O Maoismo em Portugal: uma geração perdida 

O maoismo emerge, no princípio dos anos 60, como resultado do conflito entre as burocracias soviética e chinesa, mas em Portugal como na generalidade dos países, irá refletir também uma reação às políticas reformistas e “realistas” adotadas pelos partidos comunistas.  

A burocracia soviética tentava (e já o fazia desde há décadas) chegar a um entendimento e coabitação com as burguesias ocidentais e o imperialismo. Na esteira do “socialismo num só país”, o partido comunista da URSS justificava estas tentativas de conciliação argumentando que o crescimento da indústria e a preponderância técnica e educativa da URSS (e dos estados operários deformados surgidos no pós-guerra) garantiria, por si só, a vitória do socialismo, incluindo até uma eventual transição pacífica para o socialismo por parte dos Estados capitalistas e, portanto, nem a Internacional Comunista nem o triunfo da revolução mundial se tornavam necessárias. Já a burocracia chinesa receava que esse entendimento entre a URSS e o ocidente fosse obtido às suas custas, daí a sua retórica “revolucionária”. Para o cisma entre os dois países também contribuiu a sobranceria e chauvinismo do governo soviético, que tentou usar com a China os mesmo métodos de dominação política que usava com os seus satélites do Leste europeu. Contudo, não obstante uma retórica mais inflamada e intransigente, as políticas, métodos e ideias da burocracia chinesa não eram fundamentalmente diferentes da burocracia russa.  

Em 1949, dada a debilidade do imperialismo, a total falência da burguesia chinesa, mas também face à derrota da revolução operária na Europa no imediato pós-guerra, a revolução chinesa triunfou graças ao concurso dum exército camponês liderado pelo Partido Comunista da China, na qual o proletariado das grandes cidades teve um papel marginal, tal como sucedera (por exemplo) na Jugoslávia ou na Albânia. À semelhança desses países, o poder tinha sido tomado não pela mobilização consciente da classe trabalhadora, organizada e expressando-se através dos seus órgãos próprios (os sovietes, as comissões, os conselhos operários), mas através dum exército camponês de guerrilhas.  

Inicialmente, Mao Tsé Tung declarou que a China tinha diante de si “50 anos de democracia capitalista”, justificado pelo atrasado económico do país e, também, por causa do “duplo carácter da burguesia nacional que, em certos momentos e em certa medida, pode tomar parte na revolução contra o imperialismo e os governos de burocratas e senhores da guerra e pode tornar-se uma força revolucionária”. Com efeito, após a tomada do poder, Mao defenderia a “coligação das quatro classes” como a base da “Nova Democracia”. Mas, ao contrário de outras experiências de “Frente Popular”, de aliança com a burguesia “progressista” e “anti-imperialista”, após a revolução de 1949 o poder efetivo estava nas mãos dos estalinistas que controlavam e comandavam o Exército (camponês) Vermelho. Servindo-se dessa base, usando dos métodos autoritários, hierárquicos e verticais próprios da organização militar duma guerrilha, balançando-se entre as diferentes classes, a liderança chinesa acabou edificando um Estado operário deformado, controlado por uma casta burocrática, à semelhança do que existia já na URSS, desembocando assim onde terminara Estaline, não onde começara Lenine! 

O facto, enfim, do PC da China ter tomado o poder através duma revolução autóctone e não pela libertação do jugo nazi através do avanço do exército soviético, dava à burocracia chinesa um grau de autonomia (como na Jugoslávia) que outras burocracias nacionais no leste da Europa não possuíam. Apenas e só.   

Não havia nada de “progressista” ou “revolucionário” no confronto da burocracia chinesa contra a burocracia russa. O que melindrava o PC da China não era que a “coexistência pacífica” proclamada por Kruschev fosse uma traição ao ideal duma revolução comunista mundial, na qual a liderança chinesa também não acreditava nem tinha interesse, mas que tal “coexistência” ou acordo – como dissemos -viessem a ser feitos a expensas dos seus próprios interesses! Tal como Ted Grant explicou logo em 1960, 12 anos antes da visita de Nixon a Pequim, que “se amanhã, e no próximo período parece inevitável, o imperialismo americano tentar chegar a algum tipo de acordo com a burocracia chinesa, esta alterará imediatamente a sua política. Tornar-se-ia uma réplica da política dos estalinistas russos. E, na verdade, ainda na década de 60 e antes da normalização das relações sino-americanas, já a política externa chinesa caracterizava-se por apoiar movimentos nacionalistas burgueses e regimes reacionários como no Iémen, Afeganistão ou Indonésia, em nome do “anti-imperialismo”.  

