Artigo de Hamid Alizadeh
No outono de 1914, Lenine iniciou um estudo pormenorizado dos escritos de Hegel. As suas notas contêm uma visão brilhante do método dialético, do qual era mestre. Neste artigo, Hamid Alizadeh expõe os aspectos essenciais deste método, sublinhando a importância fundamental da teoria para o movimento comunista.
No verão de 1914, eclodiu a guerra na Europa e o curso da história mundial mudou de um dia para o outro. Com a bênção dos traiçoeiros dirigentes sociais-democratas, a burguesia europeia arrastou a humanidade para uma espiral de carnificina infernal, na qual dezenas de milhões de trabalhadores e camponeses foram enviados para a matança.
A traição da liderança destruiu a Segunda Internacional, a principal organização do movimento operário internacional, deixando o proletariado mundial indefeso enquanto a reação erguia a sua feia cabeça por todo o lado. Entretanto, as forças do marxismo revolucionário tinham sido reduzidas a uma pequena minoria, espalhada pela Europa e sem uma plataforma ou direção claras.
Lenine encontrava-se na Polónia quando a guerra rebentou e teve de se mudar apressadamente para a Suíça. Não tinha previsto a traição dos dirigentes da Internacional e ficou inicialmente chocado ao ouvir a notícia de que o partido alemão tinha votado a favor dos créditos de guerra no Reichstag. Agora a Internacional estava em ruínas, a luta de classes na Rússia estava a recuar perante a guerra e Lenine estava isolado de todos os seus camaradas, exceto de um punhado deles.
No entanto, precisamente neste momento, quando as tarefas organizacionais e políticas imediatas se tornavam maiores do que nunca, Lenine lançou-se num estudo aprofundado da filosofia hegeliana. Mas porquê dar-se ao trabalho, perguntarão alguns, de mergulhar em questões teóricas abstractas numa tal crise? Para o espírito mecânico, isto pode parecer estranho e até ridículo. E as “necessidades” do partido? Certamente que a tarefa numa situação destas é concentrarmo-nos nas questões práticas imediatas que temos em mãos!
Tal resposta harmonizar-se-ia certamente com o retrato burguês grosseiro de Lenine como um filisteu, o chamado homem de ação; um severo “mestre conspirador” que não se entregava a questões tão triviais como a contemplação filosófica – uma imagem, aliás, da qual a caricatura estalinista de Lenine não se afasta muito.
Na realidade, esta visão contrasta fortemente com o verdadeiro método de Lenine e do marxismo em geral. O que distinguia Lenine dos outros líderes da Segunda Internacional era, antes de mais, a sua clareza e a sua posição de classe consistente – qualidades que se baseavam unicamente na sua visão teórica.
Em 1914, a guerra assolou a situação mundial como um tornado gigante, rasgando tudo o que era firme e sólido no seu caminho. Todos os países foram lançados num estado de violenta turbulência. Todas as tendências políticas foram postas à prova e a mais pequena fraqueza foi impiedosamente exposta. Nestas condições, a improvisação impressionista não podia conseguir exatamente nada.
Os marxistas tinham previsto a guerra. No entanto, tratava-se de uma situação nova, que exigia uma reorientação hábil do partido. Foi neste contexto que Lenine iniciou uma nova viagem pela filosofia, como forma de aprofundar a sua compreensão das leis da natureza e da sociedade.
Os seus cadernos filosóficos deste período, e em particular as suas notas sobre a Ciência da Lógica de Hegel, não só são um tesouro de ideias, como também nos fornecem uma descrição muito instrutiva da abordagem e atitude de Lenine em relação à teoria.
O método de Lenine
Lenine não era de modo algum um estranho a Hegel ou à filosofia em geral. Estudou atentamente as obras filosóficas de Marx e Engels, bem como os escritos filosóficos de Plekhanov, que desempenharam um papel fundamental no desenvolvimento do núcleo inicial dos revolucionários marxistas na Rússia.
Também iniciou um período de estudo filosófico sério após a revolução de 1905 e escreveu um livro, Materialismo e Empirio-Criticismo, contra as ideias revisionistas de Bogdanov, um líder bolchevique que tinha entrado na órbita da filosofia burguesa reacionária.
Assim, como revelam os seus cadernos filosóficos, Lenine já era um mestre da dialética antes de 1914. No entanto, nunca se sente nele o mais pequeno indício de autossatisfação confortável com o seu nível político e teórico. Durante toda a sua vida, como é apanágio de qualquer mestre, Lenine abordou a teoria com a humildade e a diligência de um estudante.
Percorreu metodicamente a Ciência da Lógica de Hegel, tomando notas pormenorizadas e contemplando cada um dos conceitos nela apresentados. Esta não foi, de forma alguma, uma tarefa fácil. Segundo as suas próprias palavras, algumas partes da obra parecem ser “o melhor meio para ter uma dor de cabeça!”[1] Mas nada que valha a pena vem sem uma luta, e a aquisição das ideias mais avançadas exigirá, necessariamente, um trabalho sério.
