O veneno do sectarismo

Todo o juízo da crítica científica é para mim bem-vindo. Face aos pré-juízos da chamada opinão pública, a quem nunca fiz concessões, vale para mim, tal como anteriormente, a divisa do grande florentino: Segui il tuo corso, e lascia dir le genti [segue o teu percurso, e deixa a gente falar]!” (Marx)

Há uns dias o Coletivo Ruptura publicou uma tribuna da camarada Jessica Neto com numerosas críticas ao Coletivo Comunista Revolucionário. Infelizmente, está longe de tratar-se de uma crítica política séria, baseada numa análise rigorosa das nossas posições: trata-se de uma série de mentiras e distorções formuladas num tom agressivo e insolente, acusando-nos de reformistas e equiparando-nos ao BE e ao PCP. Contestá-las-emos aqui. Além de refutar estas acusações, este artigo é um ensejo também para ir ao fundo das questões, ou seja, ao método empregue nesta tribuna do Coletivo Ruptura, o que será mais formativo e esclarecedor para os nossos (e os seus) leitores do que uma troca infantil de acusações.

Deve-se frisar primeiramente o tom irrespeitoso e virulento da tribuna, que nos acusa de ser um “secto” que sofre de um “direitismo oco”, entre outras qualificações parecidas. Não nos amedrontam os insultos. Como dizia Engels, quem entra na política revolucionária deve ter pele de elefante. Todavia, é um tom que não ajuda a esclarecer as questões, pelo contrário, deturpa-as e distrai. Ainda mais importante, o tom nunca está separado do conteúdo. A estridência retórica sempre foi um sintoma da insegurança política e da falta de confiança nas próprias posições, compensada pela arrogância e a insolência. Nós, como de costume nos debates entre camaradas, responderemos de forma serena e respeitosa.

Misturas, mentiras e distorções

A tribuna não é só dirigida contra o CCR, mas também contra o MAS, uma organização com a qual bem pouco temos em comum, e com que nunca tivemos uma comunicação ou cooperação prática, ao contrário do Coletivo Ruptura, que marchou com eles no 25 de Abril e onde partilharam faixa (escolha que depois admitiram como errada). A linha do MAS tem-se caracterizado nos últimos anos por viragens abruptas do oportunismo ao sectarismo, evidentes sobretudo na sua estratégia eleitoral e nas suas relações com o BE. Estas guinadas são típicas de uma organização sem perspetivas claras, à procura de atalhos. Este grupo atolou-se finalmente numa crise profunda, com inúmeras cisões e divisões. Nós já analisámos a crise do MAS politicamente, algo que Jessica Neto não faz. Ora, ela mete-nos no mesmo saco que esta organização tão afastada de nós, o que só podemos ver como um esforço por desacreditar-nos.

Os parágrafos dedicados ao CCR são uma salganhada de distorções. Metendo-nos no mesmo saco de grupos maoistas como o MRPP, diz-se sobre nós:

Os mesmos slogans são reutilizados: a necessidade de recuperar a “independência económica” nacional, de romper com a União Europeia e o Euro em prol de uma nova moeda nacional e do proteccionismo económico.”

Isto é uma mentira descarada. Qualquer pessoa minimamente familiarizada com o CCR conhece a nossa batalha ideológica constante precisamente contra o nacionalismo, o protecionismo e outras fórmulas semelhantes.

Numa passagem que tudo tenta criticar mas que, por isso mesmo, ao final nada critica, e que novamente parece abranger toda a esquerda radical portuguesa (incluindo-nos a nós), afirma-se:

Fala-se [onde?] da necessidade imperiosa [?] de reformas do Estado, de um “governo popular” [quem é que diz isso?] que pegue nas instituições burguesas [nós dissemos isso alguma vez?] e as ponha a funcionar ao serviço dessa massa tão aclamada – o “povo”, fazem-se apelos aos partidos parlamentares de esquerda, até cartas abertas a suplicar por uma mudança de rumo, de um parlamentarismo realmente combatente e intransigente, sem (grandes) cumplicidades [?] com os gestores do Estado português, fala-se nominalmente de revolução, mas as suas posições gritam outra coisa… reformismo.”

Num tom semelhante, onde a arrogância equipara a ambiguidade calculada, diz-se que nós estaríamos: “mergulhados no sonho utópico de um governo reformista de esquerda que faça frente aos ventos frios do capitalismo europeísta soprados por Bruxelas e ao calor escaldante do imperialismo norte-americano que surge de Washington.”