O caso da Indonésia revelou-se particularmente trágico. Na época, o PC da Indonésia era o terceiro maior partido comunista do mundo, com mais de 3 milhões de militantes. Orientados por Mao, que pretendia alcançar uma aliança com o então presidente Sukarno, no qual via o representante duma burguesia supostamente “patriota” e “anti-imperialista”, os comunistas indonésios levaram a cabo uma política de colaboração de classes, apoiando o presidente indonésio mesmo enquanto este abolia o parlamentarismo e instituía uma “democracia guiada”. A recompensa dos comunistas indonésios foi um banho de sangue perpetrado pelo exército de Sukarho que, estima-se, assassinou em 1965 mais de 1 milhão de comunistas. Não tendo aprendido nada, Mao acabou conduzindo os comunistas indonésios para o mesmo desastre que, nos anos 20, quase destruíra o PC da China às mãos de Chiank Kai-Shek, também em tempos visto como um general “patriota” e “anti-imperialista” e a quem Estaline chegou a tornar membro honorário do Komitern. 

O surgimento do Maoismo em Portugal 

Na sua disputa e rivalidade com o PC da União Soviética, a burocracia chinesa tentou ganhar as simpatias da base dos vários partidos comunistas, não com o objetivo de reconfigurar o movimento comunista e criar uma nova Internacional Comunista – que nunca, de facto, defendeu -, mas para conseguir em cada país moldar movimentos de pressão que defendessem o seu Estado e fossem caixas de ressonância para a sua política externa.  

Face às políticas reformistas e conciliadoras dos partidos comunistas, a fraseologia radical do maoismo foi capaz de incendiar a imaginação dum sector (ainda que minoritário) da militância comunista. Contudo, apesar do verbalismo (aparentemente) revolucionário, os movimentos maoistas iriam apenas trocar as políticas estalinistas do “frentismo popular” pelas políticas estalinistas… do “terceiro período”! Que, em última instância, apenas conduziriam a novas derrotas. Portugal não seria exceção. 

Foi em 1963 que Francisco Martins Rodrigues, até aí militante e membro do Comité Central, romperia com o PCP, escrevendo o Luta pacífica e luta armada no nosso movimento, que se tornaria no verdadeiro documento fundador do maoismo em Portugal, inspirando toda uma miríade de grupos ao longo da década seguinte. Nesse documento e numa série de cartas que escreveu ao Comité Central apontava três divergências: os métodos de luta, as alianças de classe e o posicionamento internacional. 

Resumidamente, em relação aos métodos, defendia que a luta armada era o “traço característico” da nova fase da luta em Portugal inaugurada com o início da guerra colonial, dando como exemplo da revolta do proletariado, o seu desejo de ensaiar as armas”, o assalto ao quartel de Beja em 1962 e assinalando como setores da pequena-burguesia procuravam a aliança da classe trabalhadora e “orientam-se no sentido da insurreição armada”. Sobre as alianças de classe defendia a independência face à “burguesia liberal antifascista” e o estabelecimento duma aliança direta com o campesinato pobre, por cima dos seus “representantes burgueses”. No plano internacional, por fim, defendia as posições da República Popular da China, acusando os dirigentes soviéticos de “revisionismo”. 

Na realidade, Martins Rodrigues e os seus camaradas apenas trocaram o alinhamento com uma burocracia “revisionista” e contrarrevolucionária por outra. Talvez nos anos 60 fosse possível a uma imaginação e voluntarismo fogosos acalentar expetativas sobre o papel da burocracia chinesa, mas hoje não é mais possível ignorar o papel reacionário que esta teve em várias partes do mundo. Mesmo em relação a Portugal, onde pouca influência jogou, podemos ler nas transcrições do encontro de 1975 entre o presidente americano Ford e Mao Tse Tung, como dias após o golpe do 25 de Novembro e a derrota da revolução portuguesa, Mao avaliava a situação no nosso país como “mais estável” e “muito melhor” (pag. 46). 