Nas suas notas podemos ver como Lenine, como um anatomista, dissecou e avaliou cuidadosamente cada parte da obra de Hegel, antes de as juntar e ver as ideias como um todo. Ao fazê-lo, não só dominou o método de Hegel, como também o criticou, separando o núcleo vivo da sua casca morta. O método de estudo de Lenine era em si mesmo uma aula magistral de dialética. Trotsky resumiu esta abordagem no seu artigo “Como Lenine estudou Marx”:
“O estudo, que não é apenas uma repetição mecânica, envolve também um esforço criativo, mas de tipo inverso: Resumir a obra de um outro homem é pôr a nu a estrutura esquelética da sua lógica, retirando as provas, as ilustrações e as digressões. Com alegria e fervor, Vladimir avançou por esse caminho difícil, resumindo cada capítulo, às vezes uma única página, enquanto lia e pensava e verificava a estrutura lógica, as transições dialéticas, a terminologia. Apropriando-se dos resultados, assimilou o método. Subiu os degraus sucessivos do sistema de outro homem como se ele próprio o estivesse a construir de novo. Tudo isso ficou firmemente alojado nesse cérebro maravilhosamente bem ordenado sob a poderosa cúpula do crânio.” [ 2]
Os cadernos filosóficos de Lenine são o testemunho da sua mente determinada, que procurava incessantemente novas ideias e ângulos que pudessem expandir a sua compreensão do mundo que o rodeava. Embora tenha abordado as questões organizacionais com a máxima flexibilidade, a sua insistência na clareza teórica foi o que o distinguiu como um líder extraordinário e o Partido Bolchevique como a única tendência consistentemente revolucionária do seu tempo.
Precisamos de filosofia?
“Sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário. Nunca é demais insistir nesta ideia, numa altura em que a pregação do oportunismo na moda anda de mãos dadas com uma paixão pelas formas mais estreitas de atividade prática.” [ 3]
Muitos comunistas são capazes de citar de memória as famosas palavras de Lenine – ou pelo menos a primeira frase – e não perdem uma oportunidade para o fazer. Mas será que isso significa que compreendem todo o seu significado? A familiaridade pode ser traiçoeira. Pode levar as pessoas a uma falsa sensação de certeza, impedindo-as assim de compreender a profundidade das coisas.
Aqui vemos a diferença entre o marxismo e o empirismo que caracteriza a filosofia burguesa atual. Para os marxistas, o imediato é apenas um instantâneo; uma lasca ou um aspeto de um determinado fenómeno, que deve ser estudado, desdobrado e compreendido na sua totalidade concreta. Para o empirista, o imediato é tudo o que existe e tudo o resto é um livro selado com sete selos.
Os reformistas adoptam acriticamente a filosofia burguesa e, tal como os seus mestres, baixam a cabeça e dobram os joelhos perante o chamado “facto estabelecido”. É aqui que reside o núcleo filosófico do oportunismo.
A abordagem dos reformistas à Primeira Guerra Mundial é um exemplo disso mesmo. Cada uma das classes dominantes da Europa abordou a guerra do ponto de vista dos seus estreitos interesses nacionais, que justificaram com referência a elevadas abstracções, como a “defesa da pátria” ou o “direito das nações à autodeterminação”.
E foi assim que os governantes de uma nação após a outra entraram na guerra após o assassinato do arquiduque Francisco Fernando, cada um culpando o outro por ter provocado as hostilidades. É nesta medida que os burgueses entendem a Primeira Guerra Mundial: como uma série de decisões tomadas por uma série de governantes. À superfície das coisas, este curso de acontecimentos teve lugar, é certo, mas há mais do que a sua aparência superficial.
Os sociais-democratas da época defendiam o mesmo ponto de vista, embora com uma retórica de esquerda. Os sociais-democratas austríacos fizeram eco dos sentimentos anti-russos e anti-sérvios do partido da guerra em Viena. Plekhanov e os oportunistas da social-democracia russa falavam da ameaça do imperialismo reacionário alemão e da necessidade de ajudar a Sérvia oprimida. Entretanto, os sociais-democratas alemães votaram a favor dos créditos de guerra com base na necessidade de travar o imperialismo reacionário russo, e assim por diante.
Todos eles viam a guerra apenas na perspetiva da sua própria classe capitalista nacional e, com base nisso, apressaram-se a correr para a “defesa da pátria”, votando com entusiasmo o envio de milhões de trabalhadores para a morte.
Lenine, por outro lado, explicou que a guerra era um produto de todo o período anterior de desenvolvimento capitalista. O surgimento de gigantescos monopólios industriais e o domínio do capital financeiro marcaram uma nova etapa na história do capitalismo, na qual a necessidade constante de exportar capital havia impulsionado os países avançados e imperialistas a uma luta feroz pela divisão e redivisão do globo, em busca de campos de investimento, mercados e esferas de influência.
Em tais condições, Lenin explicou, a “defesa da pátria” era meramente um disfarce para a defesa dos interesses estreitos das classes dominantes de cada nação – isto é, no interesse dos exploradores e opressores do proletariado e das massas trabalhadoras pobres.
Vemos aqui, na prática, a diferença entre aceitar cegamente a filosofia dominante da classe dominante e adotar um ponto de vista filosófico revolucionário consciente.
Na fase ascendente do capitalismo, a filosofia burguesa foi utilizada como uma arma poderosa contra o feudalismo e os seus defensores ideológicos na Igreja Católica. Sob a bandeira da ciência e da razão, expôs a hipocrisia e a irracionalidade da sociedade feudal.
Mas com a classe capitalista num beco sem saída, a natureza da sua filosofia também mudou e tornou-se inteiramente conservadora. Tal como os dogmas da Igreja que outrora combatia, as doutrinas burguesas dos nossos dias defendem o status quo.
Enquanto as antigas doutrinas da igreja prescreviam a fé e as escrituras como o caminho para a verdade, o establishment académico de hoje e outros especialistas pagos pregam a irracionalidade da natureza e da sociedade e elevam a experiência subjectiva imediata – a sua experiência subjectiva, para ter a certeza! – como sendo tudo o que existe.
