O debate político que, subitamente, surgiu em Portugal e nos demais países europeus sobre a reintrodução do Serviço Militar Obrigatório (SMO), tem como pano de fundo a guerra na Ucrânia, a previsível derrota da NATO e as futuras guerras para as quais as burguesias europeias se querem preparar nesta era de crescentes rivalidades inter-imperialistas. A militarização das nossas sociedades que se anuncia é por isso fruto da crise do sistema, da disputa feroz por manter ou conquistar novos mercados e esferas de influência, mas é também ao mesmo tempo, uma cortina de fumo que tenta desviar as atenções dessa mesma crise através do estímulo duma histeria belicista entre as massas. Este propósito de reintrodução do SMO tem fins totalmente reacionários.
Finalmente, não podemos perder de vista, que a classe trabalhadora será chamada a pagar a fatura este esforço de (re)militarização e que a classe dominante não hesitará no futuro em usar todo este aparato para travar e derrotar a luta dos trabalhadores. Tudo isto tem de ser denunciado e combatido!
Uma mudança de paradigma
Como dissemos, desde o início, o começo da guerra na Ucrânia foi um momento de charneira e que acelerou o processo histórico: todas as tensões que se desenvolviam, mais ou menos, ocultamente vieram com violência à superfície. Hoje ninguém ignora a formação de dois campos geopolíticos rivais: dum lado os Estados Unidos e os seus mais próximos aliados e do outro a China e a Rússia, novas potências imperialistas emergentes que disputam a hegemonia americana, que se julgava “omnipotente” no fim da guerra-fria.
Uma das consequências da guerra da Ucrânia foi a mudança de paradigma (que está em curso) sobre como devem ser organizadas as forças armadas e de como devem ser conduzidas as guerras.
Com o colapso da URSS, os Estados Unidos começaram por reduzir os orçamentos militares, tendência que se se inverteu na entrada no novo milénio, quando as invasões e subsequentes ocupações do Afeganistão e do Iraque, fizeram disparar os gastos. A presença mais discreta dos países europeus nas agressões americanas no Médio Oriente, sobretudo as maiores dificuldades sentidas após a crise de 2008 e um mais acentuado declínio relativo da Europa foram adiando (até ao início da guerra na Ucrânia) a expansão dos gastos militares no velho continente.
Porém, foi comum aos países da NATO dos dois lados do Atlântico a redimensionação dos seus exércitos, concebidos agora não para enfrentarem um rival que lhes fosse paritário (que durante algumas décadas, de facto, nem houve), mas para aventuras militares em África e np Médio Oriente onde foram enfrentando com guerras-relâmpago Estados enfraquecidos, incapazes de uma séria oposição ou, então, forças insurgentes que exigiam mais uma “operação de policiamento” do que uma guerra convencional, através do envio de forças ligeiras mas altamente especializadas – as intervenções francesas nas suas antigas colónias do Sahel são um bom exemplo disto.
Este paradigma militar, que agora vai terminando, resultou na eleição dum modelo profissional, capaz de intervir com rapidez: os grandes exércitos nacionais deram lugar a forças expedicionárias, com a vantagem ainda das baixas duma tal força totalmente profissionalizada serem mais facilmente aceites pela população na retaguarda. Paralelamente, um exército de voluntários teria sempre à partida um maior grau de obediência e fiabilidade por contraste a um exército de conscritos, mais sujeito às pressões da luta de classes.
Paralelamente, também os complexos militares-industriais evoluíram duma produção em massa que permitisse enfrentar um arqui-inimigo para uma produção direcionada a estes safaris imperialistas e, em particular, para a exportação de armas, realidade palpável, tanto na Europa como (particularmente) nos Estados Unidos, com lucros verdadeiramente obscenos para esta indústria da morte. Ou citando Lenine: “a guerra é terrível. Terrivelmente lucrativa”…
Para grande choque dos Estados Unidos e dos seus aliados europeus todo o pensamento e estratégia militar dos últimos 30 anos se revelou, subitamente, obsoleto.
Ao contrário do que imaginavam, as sanções contra a Rússia (ela é hoje o país mais sancionado de sempre) não afundaram a sua economia, provocando um levantamento contra Putin. Na verdade, a guerra tem fortalecido o seu regime.