Quanto ao plano das alianças de classe, nomeadamente com o campesinato pobre, isto também nunca passou duma manifestação de intenções, como uma dúzia de anos mais tarde, já em 1976, no congresso do PCP(R) onde então militaria Martins Rodrigues se reconhecia: “Em estado ainda mais atrasado que a unidade da classe operária encontra-se a aliança operário-camponesa”. É verdade que, mesmo para um partido de massas com um programa e métodos corretos, essa seria sempre uma difícil tarefa dadas as condições de atraso e isolamento em que vivia o campesinato, quanto mais para um pequeno grupo cujos programas e métodos nem eram assim tão corretos… Restava, portanto, como o grande “separador de águas” em relação ao PCP a questão da luta armada.  

Tendo rompido com o PCP já no exílio para onde fora após a fuga de Peniche, será no estrangeiro que Martins Rodrigues irá recrutar os primeiros quadros, entre outros João Pulido Valente e Ruy Espiney com quem formará o Comité Marxista-Leninista Português (que deveria tornar-se o embrião do futuro partido comunista) e da Frente de Antifascista Portuguesa (que se propunha ser o movimento unitário onde se estabeleceria a aliança com aqueles setores da pequena-burguesia que “se orientavam no sentido da insurreição armada”). E seria a FAP, precisamente, a organização a ser chamada a desenvolver a “luta armada”. 

Em 1965, com o exotismo “revolucionário” da China demasiado distante e a aliança operário-camponesa como pouco mais do que um desejo intangível, reentraria em Portugal na situação de clandestinidade este núcleo duro da FAP/CMLP para fazer dos métodos de luta, isto é, da luta armada, o elemento verdadeiramente diferenciador em relação ao PCP. 

Martins Rodrigues tinha visto no Assalto ao quartel de Beja a “revolta do proletariado, o seu desejo de ensaiar as armas” mas, não obstante a participação de alguns militantes do PCP à revelia dos desejos da direção do partido, esta ação estava muito mais em linha com o reviralho da oposição burguesa e republicana dos anos 20 e 30 à ditadura (que conjugava elementos civis e militares na ação conspirativa), do que propriamente prelúdio ou consequência direta duma ação insurrecional verdadeiramente de massas, por parte da classe trabalhadora. A facilidade com que o assalto foi dominado deveria ter dado pistas sobre esta questão? Em retrospetiva é inapelável concluir que (com a óbvia exceção das lutas de libertação dos povos africanos) só a partir do final da década se desenvolveriam ações de luta armada que foram ainda assim esporádicas, de baixa intensidade e muitas vezes “simbólicas”, resultando não do culminar de lutas operárias, mas como ações de terrorismo individual que seriam levadas a cabo, já nem por movimentos de inspiração maoistas, mas por organizações como LUAR, Brigadas Revolucionárias e… até a Ação Revolucionária Armada que o próprio viria a PCP formar, tentando assim responder às críticas políticas elaboradas à sua esquerda. 

Sobretudo, se Salazar tremera entre 1958 e 1962 com a candidatura de Humberto Delgado à presidência, o início da guerra colonial, a queda da “Índia portuguesa”, os golpes de Botelho Moniz e de Beja, o assalto ao Santa Maria, a crise académica de 62 ou a “luta pelas 8 horas”; a partir desse ano de 1962, tendo sobrevivido, o regime conseguiria estabilizar a situação até à chamada “Primavera marcelista” quando se irá reacender novamente a luta oposicionista.  

Foi neste contexto de refluxo que o pequeno grupo de Martins Rodrigues tentará impulsionar a luta armada com consequências que se revelariam desastrosas. Pois na ausência duma luta de massas, trataram de impulsioná-la pelo exemplo e pelas suas próprias mãos atirando (de acordo com a acusação que seria mais tarde feita nos tribunais da ditadura) um cocktail molotov contra uma esquadra da PSP, outro sobre a “Escola Técnica” da PIDE e matando um informador infiltrado pela polícia política, que provocara a prisão de Pulido Valente. 