No passado, os clérigos pregavam sobre a “ordem divina das coisas”, com o rei no topo, seguido pelos senhores feudais e, na base, as classes mais baixas. Hoje, os sumos sacerdotes do capital pregam a inviolabilidade do capitalismo – o mercado, a propriedade privada, o Estado-nação e todo o estrume moral reacionário que estes trazem consigo – como a essência imutável da humanidade.
A filosofia burguesa transformou-se, por necessidade, no seu oposto. Em vez de revelar a verdade, o verdadeiro objetivo das ideias que são agora disseminadas através da religião oficial, dos meios de comunicação social, das escolas, etc., é encobrir a verdade.
A verdade é, portanto, a arma mais importante da classe trabalhadora. Como todas as classes revolucionárias que o precederam, o proletariado deve adotar uma filosofia revolucionária consciente se quiser compreender o funcionamento do capitalismo e a forma como o sistema pode ser abolido.
Pensamento abstracto
Como Lenine escreve no seu conspecto da Lógica de Hegel:
“A verdade é concreta”,[ 4] Lenine repetiu muitas vezes, depois de Hegel. E o marxismo lida, antes de mais, com a verdade. Mas isso não significa que o pensamento abstrato, enquanto tal, não seja verdadeiro. Longe disso.
“O pensamento que parte do concreto para o abstrato – desde que seja correto (NB) (…)
– não se afasta da verdade mas aproxima-se dela. A abstração da matéria, de uma lei da natureza, a abstração do valor, etc., em suma, todas as abstracções científicas (corretas, sérias, não absurdas) reflectem a natureza de forma mais profunda, verdadeira e completa“. [ 5]
O verdadeiro conhecimento não é o mero empilhamento de factos uns em cima dos outros. O objetivo é compreender a relação entre esses factos. É esse o papel da
filosofia: fornecer-nos uma visão do mundo, um método de abordagem da natureza e da sociedade que nos rodeia. O pensamento abstrato é verdadeiro na medida em que reflecte a realidade. A questão principal é, evidentemente, saber como podemos chegar a essa verdade.
Dialética
A revolução filosófica de Hegel baseou-se no seu objetivismo – ou seja, na sua crença de que o mundo existe independentemente da humanidade e que funciona com base nas suas próprias leis inerentes. Nesta base, a tarefa da ciência e da filosofia não é inventar um sistema para arrastar à força o mundo, mas investigar o mundo tal como ele é, por sua própria conta, e assim deduzir as leis que o governam.
Na sua Lógica, Hegel conduz brilhantemente este tratamento do próprio pensamento científico. Passo a passo, ele procede ao rastreamento do pensamento humano à medida que ele se desenvolve por conta própria. Começando com o conceito mais simples e geral possível, ele prossegue para expor as leis que governam o pensamento racional como tal.
No início do livro, convida-nos a contemplar o conceito simples de “Ser Puro”. Aqui, Hegel quer dizer “puro” no sentido de que é completamente indeterminado e indiferenciado, sem fronteiras, sem caraterísticas especiais e sem nada em particular que o defina – apenas, puro Ser. Como Hegel observa, não importa o quanto tentemos pensar sobre isso, não podemos dizer nada sobre tal ser, uma vez que qualquer coisa que disséssemos o limitaria e definiria e, portanto, ele não seria mais “puro”.
Por isso, nesta forma pura, não podemos, na realidade, falar de nenhum ser em particular. Chegamos, portanto, à conclusão de que o Ser Puro não é diferente do Nada. A ideia de Ser Puro, por outras palavras, conduz-nos imediatamente à ideia de Nada.
No entanto, após reflexão, descobrimos que este não é o nosso destino final. Afinal, a ideia de “puro nada”, no seu vazio e indeterminação, não é diferente do Ser Puro.
Assim, os dois conceitos transitam um para o outro logo que tentamos fixá-los no nosso pensamento: “cada um desaparece imediatamente no seu oposto”, escreve Hegel.[ 6] E é aqui, nesta unidade do Ser e do Nada, que encontramos um novo conceito ou categoria, a saber, o devir: um conceito superior, que transporta em si o Ser e o Nada.
Neste simples exemplo, ou experiência de pensamento, Hegel delineou o germe de toda a dialética, partindo do princípio fundamental de que tudo está num estado de mudança ininterrupta, de surgimento e desaparecimento.
“Astuto e inteligente!” Lenine comenta: “Hegel analisa conceitos que normalmente parecem estar mortos e mostra que há movimento neles. Finito? Isso significa que se move para um fim! Algo? – significa não aquilo que é Outro. Ser em geral? – significa uma tal indeterminação que Ser = não-Ser”. [ 7]
O caminho da mudança
“Movimento e ‘auto-movimento’ (este NB! movimento arbitrário (independente), espontâneo, internamente necessário), ‘mudança’, ‘movimento e vitalidade’, ‘o princípio
de todo o auto-movimento’, ‘impulso’ (Trieb) para o ‘movimento’ e para a ‘atividade’ – o oposto do ‘Ser morto‘ – quem acreditaria que este é o núcleo do ‘Hegelianismo’, do Hegelianismo abstrato e abstruso (ponderado, absurdo?)? Este núcleo tinha de ser descoberto, compreendido, [resgatado], posto a nu, refinado, que é precisamente o que Marx e Engels fizeram.”[ 8]
Para o empirismo pequeno-burguês, as coisas permanecem iguais ou, na melhor das hipóteses, movem-se de forma circular. Uma vez que hoje é como ontem, amanhã será de novo igual. O estado de coisas existente parece-lhe todo-poderoso e, por isso, não vê outra opção senão queixar-se incessantemente dele, rejeitando qualquer tentativa de romper com ele.
