Na semana passada o Chega voltou a dominar o debate político nacional quando os seus deputados penduraram tarjas denunciando o aumento de salários de 5% aos políticos. Trata-se de mais uma fantochada demagógica deste partido. Sem dúvida, a corrupção e os privilégios dos políticos burgueses são escandalosos, mas este partido não pode e nem quer “acabar com os tachos”.
André Ventura é um aventureiro da política, que começou a sua carreira no PSD e que depois formou o Chega, não por qualquer revolta moral contra a corrupção no seu antigo partido, mas porque percebeu que havia oportunidades à direita que ninguém estava a explorar. A sua motivação são as rendas, os privilégios e os subsídios. Os políticos da extrema-direita que bradam contra a corrupção serão logo corrompidos quando chegarem ao poder (às vezes até antes), atraídos pelos tachos como as moscas pelo mel. Os exemplos de Bolsonaro, Trump, Le Pen ou Salvini confirmam-no.
“Acabar com os tachos”?
Ainda se quisesse “acabar com os tachos” (é claramente não quer!), Ventura não poderia. Porque a corrupção é uma parte inerente das sociedades capitalistas. O Estado burguês concentra enormes recursos e poderes, o que é inevitável no capitalismo, quer porque a anarquia e a paralisia do sistema obrigam o Estado a intervir na economia para impor uma mínima ordem (através das regulamentações, do protecionismo, dos subsídios, etc.), quer porque a desigualdade e as injustiças que a exploração capitalista gera obrigam o Estado a amortecer os conflitos sociais (através da repressão policial, mas também das concessões à classe trabalhadora). Os burgueses não podem ficar indiferentes perante o poder do Estado. Os capitalistas que queiram manter o seu poder e ampliar a sua parcela no mercado têm de mexer na política, têm de influenciar a legislação, obter subsídios, contratos de obras públicas, etc. Por isso, os capitalistas aliciam os políticos burgueses, às vezes de forma legal (donativos aos partidos, lobbying, as portas giratórias entre o governo e o mercado, etc.), mas também de forma ilegal (subornos e “tachos”).
Ao mesmo tempo, os privilégios dos burgueses que o Chega denuncia de forma cínica e demagógica também são inevitáveis no capitalismo. É preciso que os políticos vivam como a burguesia para que se solidarizem com ela e compartilhem a sua visão do mundo, e para os isolar da pressão da classe trabalhadora. Mergulhados numa bolha de luxo e riqueza, os chamados “servidores públicos”, os deputados e ministros, os altos funcionários e juízes, os diplomatas e generais, partilham o estilo de vida da classe capitalista: moram nos mesmos bairros, vão aos mesmos hospitais privados, e os seus filhos vão às mesmas escolas, ignaros dos problemas e sofrimentos quotidianos da classe trabalhadora.
Demagogia
Portanto, sob o capitalismo é impossível acabar com a corrupção – é uma parte inerente deste sistema, em todos os países. Como disse Marx, falando sobre o governo operário da Comuna de París, só a tomada do poder pela classe trabalhadora poderá realizar “um governo barato, abolindo essas duas grandes fontes de despesas que são o exército permanente e o funcionalismo de Estado”. Mas desta constatação também podemos tirar uma outra conclusão: as denúncias isoladas da corrupção dos nossos Venturas, Trumps e Bolsonaros são um engano para distrair a classe trabalhadora e, sobretudo, a pequena burguesia, culpando por todos os seus problemas um fenómeno que de facto é só um sintoma (aliás, bastante secundário) da podridão do capitalismo. Falando apenas da corrupção, Ventura evita que se fale sobre a crise da habitação, sobre a desigualdade, sobre a exploração, sobre o colapso do SNS, em definitivo, sobre os problemas reais da sociedade portuguesa. É por isso que esta demagogia é útil para os capitalistas, que financiam generosamente o Chega enquanto os seus mídia dão cobertura preferencial às suas fantochadas. É muito ilustrativo o facto de Ventura ter-se oposto ao aumento dos ordenados dos deputados argumentando que ainda há trabalhadores públicos com restrições dos tempos da troika, mas nada faz para reverter essas restrições!
Mas se esta demagogia é uma tosca tentativa de atirar areia aos olhos dos trabalhadores e da pequena burguesia, porque é que tem um certo impacto? Porque de facto os privilégios dos políticos são escandalosos e as pessoas percebem que, embora os deputados e os ministros falem em nome dos cidadãos, eles só servem os interesses dos ricos e dos poderosos, e que estão totalmente afastados dos problemas reais das pessoas. Por isso muitos eleitores do Chega (e não só) seguramente terão gostado do episódio das tarjas, porque é uma “chapada ao sistema” que parece transmitir parte da sua raiva à Assembleia da República. Mas este também é o motivo pelo qual um setor da burguesia, o mais inteligente, não gosta do Ventura e do Chega, porque ao pôr em causa “a respeitabilidade das instituições democráticas” pode no futuro abrir a porta ao questionamento do sistema no seu conjunto. Assim, numa fase futura de radicalização, a viragem eleitoral à direita das últimas eleições pode preparar o terreno para uma guinada drástica à esquerda. Foi por isso que todos os grandes representantes do Estado capitalista, desde Marcelo Rebelo de Sousa e o Luís Montenegro ao José Pedro Aguiar Branco e Pedro Nuno Santos, e incluindo analistas burgueses como Marques Mendes, fizeram a “frente única” contra a última fantochada do Chega, em defesa das “instituições democráticas”.
Contra o Estado capitalista
O mais lamentável dos episódios da semana passada foi a postura dos partidos de esquerda o PCP e o BE. Corretamente denunciaram a palhaçada das tarjas, mas o fizeram pelos motivos errados. Ao invés de expor a demagogia do Chega, e
aproveitar para agitar contra a democracia burguesa e a sua corrupção e podridão, emitiram comunicados insulsos que só contribuíram à defesa “das instituições”. Joana Mortágua lamentou que o “numerozinho” do Chega fizesse perder o tempo aos bombeiros que foram retirar as tarjas, enquanto a deputada do PCP Paula Santos acusou-o de “desviar as atenções daquilo que deve ser o trabalho da Assembleia da República”. Deste jeito, infelizmente, só consolidam o Chega como a principal força de oposição aos olhos de amplos setores sociais. Se o PCP e o BE fossem minimamente combativos, teriam sido eles a colocar tarjas na Assembleia! Mas dariam a esta ação um conteúdo de classe, explicando o papel dos privilégios dos políticos burgueses e a sua ligação ao sistema capitalista, denunciando as “instituições democráticas” como feitas por e para a burguesia.