Esta última ação temerária revelar-se-ia fatal: nem a PIDE poderia deixar passar em claro tal ato, tendo caído com todo os seus recursos em cima da FAP/CMLP, nem o grupo tinha um aparato organizativo montado que lhe permitisse suster subsequente golpe da polícia, como anos mais tarde confessaria Martins Rodrigues: “depois de termos feito aquela asneira, a única coisa a fazer era rasparmo-nos para a província. Não tínhamos muito dinheiro, também havia esse problema. Na prática, todo o grupo no interior do país foi preso e a organização desmantelada, também por efeito da cedência de Martins Rodrigues à violenta tortura a que foi sujeito nos calabouços da PIDE.  

Este foi um momento determinante para a evolução do maoismo em Portugal: não apenas o desmantelamento da FAP/CMLP e a prisão dos seus mais importantes militantes mas, também o próprio porte na prisão de Martins Rodrigues condenaria este movimento, órfão a partir daqui duma direção com força e autoridade políticas, a estilhar-se nos anos seguintes em diversos grupos por entre inúmeras e bizantinas querelas e cisões às quais a sua composição social (com grande peso de estudantes de origem pequeno-burguesa) não seria, de todo, estranha.  

Deixando de parte o julgamemento quase exclusivamente moral que o CMLP no exílio faria dos dirigentes presos em Portugal, o que valorizamos destacar é que, independentemente de acontecimentos fortuitos, qualidades morais ou capacidades de resistência física deste ou daquele dirigente à tortura, foram análises incorretas e métodos políticos errados, como a fetichização de determinadas formas de luta, que jogaram o papel determinante na queda da FAP/CMLP e na subsequente desorientação e pulverização do movimento que pretendia inspirar. 

Seria necessário esperar uns anos, já sob influência da chamada “revolução cultural chinesa” e do Maio francês, para que já durante o marcelismo e com o arrastar da guerra colonial, o maoismo voltasse a ganhar fôlego, ainda que bastante dividido em pequenas seitas e capelinhas. 

O papel do maoismo na revolução portuguesa 

A guerra e a revolução sempre colocam sob teste todas as correntes de pensamento e todas as organizações políticas. E, muito resumidamente, o maoismo falhou em toda a linha durante a revolução portuguesa. Algumas organizações, como o MRPP ou o PCP(ml), chegaram mesmo ao extremo de, durante o golpe do 25 de Novembro, se colocarem ao lado de Soares, Eanes e Jaime Neves. Na cabeça deles estavam a derrotar o golpe “social-fascista” do PCP, mas na prática juntaram-se aos coveiros da revolução portuguesa, garantido à burguesia (finalmente) o total controlo sobre as suas forças armadas, através do saneamento dos oficiais da esquerda militar. 

Tanto nas ruas de Barcelona em 37, como nos quartéis de Lisboa em 75, o estalinismo (mesmo quando trasvestido com um verbalismo “radical”) jogou sempre o mesmo papel contrarrevolucionário. E quando olhamos o posicionamento das várias forças políticas de esquerda no 25 de novembro, facilmente descodificamos as responsabilidades de cada uma na derrota: desde o PS que ativamente conspirou, ao PCP que aceitou o golpe a troco de garantias da sua integração no regime democrático–burguês novembrista, passando pelo desnorte e impotência, face aos acontecimentos, das várias organizações da extrema-esquerda, indo até àqueles maoistas que colaboraram ativamente no golpe como o MRPP e PCP(ml)  – este último era em Portugal o partido oficialmente reconhecido pelo PC da China. 

E, finalmente, quando se dá o 25 de Abril, embora continuassem a inspirar um sector radicalizado da juventude e da classe trabalhadora, os regimes estalinistas já não tinham, em meados dos anos 70, o mesmo prestígio e autoridade política que tiveram no imediato pós-segunda guerra mundial. Pelo contrário, essa exaltação constante de Estaline, Mao ou Enver Hoxha podendo ser pessoalmente gratificante para os ativistas, apenas poderia afastar (como afastou) a enorme massa da classe trabalhadora dessas organizações. Longe de se apresentarem como alternativa a um modelo burocratizado de “socialismo”, os maoistas, pelo contrário, assumiam-se como os seus mais puros defensores face ao “revisionismo” da URSS e do PCP. Tome-se o exemplo da Albânia, glorificada pelos maoistas e que, na época, era provavelmente o país mais isolado e autárquico do mundo, governado com mão de ferro por uma casta burocrática “comunista”, sendo, portanto, o que hoje ainda é a Coreia do Norte…  