Contrariamente ao que almejavam, a blitzkrieg da “contraofensiva ucraniana” planeada no Verão passado foi um desastre. Eles sonhavam com uma debandada dos soldados russos, fugindo em pânico à primeira visão dum tanque alemão! Como se os russos nunca tivessem enfrentado tanques alemães… Os estrategas ocidentais, claramente, foram vítimas da sua própria propaganda que retratava o exército russo como desmoralizado, incompetente, cobarde e alcoolizado.
A guerra-relâmpago, que seria resolvida num par de semanas por efeito das sanções ou num par de meses pela assistência militar à Ucrânia, deu lugar a uma guerra de atrição para a qual os Estados Unidos e a Europa não estavam preparados nem com existências em stocks, nem com capacidade de produção. Quão distantes se encontram as fábulas de que na Rússia estavam a retirar chips de frigoríficos para reparar aviões de combate ou que os seus soldados combatiam com pás. O volume e nível de mentiras que nesta guerra os “nossos” imperialistas têm debitado e os seus órgãos de imprensa e algoritmos têm papagueado teriam feito corar de vergonha o próprio Goebbels!
Na verdade, ao contrário do que imaginavam e para seu grande espanto, os russos não só não têm armas inferiores como, em muitos casos, são mais resilientes e foram mais bem concebidas para uma guerra industrial de desgaste do que as suas congéneres ocidentais, já não falando que, várias delas já provaram no campo de batalha a sua superioridade tecnológica.
É sob a ameaça duma eminente derrota na Ucrânia, com o provável crescente desinteresse americano (cada vez mais focado no Pacífico) que se acentuará em caso de vitória de Trump e ainda confrontados com futuras guerras de atrição que exigirão quantidades industriais de armamentos, munições… e combatentes, que a classe dominante, por toda a Europa, prepara já a remilitarização do continente, sucedendo-se os anúncios de incrementos brutais na despesa militar, como aqui e aqui ou aqui. E chegou agora a vez do Serviço Militar Obrigatório!
Os comunistas e o Exército
Ao enfrentar uma nova situação, devemos sempre começar por regressar aos fundamentos teóricos do nosso movimento e à sua experiência concreta.
Para um comunista, o Estado é sempre um órgão de opressão, duma classe dominante sobre as demais e, em última instância, não passa de um corpo de homens armados em defesa da propriedade. Essa é a função do exército: a defesa da propriedade, do poder e dos privilégios da classe dominante, tal como a guerra, nas palavras de Clausewitz, é a continuação da política por outros meios. Cada burguesia nacional promove a guerra contra outras classes dominantes não em defesa de “ideais”, “questões de princípios”, ou “valores civilizacionais”, mas para manter e ampliar novos mercados, para onde possa exportar capitais e mercadorias e donde possa extrair recursos.
A função do exército é, por isso, reprimir tanto os inimigos externos, como também os inimigos internos da burguesia. O golpe militar do Chile em 1973 é um exemplo acabado disto. E não é possível “reformar” ou mudar o caráter e a condição fundamental do exército permanente, tal como não é possível reformar ou mudar o caráter e a condição fundamental de classe do Estado burguês: ao proletariado cabe-lhe a tarefa histórica de destruí-los.
Precisamente porque não é possível “reformar” o Estado e porque toda a história o demonstra que nenhuma classe dominante sai de cena sem uma luta feroz, porque “em qualquer sociedade de classes, seja ela baseada na escravatura, na servidão ou, como atualmente, no trabalho assalariado, a classe opressora está sempre armada”, afirmava Lenine que “uma classe oprimida que não se esforça para aprender a usar armas, para adquirir armas, apenas merece ser tratada como escrava.”
Já nas páginas do Manifesto, Marx e Engels explicavam como a burguesia “não apenas forjou as armas que lhe trazem a morte também gerou os homens que manejarão essas armas — os operários modernos, os proletários“. Também no plano militar, a ascensão da burguesia e das suas revoluções, a expansão do capitalismo e a disputa imperialista do mundo, impuseram o recrutamento universal em massa. A burguesia era, assim, forçada a conscrever uma base operária e camponesa para o seu instrumento de dominação. E foi este modelo de recrutamento militar que, essencialmente, vigorou até ao fim da guerra-fria.
