre as reivindicações concretas e o objetivo do socialismo:

“A luta por objectivos concretos e imediatos, a luta reivindicativa dos trabalhadores, a luta das populações em defesa seus direitos e aspirações, a luta em defesa da liberdade e pelo aprofundamento da democracia nas suas vertentes fundamentais –económica, social, política e cultural–, pela afirmação da soberania e a independência nacionais, contra a guerra e em defesa da paz, lutas que não são contraditórias, antes se inscrevem na luta pelo objectivo mais geral e estratégico da construção do socialismo.

Mas as teses não explicam como é exatamente que estas “se inscrevem” na luta pelo socialismo. Nos últimos anos, a agitação do PCP tem focado no aumento dos salários e no fortalecimento dos serviços públicos. Porém, estes temas têm sido abordados isoladamente, como reivindicações estritamente económicas. Ora, qualquer trabalhador sabe que os salários não chegam, que o SNS está a ruir, que a habitação está muito cara, que a vida é muito difícil. E seguramente não ficará muito admirado pela propaganda do PCP porque, ao fim e ao cabo, todos os partidos prometem toda classe de melhorias. É fácil agitar por aumentos salariais e investimentos nos serviços públicos e qualquer partido burguês pode fazer isso. Mas só um partido revolucionário pode explicar a raiz real destes problemas, elevando a compreensão dos trabalhadores e oferecendo-lhes uma saída revolucionária ao pesadelo capitalista.

Como explicam as teses da Internacional Comunista de 1921:

A tarefa é tomar todos os interesses das massas como ponto de partida para as lutas revolucionárias que só na sua unidade formam o poderoso rio da revolução. Os partidos comunistas não propõem um programa mínimo para essas lutas, um programa destinado a reforçar e melhorar a estrutura frágil do capitalismo. Pelo contrário, a destruição desta estrutura continua a ser o seu objetivo orientador e a sua tarefa imediata. Mas para alcançar esta tarefa, os partidos comunistas têm de avançar com reivindicações cuja realização satisfaça uma necessidade imediata e urgente da classe trabalhadora, e lutar por estas reivindicações independentemente de serem ou não compatíveis com o sistema de lucro capitalista.

Relegando a luta pelo socialismo às profundezas dos seus documentos partidários, o PCP cai numa propaganda reformista e cinzenta, de repetição de reivindicações económicas, que não eleva um milímetro a compreensão da classe trabalhadora, que sabe perfeitamente que é preciso aumentar os salários e as pensões.

“Democracia avançada” ou revolução socialista?

A “ofensiva antidemocrática” e as “políticas de direita” supõem um “processo contra-revolucionário” contra as “conquistas de Abril”, dizem as teses. O 25 de Abril foi uma grande revolução. Mas foi uma revolução derrotada! O processo revolucionário foi travado pela burguesia a 25 de Novembro de 1975, com o esmagamento da ala esquerda do MFA. Foi uma contra-revolução “democrática”, já que contou com a conivência das principais organizações da esquerda e do movimento operário (sem elas a burguesia não poderia ter estabilizado a situação). Dela nasceu uma democracia burguesa, garantidora da propriedade privada e da ordem capitalista. O povo português tem tido, como dizia Marx, o direito de “decidir, de três em três anos ou de seis em seis, que membro da classe dominante havia de representar e reprimir o povo no parlamento”. A constituição de 1976, que diz coisas muito bonitas, teve o papel, não de materializar a revolução, mas de dissimular o seu falhanço.

Os dirigentes do PCP defendem a constituição e, por extensão, o atual regime político, como supostos filhos da revolução, cujas conquistas, acreditam, devem simplesmente ser aprofundadas, até à “democracia avançada”. Nós tiramos a conclusão contrária: a revolução não foi levada até o fim, até a supressão do capitalismo, e foi derrotada. Da sua derrota nasceu uma república burguesa apodrecida, onde, como dizia Lenine, a “liberdade permanece sempre aproximadamente como era a liberdade nas repúblicas gregas antigas: liberdade para os escravistas”. Para perceber a natureza deste regime, nós comunistas não podemos olhar para o preâmbulo da constituição ou para outras fantasias com que todas as democracias burguesas deturpam a sua verdadeira natureza; nós olhamos para a violência policial quotidiana contra a população das periferias das grandes cidades, particularmente contra os afrodescendentes e os ciganos; olhamos para o apartheid quotidiano que vive a classe trabalhadora migrante, privada de direitos, socialmente isolada e híper-explorada; olhamos para os acampamentos de sem-abrigos que alastram pelo país, para os despejos e as demolições de bairros informais; olhamos para a mão de ferro dos juízes quando julgam ativistas climáticos e de esquerda, ou, simplesmente pessoas pobres, e as suas luvas de seda quando se trata de pessoas ricas e influentes. Esse é o funcionamento real, quotidiano, do Estado português. A natureza do Estado irá ficando ainda mais evidente à medida em que a luta de classes se intensificar. A nossa tarefa fundamental não é aperfeiçoar este regime corruto, mas desmascará-lo e derrubá-lo através da revolução socialista!