Anos mais tarde Francisco Martins Rodrigues afirmaria que o proletariado não esteve à altura de meter na ordem a burguesia”. Mas não esteve porquê? Porque face às alternativas que lhe foram apresentadas, a maioria dos trabalhadores, ao fim duma ditadura de 48 anos, preferiu aderir à promessa do “socialismo em liberdade” de Soares face à perspetiva de reproduzir em Portugal os regimes burocratizados que existiam na China, Albânia ou mesmo na URSS?  

Pelo contrário, recusamos em absoluto a conclusão de Martins Rodrigues de que “a revolução socialista não tinha condições para ser levada a cabo”. Como recusamos também a mesmíssima perspetiva que tinha o líder do PCP Álvaro Cunhal para quem o processo revolucionário do 25 de Abril seria apenas “uma etapa primeira e necessária para a [futura, num tempo indeterminado] revolução socialista”. Não é curiosa a convergência de opiniões deste dois? 

Na verdade, estiveram reunidas todas as condições para o triunfo da revolução socialista. Foi a iminência da derrota militar em África e a crise do capitalismo português que precipitou o 25 de Abril, inaugurando um processo revolucionário que durou 18 meses.  À divisão, crise e impotência da classe dominante, somou-se (nem sequer a neutralidade!) mas a simpatia e adesão de amplas camadas da pequena-burguesia para o campo do proletariado, como o atestam as divisões no exército e a emergência de tantos e tantos oficiais que, malgrado as suas contradições e insuficiente preparação política, genuinamente abraçaram a causa revolucionária! Por fim, que mais se poderia ter pedido aos trabalhadores portugueses naquela época? Sem uma direção revolucionária foram capazes de derrotar vários golpes de Estado, impor as nacionalizações, fazer a reforma agrária, começar a autogerir centenas de fábricas e herdades, ocupar casas, prédios inteiros! Constituíram milhares de comissões de empresa e de bairro, forjaram poderosos partidos e sindicatos… Não houve falta de combatividade ou ausência de consciência de classe: foi a inexistência do chamado fator subjetivo, dum partido revolucionário de massas capaz de erguer uma bandeira limpa sem a mácula da degeneração estalinista, capaz de unificar a classe trabalhadora para terminar as tarefas da revolução – abolir o capitalismo e desmantelar o Estado burguês – que perdeu a revolução. 

Mas a rejeição do maoismo pela esmagadora maioria dos trabalhadores não se resumiu ao modo como a classe percecionava o estalinismo em abstrato ou de como valorizava os alinhamentos internacionais. Foi também a atuação política concreta destas organizações que as isolou, a começar pelo seu crónico sectarismo 

 É verdade que no dealbar da revolução, a 25 de Abril, havia uma miríade de organizações maoistas e que isso era um óbice ao seu desenvolvimento e implantação. Mas o enredo não era, apesar de tudo, assim tão complexo: essencialmente existiam o PCP(ml), o MRPP e depois uma dúzia de grupos que iriam desaguar primeiro e parcialmente na UDP em 75, e na sua totalidade no PCP(R) já só em 1976, num processo de unificação impulsionado pelos antigos dirigentes do CMLP (Rodrigues, Espiney, Pulido Valente) e absurdamente prolongado no tempo. 

Ainda assim, uma organização sã, com ideias clara e com métodos corretos, poderia ter-se desenvolvido e conquistado os setores mais avançados do PCP e até do PS, onde não obstante o carácter social-democrata da sua direção, existia uma militância de base combativa e de esquerda. Porém, estas organizações padeciam dum sectarismo terrível. 

Ao recusarem (e bem) o “frentismo popular” do PCP que o levou ao governo provisório e à colaboração de classes, foram os maoistas cair no erro oposto, adotando as (também estalinistas) teses do social-fascismo do chamado “terceiro período”, equiparando a URSS ao imperialismo americano e as organizações reformistas aos fascistas. Seria, por exemplo, como hoje compararmos Paulo Raimundo e Mariana Mortágua dum lado com André Ventura do outro, ou considerarmos, por exemplo, que tanto dá termos 50 deputados do Chega no Parlamento ou 50 deputados da CDU e Bloco de Esquerda porque, no fim do dia, todos eles servem os interesses da burguesia.  