Ora, um exército baseado no recrutamento universal, por oposição a outro sustentado por uma base de militares profissionais, seria sempre mais fácil de paralisar e mesmo partir em linhas de classe numa crise revolucionária, arrastando até para a trincheira proletária parte da oficialidade. Foi o que sucedeu durante a revolução russa ou na revolução portuguesa, por exemplo.
Por outro lado, o recrutamento universal proporcionava aos trabalhadores um mínimo de conhecimentos militares, daí que Engels afirmasse a propósito da reorganização militar prussiana que “quantos mais trabalhadores forem treinados no uso das armas melhor. O recrutamento universal é o necessário e natural corolário do sufrágio universal”.
Aqui chegados, é importante relembrar que nós comunistas não somos pacifistas. Não significa isto que sejamos, por disposição, pessoas violentas ou que glorifiquemos a violência; mas sucede que compreendemos o papel que a violência joga na História e não equiparamos a violência do escravo que luta pela liberdade com a violência do escravagista que o tenta oprimir. Sabemos que podem existir guerras justas. Não foi justa e progressista a guerra que os povos africanos moveram contra o colonialismo português? Não será hoje justa a resistência armada do povo palestiniano à ocupação e genocídio israelita?
Tal como afirmava Espinosa, não nos cabe “nem rir, nem lamentar, nem odiar, mas entender”. É essa compreensão que nos leva a dissipar e combater qualquer tipo de ilusões sobre a natureza do Estado, do exército, da luta de classes, dos seus meios e dos seus fins.
A teoria é um guia para ação
Esta breve revisitação à concepção marxista do Estado e da luta de classes, serve como um guia, não como como dogma. Recolher no abstrato os textos (ou seus fragmentos) dos grandes pensadores comunistas e aplicá-los mecanicamente a uma determinada situação, sem levar as condições concretas da mesma, não faria de alguém um revolucionário… mas um escolástico! O método do marxismo rejeita em absoluto todo o tipo de formalismo!
Em vários países da Europa, as classes dominantes equacionam repor o Serviço Militar Obrigatório por causa da intensificação dos antagonismos entre as potências imperialistas, resultado da crise capitalista mundial. Mas é também o resultado saudável do sentimento antimilitarista que anima a esmagadora maioria da juventude, que se recusa a prestar serviço numa instituição (o exército) reacionária, racista, misógina e homofóbica e que se recusa (enfim) a ser carne para canhão. O número de voluntários militares tem caído continuamente, quer em Portugal, quer nos Estados Unidos, por exemplo. O problema é de tal modo grave que até chegaram já a alvitrar a hipótese de contratação de mercenários estrangeiros para as forças armadas em Portugal, tal como de facto já se passa há vários anos nos Estados Unidos!
Que cada vez menos jovens queiram voluntariamente servir nos exércitos dos nossos inimigos de classe é um dado altamente positivo. É um sinal inequívoco dum sistema apodrecido, cuja crise se estende à própria instituição militar que o defende.
Não faz, por isso, nenhum sentido defender a “dignidade”, “a valorização” ou papel na “defesa da soberania” (soberania de que classe?) como o faz o PCP ou, sequer, a apologia de “forças armadas altamente especializadas” para “missões de paz” como defende o Bloco de Esquerda. A “valorização” ou “modernização” das forças armadas da burguesia é um problema da burguesia, não é uma preocupação da classe trabalhadora! Precisamos é que haja investimento na escola pública ou no serviço nacional de saúde e não no exército; necessitamos de valorizar as carreiras dos enfermeiros e professores, não as dos militares dumas forças armadas que têm mais generais que tanques operacionais! Não lamentamos o estado decrépito das forças armadas da burguesia, mas iremos todos lamentar e pagar o custo da sua modernização se os seus planos forem adiante. Aliás, a longo prazo, é nosso objetivo e tarefa da classe trabalhadora acabar com o exército permanente!
Perante estas dificuldades da “nossa” classe dominante; perante os seus objetivos reacionários, a nossa tarefa não é auxiliá-los, mas lutar com todas as nossas forças para frustrar os seus planos. Devemos resolutamente opormo-nos à expansão dos gastos militares e à cultura belicista. Devemos claramente dizer à juventude que a burguesia quer sacrificá-la nos campos de batalha das suas guerras futuras.