Encontrará sempre formas de provar que o capitalismo veio para ficar, que a classe operária nunca se moverá, ou que o partido revolucionário não pode ou não deve ser construído, e assim por diante. Na medida em que aceita a mudança, atribui-a a forças externas. Em última análise, capitula perante o status quo, porque não o imagina a mudar. Na realidade, porém, essa evolução é inevitável.
“Em parte alguma, no céu ou na terra”, escreve Hegel, “existe algo que não contenha em si tanto o ser como o nada”. [ 9] Embora Hegel não nos forneça exemplos do céu, a terra está saturada deles.
A mudança é o modo fundamental de existência de toda a matéria. Todas as coisas que surgem carregam em si as sementes da sua destruição. Esta luta entre o velho e o novo, entre o ser e o nada, está no centro do desenvolvimento – e o capitalismo não é exceção.
As forças que conduzem à queda do sistema provêm inteiramente do seu próprio seio, nomeadamente o proletariado moderno. A principal caraterística do proletariado é o facto de ser uma classe que não possui qualquer propriedade e que é forçada a vender a sua força de trabalho ao capitalista para sobreviver. Os seus interesses são diretamente opostos aos pilares essenciais do capitalismo: a propriedade privada dos meios de produção e o Estado-nação. Cada passo em frente no desenvolvimento do capitalismo forja os trabalhadores como uma classe formidável em oposição à burguesia, preparando assim a queda dessa mesma classe dominante.
Mas não se trata de um processo linear e gradual. Para os capitalistas, as revoluções são obra de líderes astutos e carismáticos que aparecem subitamente em cena, tal como a greve é atribuída ao “agitador”. Na realidade, todas as revoluções são o resultado de longos períodos de aumento das contradições sociais, em que os interesses da classe dominante entram em conflito com os interesses do proletariado.
Durante anos, no entanto, o regime pode parecer não ser afetado. Os trabalhadores baixam a cabeça e aceitam os ditames dos patrões. Mais cedo ou mais tarde, porém, chega-se a um ponto de viragem em que um acontecimento acidental desencadeia toda a raiva acumulada: os diques rebentam e as massas inundam a cena política.
A aparente estabilidade dá lugar à mais intensa agitação. Entretanto, as forças revolucionárias, que até ontem estavam relegadas para a periferia do movimento operário, encontram-se subitamente no centro do palco. Tudo isto acontece da forma mais abrupta e violenta, aparentemente sem aviso prévio.
Os reformistas, que ontem descartaram a classe operária devido ao seu chamado “baixo nível de consciência” e fraca organização, estão estupefactos perante acontecimentos que não esperavam e que não podem controlar. Isto revela apenas a sua abordagem superficial.
“Diz-se que não há saltos na natureza”, escreve Hegel, numa passagem fortemente sublinhada por Lenine, “e a imaginação vulgar, quando tem de conceber um aparecimento ou um desaparecimento, pensa tê-los concebido (…) como um aparecimento ou um desaparecimento gradual.”[ 10]
Na realidade, é exatamente o contrário. O desenvolvimento nunca é meramente linear ou gradual. É composto, por um lado, de períodos com pequenas mudanças quantitativas e graduais, que por sua vez dão lugar a saltos qualitativos bruscos e acentuados; e, por outro lado, de mudanças qualitativas, que dão lugar a explosões quantitativas.
Hegel continua:
“A água, ao ser arrefecida, não se torna pouco a pouco dura, atingindo gradualmente a consistência de gelo depois de ter passado pela consistência de pasta, mas é subitamente dura; quando já atingiu completamente o ponto de congelação, pode (se estiver parada) ser totalmente líquida, e um ligeiro abanão leva-a à condição de dureza.”[ 11]
A passagem da quantidade à qualidade e vice-versa – ou, por outras palavras, os saltos
– é um traço fundamental de todo o desenvolvimento. No entanto, para compreender as forças que impulsionam estas mudanças e a direção que o desenvolvimento irá tomar, é necessário ir além do ponto de vista do “senso comum”. O que é necessário é olhar mais de perto para as forças e correntes subjacentes que não são imediatamente visíveis a olho nu.
Sob a superfície
À superfície das coisas, quando vivemos o nosso quotidiano, pensamos que as coisas são simples e fixas. Temos a certeza de que um homem é um homem, um cão é um cão, isto é isto, aquilo é aquilo, e assim por diante. E, no entanto, assim que focamos o nosso olhar, esta certeza desaparece. Porque, na nossa procura do cão arquetípico, temos de reconhecer que não existe tal coisa; todos os cães são diferentes.
Mesmo se pegarmos no nosso amigo canino singular, o Fido, repararemos que o Fido de hoje não é totalmente igual ao de ontem. Ele é muito diferente do cachorro com quem fizemos amizade há anos e, num instante, será diferente do Fido de agora. Assim que tentamos fixá-los na nossa mente, todos os conceitos fixos e rígidos escapam-nos por entre os dedos e dissolvem-se num mundo infinitamente variado.
Os pós-modernistas param neste ponto e declaram que a “Diferença” é a essência do mundo. Tudo é diferente de tudo o resto, proclamam, e por isso os nossos conceitos e categorias gerais são meras “construções” imaginárias.
Mas falam demasiado cedo. Porque quando voltamos o nosso olhar para esse mundo de diferenças sem limites, o que nos salta imediatamente à vista é que, apesar do
estado de constante mudança de tudo, com uma clareza impressionante a todos os níveis, é a recorrência de padrões e leis semelhantes, que governam com mão de ferro.
À primeira vista, não há dois cães iguais. No entanto, alguns atributos essenciais aparecem em todos os cães, o que faz deles cães. E embora cada célula, molécula e átomo do corpo do Fido esteja num estado de constante movimento e transformação, permanece, no entanto, algo inato que transcende cada instância fugaz e acidental do nosso amigo canino. A identidade das coisas não existe para além da sua diferença, mas através dela.