A tribuna encerra com uma citação de Lenine de abril de 1914, durante a polémica com os liquidacionistas, que procuravam dissolver o trabalho ilegal do partido e aceitar só as estreitas práticas legais permitidas pelo czarismo. Não sabemos que relevância tem isso a este debate, além de insinuar que o Coletivo Ruptura não se deve misturar com ninguém, que eles são os verdadeiros bolcheviques e o resto da esquerda portuguesa são mencheviques e liquidacionistas.

“Cherry-picking”

Misturando as mentiras e as ambiguidades com as distorções, e talvez não encontrando muito no que pegar em Portugal, Jessica Neto dedica-se sobretudo a estudar com uma lente de aumento as posturas das seções da Internacional Comunista Revolucionária noutros países, num caso clássico de “cherry-picking”, ou seja, de uma escolha selectiva e interessada. Acusa-nos de expressar “rejubílio” pelo sucesso de George Galloway na Inglaterra, um político que mistura confusamente uma retórica de esquerda e anti-imperialista com elementos conservadores e nacionalistas. Temos diferenças enormes com Galloway, que ele mesmo conhece bem. Galloway e o seu partido, de facto, travaram uma campanha de calúnias e ataques contra nós durante as eleições de julho, sobretudo contra a candidata do Revolutionary Communist Party em Stratford (Londres), Fiona Lalli. Se os companheiros do Coletivo Ruptura quiserem conhecer o programa e as tácticas dos nossos camaradas britânicos, deveriam olhar para a campanha de Fiona, que despertou a ira de Galloway.

O que os nossos camaradas britânicos afirmaram na altura em que Galloway foi eleito, e nós reiteramos agora, é que a sua vitória esmagadora nas eleições em Rochdale (distrito perto de Manchester) é um sintoma muito significativo da radicalização da classe trabalhadora britânica e da sua procura de alternativas aos Conservadores e aos Trabalhistas. A sua vitória deveu-se não principalmente às suas posições chauvinistas, mas, sobretudo, à sua retórica anti-sistema e à sua solidariedade com a Palestina. O descalabro dos Conservadores e dos Trabalhistas em Rochdale é um termómetro das mudanças tectónicas na consciência das massas na Grã Bretanha, para uma maior polarização e radicalização, e foi por isso um acontecimento significativo.

Jessica Neto passa depois à França, onde nos acusa de apoiar a Nova Frente Popular de Mélenchon nas eleições de julho, onde nós supostamente teríamos defendido, nas suas palavras, que “era necessário não só o voto como a mobilização para a campanha de uma frente keynesiana que prometeu aumentar o envio de armamento para a guerra inter-imperialista.” Apelámos ao voto no Mélenchon, sim, e a mobilizar-nos para a aplicação e aprofundamento do seu programa, mas criticamente. Mentes acostumadas aos maniqueismos não podem perceber que se possa apoiar um candidato sem compartilhar a sua linha política. Explicámos de forma clara e contundente os limites do programa reformista de Mélenchon, a necessidade de romper com o capitalismo e a armadilha da aliança com o PS e outros grupos social-democratas sem peso político real. Nas múltiplas críticas dos camaradas franceses ao programa da Nova Frente Popular pode-se ler:

“O programa da Nova Frente Popular é ainda mais moderado que o do NUPES [coligação anterior de Mélenchon]. Ele não prevê, por exemplo, nenhuma nacionalização: a “ruptura” que ele propõe não toca na grande propriedade capitalista, ou seja, nos fundamentos da ordem estabelecida. Os interesses do imperialismo francês também são preservados, como demonstrado pelo compromisso de fornecer armas ao regime de Volodymyr Zelenskyy – e isso em nome da “paz”!”

Contrastem estas palavras com a deturpação de Jessica Neto e tirem as vossas conclusões.

Mas mesmo assim, apelámos ao voto na Nova Frente Popular. sim, porque um governo de Mélenchon seria muito mais favorável à luta da classe trabalhadora do que um dos macronistas ou da Le Pen, algo que qualquer operário com consciência de classe percebe perfeitamente (mas não a camarada Jessica), da mesma forma que o percebe a burguesia francesa e o próprio Macron, que fez o possível por travar Mélenchon. De forma semelhante, nós apelámos criticamente ao voto no PCP ou no BE nas eleições de Março em Portugal, porque é preferível termos 50 deputados desses partidos do que do Chega. Mas, ainda mais importante, apelámos ao voto no Mélenchon porque um governo seu seria um patamar necessário no processo revolucionário em França, que ajudaria às massas a tirar conclusões sobre a verdadeira natureza do reformismo. Lembramos à Jessica as palavras de Lenine na Doença infantil do esquerdismo no comunismo, livro que, em geral, lhe recomendamos vivamente:

Pelo contrário, do facto de a maioria dos operários da Inglaterra seguir ainda os Kérenski e os Scheidemann ingleses [i.e. os reformistas], de não haver conhecido ainda a experiência de um governo formado por esses homens – experiência que foi necessária tanto na Rússia como na Alemanha para que os operários passassem em massa para o comunismo -, disto decorre de maneira indubitável que os comunistas ingleses devem participar no parlamentarismo, devem ajudar de dentro do parlamento a massa operária a ver na prática os resultados do governo dos Henderson e dos Snowden, devem ajudar os Henderson e os Snowden a vencer os Lloyd George e Churchill [i.e. os reacionários] unidos. Proceder doutro modo significa dificultar a obra da revolução, pois sem uma mudança nas opiniões da maioria da classe operária a revolução é impossível, e essa mudança consegue-se através da experiência política das massas, nunca apenas com a propaganda. A palavra de ordem «Avante sem compromissos, sem se afastar do caminho» é claramente errada, se quem a diz é uma minoria evidentemente impotente de operários que sabe (ou, pelo menos, deve saber) que dentro de pouco tempo, no caso de Henderson e Snowden triunfarem sobre Lloyd George e Churchill, a maioria ficará desapontada com seus chefes e passará a apoiar o comunismo (ou, em todo o caso, à neutralidade, e, na sua maioria, à neutralidade benevolente para com os comunistas). É como se 10 mil soldados se lançassem ao ataque contra 50 mil inimigos no momento que é necessário «deter-se», «desviar-se do caminho» e até concluir um «compromisso» para esperar a chegada de um reforço de 100 mil homens que vão chegar, que não podem entrar imediatamente em acção. É uma puerilidade própria de intelectuais e não uma táctica séria da classe revolucionária.

Ainda sobre Portugal, Jessica acusa-nos de “suplicar” que o PCP mude de rumo. Não suplicamos nada, apelamos às bases do partido, onde há comunistas genuínos que, apesar da linha reformista da direção, querem lutar pela revolução, criticando extensamente o programa reformista e nacionalista dos seus dirigentes. A última palavra será dos militantes do partido, cujas ilusões na direção serão postas à prova e que deverão fazer o seu percurso. Ajudá-los-emos nesse processo. Acusa-se-nos ainda de sermos “abrilistas”. Para nós, os acontecimentos de 1974-1975 foram uma grande revolução proletária, que não foi até o final devido à política traiçoeira das direções da esquerda, que foi descarriada e derrotada, mas mesmo assim representa uma experiência revolucionária sem precedentes neste país, experiência que estudamos, que reivindicamos como nossa, e que queremos levar até o final derrubando o capitalismo e a atual democracia burguesa. Se isso é ser abrilistas, somo-lo.

Ainda mais, acusa-se-nos de ativismo e sindicalismo. Somos, segundo ela “oportunistas, esvaziados de conteúdo teórico, presos ao Estado, aos sindicatos e ao activismo e, por consequência, ao modo de produção capitalista.”

Nós participamos em quaisquer grandes movimentos da classe trabalhadora e da juventude, incluindo, sim, os sindicatos. Mas não o fazemos como simples ativistas ou como sindicalistas, mas como comunistas, levando as nossas ideias às lutas reais da nossa classe, ao seu movimento vivo. Novamente, Lenine respondeu a estes argumentos na Doença infantil:

Precisamente a absurda «teoria» da não participação dos comunistas nos sindicatos reaccionários mostra do modo mais evidente com que leviandade esses comunistas «de esquerda» consideram a questão da influência nas «massas» e de que modo abusam dos seus gritos acerca da «massa». Para saber ajudar a «massa» e conquistar a simpatia, a adesão e o apoio da «massa» é preciso não temer as dificuldades, as chicanas, as armadilhas, os insultos e as perseguições da parte dos «chefes» (que, sendo oportunistas e sociais-chauvinistas, estão na maior parte dos casos directa ou indirectamente ligados à burguesia e à polícia) e trabalhar obrigatoriamente onde está a massa. É preciso saber suportar toda a espécie de sacrifícios e superar os maiores obstáculos para levar a cabo uma propaganda e uma agitação sistemáticas, tenazes, perseverantes e pacientes precisamente nas instituições, sociedades e sindicatos, por mais reaccionários que sejam, onde esteja a massa proletária ou semiproletária.”