Foi também por causa deste delírio sectário, do muro que ergueram entre eles e o conjunto da classe que, malgrado o PCP e o PS, ao entrarem no governo provisório, se terem tornado (cada um no seu modo) nos principais obstáculos à revolução proletária; foi por causa desse sectarismo – insistimos – que foram os grupos maoistas incapazes de disputar a hegemonia dos reformistas e conquistar-lhes a sua base social de apoio. Na verdade, os maoistas ao recusarem qualquer diálogo, qualquer apelo à unidade na ação e, pelo contrário, ao compararem os militantes comunistas aos fascistas e exigindo a sua expulsão dos sindicatos, apenas simplificaram a vida (principalmente) à direção do PCP, que era o seu principal alvo e que facilmente os podia acusar de apenas serem “agentes provocadores”, fazendo o “jogo da reação” através de “campanhas caluniosas” e “sistemáticos ataques” ao partido.  

É evidente que a crítica ao reformismo deve e tem de ser feita, que em momento algum se devem iludir ou diluir as diferenças políticas, mas a crítica ao reformismo é um elemento do combate político que visa subtrair a classe à influência das direções reformistas, não é um imperativo moral para a salvação da alma. Andavam com Lenine ao peito, mas nada compreendiam do que Lenine tinha escrito…  

É verdade que, pela sua combatividade, foi possível à chamada extrema-esquerda e aos grupos maoistas ganharem posições importantes em empresas-chave como a Lisnave, TAP ou Timex… onde as manobras conciliadoras do PCP ficariam mais expostas: basta recordar como o PCP se opôs tenazmente à primeira grande vaga grevista dos pós 25 de Abril nos meses de maio/junho, denunciando-a como “manobras da contrarrevolução”  e dos “aventureiros de esquerda”  e chegando até a convocar um comício contra a greve! Porém, apesar de greves, manifestações e lutas importantes que promoveram e até lideraram ao longo dos 18 meses de revolução, as organizações maoistas falharam na conquista da classe trabalhadora à influência das direções reformistas do PCP e do PS.  

A este propósito tome-se os resultados eleitorais de 1975 e 1976. Em 1975, nas eleições à Constituinte, a soma dos votos da UDP, PUP e FEC foi de 91140 votos. Em 1976 nas primeiras eleições legislativas, a UDP que, entretanto, absorvera a PUP e FEC, obteve 91690 votos.  Se estes resultados ilustravam que havia uma base considerável (somem-se ainda em 1976 os 36 mil votos do MRPP e os 15 mil da AOC/PCP(ml), impedidos de concorrer em 1975), também demonstravam como este sector mais radicalizado permaneceu, durante a tormenta da revolução e da contrarrevolução, hermeticamente separado do conjunto da classe, sem avançar um passo.  

Havia um problema de métodos, mas também um problema de programa, de perspetivas e de estratégia. Se o PCP defendia uma revolução “democrático-nacional”, os maoistas (seguindo também a conceção menchevique e depois estalinista das “duas etapas”) defendiam a revolução “democrático-popular”. E o que era a revolução democrático-popular? Leiamos a resolução política aprovada no congresso de fundação do PCP(R):   

“É a Revolução dum país capitalista dependente, onde as grandes massas da cidade e do campo aspiram a transformações democráticas, à independência e ao bem-estar. Revolução democrática pois não visa a destruição imediata das relações de produção capitalistas e a construção do socialismo integral, nem tem como inimigo a burguesia no seu conjunto.” 

E, tal como o PCP, também o PCP(R) alertava que “agitar a «revolução socialista» como palavra de ordem imediata, como fazem certas correntes políticas, significa dividir o povo”! (ibidem). Na verdade, o que seria necessário agitar seria um programa de transição que fizesse a ponte entre as reivindicações democráticas e as tarefas socialistas da revolução… Mas que separava esta “democracia popular” da “revolução democrático-nacional” antimonopolista, mas não anticapitalista, democrática, mas não socialista que era defendida pelo PCP?  