A visão confusa do PCP sobre a natureza de classe do Estado português leva-o à negação da revolução. Embora o seu programa e as suas teses falem ocasionalmente, e sempre de forma abstrata, sobre a revolução socialista, a sua perspetiva da democracia avançada nega-a. Como diz o programa do partido, “a democracia avançada que o PCP propõe, projecta, consolida e desenvolve os valores de Abril”, ou seja, o regime atual pode evoluir organicamente para essa “democracia avançada” e ela por sua vez “criará condições propícias a um desenvolvimento da sociedade portuguesa conduzindo ao socialismo”. A revolução socialista torna-se, portanto, desnecessária. Este não é o programa de Lenine, é o programa do reformista Bernstein. Explica Lenine, resumindo as ideias de Marx: “A ideia de Marx consiste em que a classe operária deve quebrar, demolir a «máquina de Estado que encontra montada» e não limitar-se simplesmente à sua conquista.”

O futuro pertence ao comunismo!

O declínio do PCP não é só eleitoral, mas, ainda mais grave, na sua base militante. O partido é ainda uma grande força de massas, com 47.612 membros, mas isto representa uma redução de mais de duas mil pessoas face ao último congresso. É uma organização cada vez mais envelhecida, com 52,7% tendo mais de 64 anos e só 10,4% com menos de 40 anos. Além disso, uma parcela muito grande da militância parece estar inativa ou semi-ativa. Apenas 31,7% estão a pagar quotas, o que deveria ser um critério básico de militância. Por outro lado, segundo os dados fornecidos nas teses, durante estes quatro anos houve 3.112 participações nas diferentes escolas de formação regionais e nacionais. Sendo um valor cumulativo, o total de militantes que participou deve ser de só algumas centenas, o que reflete a desmotivação nas fileiras do partido, mas também a queda do nível político. Esta é a imagem de um partido enfraquecido e fossilizado.

O declínio do PCP deturpa a visão dos seus dirigentes, que tiram conclusões extremamente pessimistas e, não só isso, descarregam a responsabilidade nas massas estúpidas que caíram vítimas da “ofensiva anticomunista”. O desgaste do PCP não é fruto das condições objetivas, que, de facto, são muito favoráveis aos comunistas: são condições de raiva, instabilidade, polarização, radicalização e questionamento da ordem existente por amplas camadas da população. A crise do partido é consequência dos erros dos seus dirigentes. Durante vários anos, a liderança do PCP garantiu a viabilidade do governo do PS, até que Costa se livrou dele quando já não era mais necessário. No último período, o partido, falto de perspetivas, ficou atolado numa propaganda económica oca, rotineira e repetitiva, com um perfil cinzento e reformista que está muito afastado do ambiente de raiva e frustração que se respira na sociedade portuguesa. Enquanto o capitalismo está a afundar, os dirigentes do PCP agarram-se a ele, repetindo as suas velhas fórmulas reformistas. Estas teses não oferecem uma mudança de rumo, mas, pelo contrário, afirmam a atual linha política que leva o partido para o abismo.

Mas a última palavra é dos membros do PCP. O partido ainda congrega alguns dos militantes mais conscientes e combativos da classe trabalhadora portuguesa. Temos esperança em que saibam corrigir o atual rumo catastrófico e pôr o partido na estrada da revolução. O Coletivo Comunista Revolucionário oferece-lhes a sua ajuda nessa missão. Nós somos profundamente otimistas. É verdade que o capitalismo está a arrastar a humanidade para a barbárie. Mas temos toda a confiança na nossa classe, a classe trabalhadora, e no seu potencial revolucionário. Temos toda a confiança nas nossas ideias, as ideias de Marx e Lenine, as ideias do comunismo revolucionário. Armados com estas ideias e métodos o futuro é nosso!

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