Reformismo e comunismo

Subjaz a toda a análise da camarada, às suas denúncias de oportunismo a torto e direito, uma incompreensão do papel do reformismo na revolução. É preciso distinguir o reformismo consciente dos dirigentes da esquerda, que leva à traição e faz o jogo da burguesia, do reformismo honesto da classe trabalhadora. O proletariado não atinge uma consciência de classe revolucionária lendo Marx e Engels, mas principalmente através da sua experiência. A revolução é um longo processo de aprendizagem para a classe operária. Quando ela começa a mexer-se, fá-lo normalmente com ilusões reformistas, na procura do caminho mais simples, rápido e indolor para resolver os seus problemas. Ultrapassa essas ilusões na dura escola da luta de classes. Nós lutamos com ela até pelas reformas mais modestas e imediatas, mas explicamos que a resistência da burguesia será feroz, que essa resistência só será vencida através da mobilização de massas, e que mesmo se as nossas reivindicações forem satisfeitas, a burguesia tentará miná-las e sabotá-las. Retirará com uma mão o que nos dá com a outra. Só a revolução socialista dará um caráter duradouro às nossas conquistas.

Através da experiência, pondo à prova os diferentes programas, a classe trabalhadora dar-se-á conta de que as suas reivindicações mais básicas entram em contradição com o sistema no seu conjunto, que deve ser derrubado. A revolução socialista não cairá do céu, mas será a culminação de duros combates de classe, em que o proletariado irá ultrapassando as suas ilusões reformistas através da experiência, num processo que não será linear, mas que passará por altos e baixos. Os comunistas devem monitorizar esse processo, analisando-o detalhadamente. Aqui jaz a importância das nossas perspectivas e análises da conjuntura, que são a nossa bússola na luta de classes, orientando-nos e indicando-nos onde nos encontramos. É fácil ao Coletivo Ruptura manter uma aparência de pureza revolucionária quando raramente se pronuncia sobre acontecimentos concretos nem fornece perspetivas atualizadas. Como dizia a canção de Fabrizio de André, “Si sa che la gente dà buoni consigli se non può più dare cattivo esempio” (é sabido que a gente dá bons conselhos quando não pode dar mau exemplo).

A missão de uma organização comunista é facilitar o processo de aprendizagem da classe trabalhadora, acompanhando-a na sua luta, lançando luz sobre os seus problemas e tribulações, incutindo-lhe a consciência dos seus interesses e da sua força e a desconfiança no inimigo de classe, ajudando-a a tirar conclusões dos acontecimentos, elevando a sua compreensão. A nossa tarefa é dar um caráter mais geral às reivindicações concretas dos trabalhadores, integrando-as num quadro amplo de opressão capitalista. Tomamos e desenvolvemos o âmago progressista das suas reivindicações e anseios, separando-as da sua casca de confusões e ilusões reformistas. Como diziam Marx e Engels no Manifesto, os comunistas “lutam para alcançar os fins e interesses imediatos da classe operária, mas no movimento presente representam simultaneamente o futuro do movimento.”

Conclui-se disto que somos irreconciliavelmente hostis ao sectarismo, ou seja, à tendência de apresentar ultimatos ao movimento vivo da classe trabalhadora, a exigir à classe que satisfaça os nossos esquemas e fórmulas preestabelecidas para dar-lhe o nosso beneplácito. Isso isolar-nos-ia fatalmente do processo da luta de classes, como isolará o Coletivo Ruptura se ele não mudar a sua atitude. O nosso método é, de facto, o contrário: desenvolvemos a nossa política em sintonia com o movimento vivo.

Uma questão de método

Toda a abordagem da camarada Jessica consiste em procurar quaisquer formulações que não coincidam com a doutrina do Coletivo Ruptura. É um método formalista, que não se interessa pelas questões políticas de fundo mas por tal ou qual afirmação tirada de contexto que ao seu ver “grite reformismo”. Mas esse é um caminho perigoso, porque mais cedo ou mais tarde se voltará contra si. Nas suas denúncias de outros grupos, o Coletivo Ruptura vai colocando a fasquia da ortodóxia comunista cada vez mais alto, tão alto que no final nem eles mesmos a alcançarão. Ainda pior, tratando-se de um grupo expressamente eclético, que se exprime principalmente através de tribunas (que não expressam a posição oficial do Coletivo, mas as opiniões pessoais dos seus membros), eles mesmos irão entrar em contradição e violar as suas elevadas exigências de pureza revolucionária, sofrendo o clássico final de todos os grupos ecléticos da extrema-esquerda: as brigas, as cisões e a desagregação. Não desejamos esse final aos camaradas. Mas para isso devem abandonar os seus métodos sectários e ultimatistas, que são um veneno que devora e destrói movimentos e organizações.

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