Na verdade, nada. Apenas vinha adornada com a retórica da “luta armada”! Ou como referia o mesmo documento citado, “o regime democrático popular estabelece-se pelo derrubamento violento do poder atual”.  

Porém e “como o diabo está nos detalhes”, se o carácter da revolução iniciada no 25 de Abril não tinha um carácter socialista, se esse não era o horizonte “imediato”, então, necessariamente o “derrubamento violento do poder atual” (saído do 25 de Abril) seria não a obra da classe trabalhadora (incluindo-se aqui os trabalhadores fardados conscritos ao exército)  e organizada em torno dos seus órgãos de classe (os sovietes, ou no caso português, as “comissões”), que tomariam para si as funções do Estado assaltando o poder, mas o fruto da constituição duma mirífica “Frente Antifascista Patriótica”… com a pequena burguesia tanto civil como militar.  

Parecem minudências, mas isto tinha consequências práticas óbvias. Não obstante toda a algazarra e radicalismo verbal, se os maoistas, no contexto do PREC, negavam à classe operária e aos seus embrionários órgãos de poder a capacidade e possibilidade de fazer a revolução socialista,  então o “derrube violento do poder atual” seria feito não pelos operários armados (como em Petrogrado em 1917), nem sequer por uma qualquer guerrilha camponesa (como na China em 49) para a qual não havia um mínimo de condições mas, essencialmente, através daqueles militares “antifascistas e patrióticos” do MFA com quem (entre outros sujeitos sociais) estabeleceriam a tal Frente

E assim, bem podiam os maoistas espernear e fazer todas as juras do mundo sobre a putativa “hegemonia do proletariado” no processo da revolução “democrático-popular” e no seio da “Frente Antifascista Patriótica”… porque, não obstante os discursos e proclamações, como explicava uma das uma das mais conhecidas máximas de Mao Tse Tung, “o poder está na ponta da espingarda”.  

Ora estando o poder na ponta da espingarda e não tendo uma visão, uma ideia clara sobre a revolução e as suas tarefas, tinham-se inevitavelmente tornado (os maoistas da UDP), ao longo de 1975, num atrelado político daquele sector de oficiais esquerdistas do MFA que gravitavam em torno de Otelo. 

É por isso que, nas vésperas do 25 de Novembro, ao invés de defenderem um programa de classe para derrotar o iminente golpe da direita, tudo o que tinham a propor… era o documento do COPCON!  E para tornar as coisas piores, ao invés de apelarem à Frente Única dos partidos operários em torno dum programa de classe (que na verdade nem tinham) que combatesse o golpe contrarrevolucionário em perspetiva, a prioridade era “rejeitar os inimigos infiltrados no seu seio: o Partido de Cunhal”!  

Sem rumo nem perspetivas, agitavam um documento que, em Agosto, cristalizara a divisão da esquerda militar e contribuíra para a queda do” setor gonçalvista”, quando (na prática) o grupo de Otelo se uniu aos chamados “moderados” para isolar a ala mais afeta ao PCP dentro do MFA e derrubar o Vº Governo Provisório… Mas que dizia a “Proposta de Trabalho do COPCON”? Dizia coisas muito bonitas, estava cheio de floreado e de boas intenções. Porém, era um documento redigido pelos “oficiais progressistas” que propunham à classe trabalhadora o reforço do poder popular sob o guarda-chuva e tutela… da Aliança POVO-MFA…! Isto é: deles próprios. E era assim, atrelados ao Documento do COPCON e a Otelo Saraiva de Carvalho, em última instância à aliança Povo-MFA que, na véspera do 25 de Novembro, os maoistas defenderam a “independência de classe” e a “hegemonia do proletariado”!  No que se diferenciavam do PCP? Apenas na ala militar que cortejavam. 