As novas realidades militares que a guerra da Ucrânia exibiu tornam particularmente sinistras as intenções dos capitalistas e dos seus Estados-maiores. Eles já sabiam que o treino e a mestria na utilização das armas mais sofisticadas, logo mais mortíferas, não se alcança num par de meses de recruta. Porém, com o combate de posições e de atrição que a guerra da Ucrânia recuperou (devidos aos sistemas de inteligência e reconhecimento, dos satélites aos drones, tornarem impossível uma guerra de movimentos), eles intuem agora que irão precisar do recrutamento em massa para literalmente guarnecer as trincheiras com carne para canhão e assegurar a retaguarda logística com recurso a mão-de-obra barata: num exército moderno apenas uma pequena percentagem se dedica ao combate, servindo os outros soldados na retaguarda.
Tudo isto para quê? Para que os filhos da classe trabalhadora se matem enquanto os capitalistas lucram e os seus políticos e generais enriquecem e enchem o peito com medalhas e comendas. Tudo isto tem de ser denunciado e combatido. Se a classe dominante quer arrastar a juventude para as matanças futuras, terá de arcar com esse ónus político. E é preciso dizê-lo: em Portugal as elites políticas e militares estão divididas e com medo de tomar essa decisão. Obrigar a juventude a ter de servir novamente no exército terá custos políticos gritantes para quem a tomar. As sugestões sobre um “serviço cívico” poder substituir o serviço militar tradicional refletem essas divisões e receios, ao mesmo tempo que esperam criar uma “mentalidade de serviço” e um “espírito nacional” entre os jovens que não existe. Cinicamente, quererão ensaiar também a mobilização para uma futura retaguarda logística das guerras do futuro.
Ora a nossa oposição não é contra esta ou aquela medida, mas contra o Estado burguês e o seu braço militar, contra a expansão dos gastos militares e a histeria belicista e chauvinista que a classe dominante quer fomentar. Em 1940, já em plena Segunda Guerra Mundial quando os Estados Unidos ainda eram um país neutral, mas já se debatia a introdução do serviço militar obrigatório, numa das suas últimas cartas, poucas semanas antes de ser assassinado por um esbirro de Estaline, escrevia Trotsky o seguinte:
Não ignorando a pertinência da educação militar para os trabalhadores, aconselhava ainda em seguida: “Temos de lutar contra o estado burguês, os seus abusos neste campo e noutros” . Quer isto dizer que, caso amanhã o SMO viesse a ser reintroduzido, iriamos então lutar pelos direitos sindicais e políticos, pela liberdade de associação, reunião e até a liberdade de greve dentro dos quartéis para os jovens recrutados, os quais deveriam receber um salário nunca inferior ao salário-mínimo nacional, ter garantias de preservação do emprego durante a mobilização, etc.
Apesar de reconhecermos e não ocultarmos as vantagens, para a luta de classes, da existência de exércitos baseados no recrutamento universal, por oposição a um constituído por “voluntários”, esta questão não dever ser respondida no abstrato e, no atual contexto e situação, não faremos campanha pelo Serviço Militar Obrigatório. Não é essa a nossa tarefa: não somos recrutadores do exército burguês e não queremos ser mobilizados para combater e morrer nas guerras da burguesia. A nossa tarefa hoje é denunciar as políticas imperialistas da nossa classe dominante, combater a militarização da sociedade e a histeria belicista com que tentam desviar as atenções da crise do seu sistema. A nossa tarefa é explicar, por isso, as razões totalmente reacionárias e contrárias ao interesse da classe trabalhadora e da juventude pelas quais ponderam reintroduzir o Serviço Militar Obrigatório. Esse tem de ser o nosso foco!
Enfim, para nós comunistas, a questão militar não é um fetiche, mas é uma questão prática. Eventualmente, no futuro, haverá que armar, treinar e conduzir os trabalhadores para a tomada do poder, mas esta não é a tarefa concreta para o dia de hoje. Com as nossas forças e na atual situação, não iremos subverter a base do exército ou agitar pela instrução militar dos jovens trabalhadores. A nossa tarefa hoje é ir ao encontro dos elementos mais avançados da juventude e, através da propaganda das ideias comunistas, recrutá-los, organizá-los e formá-los politicamente para os combates futuros. Porque a guerra só acabará quando acabarmos com o capitalismo.
Abaixo o capitalismo! Abaixo o militarismo!
Nem guerra entre os povos, nem paz entre as classes!
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