Na antiga filosofia platónica, a essência das coisas eram arquétipos ideais, que se situavam acima ou em oposição ao mundo vibrante e multifacetado que experimentamos. Para os pós-modernistas, a essência das coisas são meras construções mentais arbitrárias da humanidade que projectamos na realidade externa. Sobre esta questão, Lenine escreve:
“Os filósofos mais mesquinhos discutem se a essência ou o que é imediatamente dado deve ser tomado como fundamento (Kant, Hume, todos os machistas). Em vez de ou, Hegel coloca e, explicando o conteúdo concreto deste ‘e’.”[ 12]
Como a ciência moderna tem provado repetidamente, a essência das coisas – o que as faz ser o que são – são apenas as relações inerentes às próprias coisas. É a dinâmica interna da matéria, que surge e se expressa nas infinitas formas e configurações que a natureza assume à nossa volta.
Charles Darwin, na sua teoria da evolução biológica, explicou como todos os organismos se desenvolvem através da seleção natural de mutações que aumentam a sua capacidade de sobrevivência e reprodução. “A partir de um começo tão simples”, escreve ele, “infinitas formas mais belas e mais maravilhosas foram, e estão a ser, desenvolvidas”.[13]
A lei da evolução não é independente dos organismos vivos, é o seu modo de desenvolvimento. O que distingue o homem dos outros animais é precisamente a sua capacidade de abstrair estes aspectos das coisas, aspectos que não são imediatamente visíveis a olho nu, de os contemplar e, assim, de atingir uma compreensão mais profunda do fenómeno no seu conjunto. As nossas ideias e concepções gerais são, por outras palavras, aproximações às leis e relações reais que regem o mundo.
Quanto mais fundo formos capazes de descer nas coisas, quanto mais das suas relações formos capazes de descobrir, mais precisamente as nossas ideias podem refletir a essência das próprias coisas. Como escreve Lenine:
“A natureza é simultaneamente concreta e abstrata, simultaneamente fenómeno e essência, simultaneamente momento e relação. Os conceitos humanos são subjectivos na sua abstração, separação, mas objectivos como um todo, no processo, na soma total, na tendência, na fonte.”[ 14]
Contadição
O pensamento comum agarra-se a um aspeto imediato de um fenómeno e contrapõe- no ao resto. Para as tarefas quotidianas, este método é válido. Mas se olharmos mais
de perto, veremos que a natureza não é unilateral e simples, mas sim multifacetada e contraditória.
As abstracções unilaterais estão mortas, explica Hegel numa passagem destacada por Lenine, “mas a contradição é a raiz de todo o movimento e vitalidade, e é apenas na medida em que contém uma contradição que qualquer coisa se move e tem impulso e atividade”. [ 15]
“Algo se move”, diz-nos Hegel, “não porque esteja aqui num ponto do tempo e ali noutro, mas porque num mesmo ponto do tempo está aqui e não está aqui, e neste aqui tanto é como não é”.[16] Este é o curso de todo o movimento e desenvolvimento.
A dialética não exclui a visão unilateral do mundo do pensamento quotidiano; absorve-a como um aspeto de uma verdade mais elevada. Abrange todos os aspectos de um fenómeno – as suas relações internas e externas – e mantém-nos na sua contradição como um todo complexo.
Quando reconhecemos este facto, abre-se um mundo inteiramente novo para nós. Um mundo interligado em que as partes existem numa relação recíproca com o todo; em que o ser flui para o nada e vice-versa; em que a quantidade flui para a qualidade e vice-versa; em que a identidade e a diferença se interpenetram mutuamente; em que a forma e o conteúdo estão presos numa luta constante; em que os princípios simples estão na base dos processos mais complexos, etc., etc.
“A condição para o conhecimento de todos os processos do mundo no seu ‘movimento próprio‘, no seu desenvolvimento espontâneo, na sua vida real, é o conhecimento deles como uma unidade de opostos”, escreve Lenine, acrescentando: “O desenvolvimento é a ‘luta’ dos opostos”.[ 17]
Leis
Quanto mais profundamente formos capazes de penetrar num fenómeno e quanto melhor pudermos traçar as suas relações contraditórias internas, menos aleatório ou arbitrário ele parecerá aos nossos olhos. Em vez disso, o que gradualmente tomará forma é o seu necessário – ou, por outras palavras, o seu legítimo – caminho de desenvolvimento.
Aqui temos uma forma inteiramente diferente de ver o mundo do que as categorias mortas da filosofia burguesa. A visão dialética reflecte não apenas as propriedades externas de um fenómeno ou as suas fases transitórias, mas a totalidade do seu desenvolvimento nas suas fases sucessivas, desde a sua criação até ao seu inevitável desaparecimento. Este método está no cerne do marxismo.
Lenine escreveu:
“No seu Capital, Marx começa por analisar a relação mais simples, mais vulgar e fundamental, mais comum e quotidiana da sociedade burguesa (de mercadorias), uma relação que se encontra milhares de milhões de vezes: a troca de mercadorias. Neste fenómeno muito simples (nesta “célula” da sociedade burguesa), a análise revela todas as contradições (ou os germes de todas as contradições) da sociedade moderna. A exposição subsequente mostra-nos o desenvolvimento (tanto o crescimento como o movimento) destas contradições e desta sociedade na [soma] das suas partes individuais. Do princípio ao fim.(…) Este deve ser também o método de exposição (i.e.,
estudo) da dialética em geral (pois para Marx a dialética da sociedade burguesa é apenas um caso particular de dialética).”[ 18]
Através da aplicação do método dialético, Marx desvendou as leis do capitalismo. E, com base nisso, foi capaz de prever com exatidão, em linhas gerais, todo o desenvolvimento da sociedade capitalista após a sua morte; um desenvolvimento que conduz necessariamente à chegada ao poder do proletariado e à abolição da propriedade privada e do Estado-nação.