Há um adágio popular que diz “o respeitinho é muito bonito”. E por ser muito bonito é que, em vésperas dum golpe contrarrevolucionário e duma possível guerra civil, estes nossos maoistas da “luta armada” e do “derrubamento violento do poder atual” não fizeram um único apelo ao armamento da classe trabalhadora ou a constituição de comités de autodefesa nas empresas, nas fábricas, nos bairros operários, porque isso era algo que os oficiais “progressistas” do COPCON (que queriam manter nas forças armadas o monopólio da força) não estavam em condições de aceitar. Na verdade, nem sequet fizeram agitação em torno da grande arma da classe trabalhadora: a greve geral. Tudo o que fizeram foi apelar à “vigilância” e bradar chavões vazios como “ofensiva popular” ou “nem soares, nem Carneiro, nem Cunhal, Independência Nacional” que podiam rimar, mas apontavam para nada…  

Mesmo após os acontecimentos do 25 de Novembro e da capitulação de Otelo ao Grupo dos 9 (nesse dia entregando-se no palácio de Belém e deixando os seus camaradas do COPCON sem uma liderança político-militar) continuaram como apêndice de Otelo ao longo de todo o ano de 1976, apoiando-o alegre e acriticamente à corrida presidencial, incensando a sua figura de “herói do povo”, fomentando os Grupos de Dinamização de Unidade Popular (GDUPs) com os quais aspiravam a unir a esquerda radical na tão glosada “frente antifascista e patriótica! em torno do antigo chefe do COPCON… Até que próprio Otelo se cansou e se foi embora para se dedicar ao “Projeto Global”

Não deixa de ser uma suprema ironia que, tendo sido, anos mais tarde, tão crítico da “mitologia de Abril”… tenha Francisco Martins Rodrigues contribuído na prática (e de que maneira!) para a criação desse grande mito de Abril em torno de Otelo Saraiva de Carvalho, líder operacional das movimentações militares do dia 25 de Abril, major do exército que (acreditamos) genuinamente se radicalizou ao longo do processo revolucionário, mas que foi um expoente máximo das hesitações, tergiversações e contradições que nem os mais honestos e mais progressistas oficiais do MFA souberam superar… 

Finalmente, o que foi uma tragédia com os grupos maoistas da UDP/PCP(R), foi mais ainda…  uma amarga comédia com o MRPP e o PCP(ml) que, defendendo também eles essencialmente o mesmo programa, métodos e perspetivas que os primeiros, tornaram-se, por sua vez e em sentido inverso (pois na sua ótica era o social-fascismo e não o fascismo a maior ameaça à classe trabalhadora portuguesa), num apêndice dos militares “patriotas” e “anti-social-fascistas” do Grupo dos Nove e de Ramalho Eanes que iriam apoiar no golpe do 25 de Novembro e nas eleições presidenciais de Junho de 1976! Objetivamente estiveram na barricada da contrarrevolução. Não há muito mais que se possa dizer. 

Em retrospetiva, face aos acontecimentos da época, à evolução posterior destes grupos e em jeito de conclusão, é impossível negar que o maoismo foi um beco sem saída para uma geração de combatentes muito empenhados, mas também muito equivocados. O mesmo maoismo que se tornou, numa determinada conjuntura, um polo de atração para quem procurava uma alternativa revolucionária, nada tinha a oferecer se não os piores vícios e erros do estalinismo. No fim, o PCP(ml) desapareceu ainda nos 70, o MRPP foi definhando até hoje ser uma sombra da caricatura daquilo que havia sido e no PCP(R)/UDP, no início dos anos 90, discretamente enterraram o estalinismo/maoismo das suas origens e ajudaram depois a fundar o Bloco de Esquerda.  

A História, contudo, não terminou com a derrota dessa geração. 50 Anos passaram, mas o capitalismo foi incapaz de resolver um só das suas contradições. Vivemos, pelo contrário, um período que só se pode caracterizar como de crise sistémica em face da austeridade permanente, da crise ambiental e das guerras infinitas que o sistema capitalista tem para oferecer às novas gerações. O seu derrube é tão necessário como há 50 anos.  

Há, porém, um estandarte que continua imaculado: o bolchevismo. As ideias revolucionárias de Marx e Engels que Lenine e Trotsky defenderam, aplicaram e desenvolveram na revolução de Outubro e na 3ª Internacional. Aos jovens e trabalhadores que hoje procuram uma alternativa revolucionária, o Coletivo Comunista Revolucionário vos convida a estudar essas ideias e a organizarem-se connosco para derrubarmos o Capitalismo e finalmente cumprirmos Abril, fazendo da revolução portuguesa um elo da revolução mundial! 

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