É com base na perspetiva, desenvolvida inicialmente por Marx e Engels com base no estudo da história humana – e que está a ser comprovada diariamente – que o nosso programa comunista é formulado.
Por isso, Lenine escreveu: “É impossível compreender completamente O Capital de Marx, e especialmente o seu primeiro capítulo, sem ter estudado e compreendido completamente toda a Lógica de Hegel. Por conseguinte, meio século depois, nenhum dos marxistas compreendeu Marx!!!”[ 19]
Lendo Hegel do avesso
Hegel desenvolveu brilhantemente a mais completa exposição da dialética como ciência do movimento e da mudança. Até hoje, as suas ideias estão muito acima das doutrinas filosóficas oficiais da classe capitalista.
Mas nas mãos de Hegel, a dialética recebeu uma forma mística e idealista. Aqui não se tratava das leis inerentes ao desenvolvimento da natureza, mas das leis de desenvolvimento daquilo a que ele chamava o Espírito Absoluto ou a Ideia Absoluta. A Ideia “torna-se o criador da Natureza”, escreve ele – ao que Lenine apenas responde com: “!!Ha ha!”[20]
Para Hegel, as categorias lógicas, tais como o Ser, o Nada, o Devir, a Quantidade, a Qualidade, a Essência, a Aparência, etc., têm uma existência independente como partes componentes desta Ideia abrangente, que por sua vez se exprimiu através da natureza. Depois de se ter desdobrado na natureza, é no pensamento racional que o Absoluto encontra a sua forma mais elevada, atingindo o auge com a própria filosofia hegeliana.
Hegel insistiu no primado último do pensamento abstrato sobre a atividade humana. Na medida em que incluiu a atividade como uma componente fundamental da sua lógica, esta foi, antes de mais, uma categoria lógica. Ao longo de toda a sua lógica, Hegel insiste em que o leitor deve deixar para trás o mundo exterior e permanecer no domínio do “pensamento puro”.
E, no entanto, ele foi forçado, uma e outra vez, a desviar-se para o materialismo, pela sua própria lógica e a fim de provar os seus pontos. Como Lenin observou: “[N]esta obra mais idealista de Hegel há o mínimo de idealismo e o máximo de materialismo. Contraditório, mas é um facto![ 21]
Hegel pertencia ao campo do idealismo filosófico, que defende que a mente é a componente primária da realidade e que o mundo exterior, de uma forma ou de outra, é uma derivação ou reflexo da mente. Todas as religiões se enquadram no campo do idealismo filosófico e Hegel não escondeu que estava a formular um sistema religioso.
Os marxistas são materialistas filosóficos. Ao contrário dos idealistas, acreditamos que existe apenas um mundo, nomeadamente o mundo material que podemos sentir e com o qual podemos interagir. A mente humana é um produto deste mundo material e as nossas ideias são meros reflexos dele.
“Estou, em geral, a tentar ler Hegel materialisticamente”, escreveu Lenine, “Hegel é o materialismo que foi posto de pernas para o ar […] – isto é, ponho de parte, na sua maior parte, Deus, o Absoluto, a Ideia Pura, etc.”.[ 22]
Lenine pode fazê-lo porque o conceito de Ideia Absoluta não desempenha qualquer papel fundamental nos aspectos essenciais das ideias de Hegel. De facto, como observou Friedrich Engels, Hegel não diz “absolutamente nada”[23] sobre a Ideia Absoluta.
Os marxistas não acreditam que a dialética tenha qualquer existência separada da natureza. As leis da dialética não são as leis das ideias, mas reflectem a legalidade inerente da própria natureza ao nível mais geral. Através da nossa interação com o mundo, nós, humanos, somos capazes de descobrir estas leis a níveis cada vez mais profundos. Esta é a base da filosofia marxista: o materialismo dialético.
“A lógica é a ciência não de formas externas de pensamento”, escreveu Lenine, “mas das leis de desenvolvimento ‘de todas as coisas materiais, naturais e espirituais’, isto é, do desenvolvimento de todo o conteúdo concreto do mundo e do seu conhecimento, isto é, a soma total, a conclusão da História do conhecimento do mundo.”[ 24]
Foi um dos grandes feitos de Marx e Engels resgatar a dialética dos grilhões do idealismo morto de Hegel e “virá-la do avesso”. E enquanto a dialética da natureza é demonstrada diariamente pelos avanços da ciência e da cultura, o idealismo de Hegel – isto é, o seu Espírito Absoluto – permanece meramente como um exoesqueleto sem vida, que teve de ser mudado para que o verdadeiro organismo vivo por baixo continuasse a desenvolver-se.
Teoria e prática
De onde vêm as ideias? Esses fantasmas encantadores que vagueiam pelos nossos mundos interiores; as suas origens específicas foram esquecidas há muito tempo e, por isso, durante milhares de anos, os homens impregnaram-nas de qualidades místicas.
No idealismo, as ideias são encaradas pelo homem como forças poderosas, acima da natureza e da sociedade.
Mas as ideias não têm uma existência autónoma. Nem são, como imaginam os subjectivistas, barreiras impenetráveis entre o ser humano e o mundo exterior. A mente é uma função reguladora da nossa espécie que, através do trabalho, faz a ponte entre nós e a natureza que nos rodeia.
“A produção de ideias, de concepções, de consciência, está, desde logo, diretamente ligada à atividade material e às relações materiais dos homens, à linguagem da vida real”, explica Marx.[ 25] Da nossa interação constante com o mundo que nos rodeia, a que Marx chama “o metabolismo entre o homem e a natureza”, surgem concepções que nos permitem compreender o que nos rodeia e adaptá-lo às nossas necessidades. Ao fazê-lo, também nos modificamos a nós próprios. As nossas ideias, como as categorias
da lógica, não são fenómenos sobrenaturais; apenas reflectem a própria natureza e as suas origens estão na atividade social humana.
“Para Hegel”, nota Lenine, “a ação, a prática, é um ‘silogismo‘ lógico, uma figura da lógica. E isso é verdade! Não, é claro, no sentido de que a figura da lógica tem seu outro ser na prática do homem (= idealismo absoluto), mas vice-versa: a prática do homem, repetindo-se mil milhões de vezes, torna-se consolidada na consciência do homem por figuras da lógica. Precisamente (e apenas) devido a esta repetição de mil milhões de vezes, estas figuras têm a estabilidade de um preconceito, um carácter axiomático.”[26]
O carácter dialético do pensamento que Hegel traçou na sua Lógica é, por outras palavras, um mero reflexo da natureza com que os homens interagem. Lenine, parafraseando Hegel, escreve: “A natureza, essa totalidade imediata, desdobra-se na Ideia Lógica”. Ele continua dizendo:
“A lógica é a ciência da cognição. É a teoria do conhecimento. O conhecimento é o reflexo da natureza pelo homem. Mas esta não é simples, não é uma reflexão imediata, não é uma reflexão completa, mas sim o processo de uma série de abstracções, a formação e desenvolvimento de conceitos, leis, etc., e estes conceitos, leis, etc., (pensamento, ciência = ‘a Ideia lógica’) abrangem condicionalmente, aproximadamente, o carácter universal, governado por leis, da natureza eternamente em movimento e desenvolvimento.”[ 27]
Ao longo de milhares de anos de tentativas e erros, desenvolvemos ideias e concepções gerais que mergulham cada vez mais profundamente em diferentes aspectos da natureza, ideias que se tornaram a essência concentrada da experiência humana. A dialética é o coroamento deste desenvolvimento até agora.
Mas o conhecimento não é um fluxo unidirecional, que imprime os resultados das nossas actividades no nosso cérebro; há também um processo inverso simultâneo em movimento. Depois de deduzir diferentes aspectos do mundo regido pelas leis, o pensamento abstrato permite-nos contemplar e aprofundar as nossas ideias, de modo a melhorar a nossa prática mais tarde.
É, em última análise, na prática que as nossas ideias se confrontam com o mundo objetivo que pretendemos mudar. E é através deste processo que elas ganham objetividade: “A unidade da ideia teórica (do conhecimento) e da prática – esta NB – e esta unidade precisamente na teoria do conhecimento, pois a soma resultante é a [ideia objetiva]”.[28]
Para o filisteu, a teoria é, no máximo, uma curiosidade. Mas é a interação dialética entre a teoria e a prática, uma conduzindo à outra, que caracteriza “o processo interminável de aprofundamento do conhecimento que o homem tem da coisa, dos fenómenos, dos processos, etc., da aparência à essência e da essência menos profunda à mais profunda”.[29]
Este é um processo que, ao mesmo tempo, melhora e alarga o domínio do homem sobre a natureza. Quanto mais profundo for o conhecimento das leis que regem o nosso mundo, mais eficazmente poderemos alcançar os nossos objectivos e aspirações. E aqui vemos a importância da teoria para os comunistas.
Como explicou Trotsky:
“Infinitamente mais exigente, rigoroso e equilibrado é aquele que encara a teoria como um guia para a ação. Um cético de sala pode zombar impunemente da medicina, mas um cirurgião não pode viver numa atmosfera de incerteza científica. Quanto maior é a necessidade que o revolucionário tem da teoria como guia para a ação, tanto mais intransigente é na sua defesa. Vladimir Ulyanov desconfiava do diletantismo e detestava os charlatães. O que ele valorizava acima de tudo no marxismo era a disciplina severa e a autoridade do seu método.”[ 30]
A vitória da previsão sobre o impressionismo
Trotsky definiu uma vez a teoria marxista como a vantagem da “previsão sobre o espanto”. E foi precisamente esta previsão e esta compreensão profunda que permitiram a Lenine e aos bolcheviques prevalecer perante a extrema adversidade de todos os lados.
No início da Primeira Guerra Mundial, os bolcheviques podiam ser descritos – em termos de poder, influência e recursos – como uma das tendências políticas mais fracas da Europa. Sob o impacto da onda de patriotismo, que foi estimulada pelas autoridades czaristas e o consequente clima de unidade nacional, o partido perdeu a maioria do seu apoio entre a classe trabalhadora russa. A vaga revolucionária que se estava a formar na Rússia antes da guerra foi imediatamente cortada e o czarismo saiu temporariamente reforçado.
Os elementos revolucionários foram mais uma vez relegados para a periferia. Para piorar a situação, muitos dos melhores trabalhadores foram enviados para a frente de batalha como castigo pelas suas actividades nas fábricas e noutros locais. Os principais líderes bolcheviques, na sua maioria, encontravam-se no exílio na Europa, onde as linhas de comunicação tinham sido cortadas ou severamente interrompidas pela guerra.
A reação estava a erguer a cabeça e a ganhar terreno em toda a Europa e a classe trabalhadora estava a recuar. Armados com pistolas, tanques e bombas, os burgueses da Europa estavam a massacrar o continente – e qualquer pessoa que se atravessasse no seu caminho podia ser facilmente afastada ou, se necessário, enviada para a frente e eliminada. Entretanto, os dirigentes sociais-democratas europeus, que se tinham colocado atrás das suas próprias classes dominantes, pareciam estar confortavelmente sentados ao colo dos seus patrões burgueses.
Para os bolcheviques, com finanças fracas, pouco ou nenhum aparelho e organizações partidárias em total desordem devido à guerra, a ideia de tomar o poder poderia parecer mais distante do que nunca. No entanto, apenas pouco mais de três anos após o início da guerra, tudo isto se inverteu e o Partido Bolchevique conduziu os operários e os camponeses da Rússia ao poder na Revolução de outubro de 1917. Não se podia imaginar uma maior demonstração da dialética!
Aqui vemos o poder das ideias na prática. O sucesso dos bolcheviques pode ser reduzido ao sucesso do método marxista, ao método do materialismo dialético.
Lenine e os bolcheviques insistiram numa posição da classe trabalhadora e recusaram- se a fazer a mínima concessão às mudanças chauvinistas nacionais que a guerra produziu em toda a Europa. E, embora a guerra tenha inicialmente fortalecido a classe dominante, mais tarde tornou-se a maior força motriz da revolução, ao fazer emergir de forma acentuada as contradições de classe na sociedade.
Assim, a mensagem revolucionária dos bolcheviques, que não teve qualquer eco popular nos primeiros dias da guerra, tornou-se o grito de guerra das massas russas e espalhou o terror entre as classes dominantes do mundo.
O oportunismo é o abandono das perspectivas a longo prazo em favor de objectivos imediatos a curto prazo. A dialética é a ciência de ir além do imediato e compreender processos complexos e prolongados na sua totalidade. Foi a dedicação à teoria e o domínio da dialética que deram a Lenine uma enorme vantagem sobre os seus inimigos.
Em política, a paixão pela aparência imediata das coisas leva a slogans irreverentes e a uma “paixão pelas formas mais estreitas de atividade prática”. Lenine e os bolcheviques, no entanto, transcenderam as aparências e abordaram a essência das coisas, independentemente do impacto imediato que isso tivesse no partido, porque sabiam que, no final, só a verdade os aproximaria da vitória da classe trabalhadora.
Esta foi a chave do seu sucesso.
Leon Trotsky resumiu o cerne da questão:
“É experiência histórica que a maior revolução de toda a história não foi liderada pelo partido que começou com bombas, mas pelo partido que começou com o materialismo dialético.”[31]
Referências
[1] V I Lenin, “Conspectus of Hegel’s Book ‘The Science of Logic’”, Lenin Collected Works, Vol. 38, Progress Publishers, 1961, pg 176
[2] L Trotsky, “How Lenin Studied Marx”, Fourth International, Vol.11, No.4, July-August 1950, pg 126
[3] V I Lenin, What is to be done?, Wellred Books, 2018, pg 26
[4] V I Lenin, “One Step Forward, Two Steps Back”, Lenin Collected Works, Vol. 7, Progress Publishers, 1961, pg 412
[5] V I Lenin, “Conspectus of Hegel’s Book ‘The Science of Logic’”, Lenin Collected Works, Vol. 38, Progress Publishers, 1961, pg 171, emphasis in original throughout
[6] G W F Hegel, The Science of Logic, Cambridge University Press, 2010, pg 60
[7] V I Lenin, “Conspectus of Hegel’s Book ‘The Science of Logic’”, Lenin Collected Works, Vol. 38, Progress Publishers, 1961, pg 110
[8] ibid. pg 141
[9] G W F Hegel, The Science of Logic, Cambridge University Press, 2010, pg 61
[10] V I Lenin, “Conspectus of Hegel’s Book ‘The Science of Logic’”, Lenin Collected Works, Vol. 38, Progress Publishers, 1961, pg 123
[11] ibid. pg 124
[12] ibid. pg 134
[13] C Darwin, The Origin of Species, P F Collier and Son, 1909, pg 529
[14] V I Lenin, “Conspectus of Hegel’s Book ‘The Science of Logic’”, Lenin Collected Works, Vol. 38, Progress Publishers, 1961, pg 208
[15] ibid. pg 139
[16] G W F Hegel, The Science of Logic, Cambridge University Press, 2010, pg 382
[17] V I Lenin, “On the Question of Dialectics”, Lenin Collected Works, Vol. 38, Progress Publishers, 1961, pg 360
[18] ibid. pg 360-361
[19] V I Lenin, “Conspectus of Hegel’s Book ‘The Science of Logic’”, Lenin Collected Works, Vol. 38, Progress Publishers, 1961, pg 180
[20] ibid. pg 174
[21] ibid. pg 234
[22] ibid. pg 104
[23] F Engels, “Ludwig Feuerbach and the End of Classical German Philosophy”, Karl Marx Frederick Engels Collected Works, Vol. 26, Progress Publishers, 1990, pg 360
[24] V I Lenin, “Conspectus of Hegel’s Book ‘The Science of Logic’”, Lenin Collected Works, Vol. 38, Progress Publishers, 1961, pg 92-93
[25] K Marx, The German Ideology, International Publishers, 1947, pg 13-14
[26] V I Lenin, “Conspectus of Hegel’s Book ‘The Science of Logic’”, Lenin Collected Works, Vol. 38, Progress Publishers, 1961, pg 217
[27] ibid. pg 182
[28] ibid. pg 219
[29] ibid. pg 222
[30] L Trotsky, “How Lenin Studied Marx”, Fourth International, Vol.11, No.4, July-August 1950, pg 127
[31] L Trotsky, In Defence of Marxism, Wellred Books, 2019, pg 106