A esquerda portuguesa perante as tarifas: uma posição internacionalista

A imposição universal de tarifas pelos EUA (agora suspensas temporariamente tudo acima de 10%, menos à China) tem abalado a economia mundial, ameaçando precipitar uma recessão que já se anuncia há algum tempo. E tem gerado um terramoto político que se faz sentir também em Portugal. É fundamental que os comunistas tenhamos clareza sobre o significado do protecionismo na nossa época. As recentes declarações do gabinete de imprensa do PCP e do dirigente do Bloco de Esquerda, Francisco Louçã, abrem o debate sobre que postura adotar.

O que significa o protecionismo?

As declarações do PCP e do Bloco explicam telegraficamente o significado do protecionismo. Segundo Francisco Louçã, do Bloco de Esquerda, as tarifas seriam um esforço do “fascista da Casa Branca” por conseguir “um mundo aterrorizado pelo seu poder”, explicação que nada explica. A quebra da ordem económica mundial e o início de uma nova época histórica reduzir-se-ia à loucura de um só indivíduo que, ainda pior, “não tem estratégia”. Louçã parece ter esquecido o ensinamento básico do materialismo histórico, nomeadamente que, nas palavras de Marx, “os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente”.

Na declaração do gabinete do PCP encontramos uma análise mais convincente. Explica a declaração que a “tentativa de garantir o domínio e de travar e fazer retroceder o declínio económico relativo dos EUA, num quadro internacional em profunda alteração da relação de forças […] tem como alvo preferencial a República Popular da China”. Esta explicação, embora mais séria, é ainda insuficiente: só coloca os termos do problema, mas não as suas verdadeiras causas.

A crise do capitalismo está a refletir-se num acirramento não apenas das tensões entre os trabalhadores e os burgueses, mas entre as diferentes burguesias de cada país. A sobreprodução capitalista saturou totalmente o mercado mundial, que é demasiado estreito para as enormes forças produtivas de que dispõe a humanidade. Está é uma contradição que Marx já explicou, e que identificou como o principal desencadeante das crises capitalistas: a anarquia da produção no capitalismo, chicoteada pela concorrência, e, sobretudo, a exploração da classe trabalhadora, que tem de gerar um excedente aos capitalistas à custa do seu salário, faz com que a produção tenda constantemente a ultrapassar as capacidades reais do mercado. Este último pode ser esticado temporariamente através do crédito, mas os empréstimos têm de ser pagos, e com um interesse acrescentado, e, portanto, numa determinada fase, o crédito passará de ser um estímulo económico a um travão. Da mesma maneira, a expansão do mercado mundial abre novas possibilidades de investimento aos capitalistas, mas, numa determinada fase, ele também acaba por saturar-se, levando a uma luta pela sua conquista. Estas duas ferramentas, o crédito e a expansão do mercado mundial, alicerçaram o crescimento económico nas décadas anteriores a 2008 e garantiram um período mais ou menos longo de estabilidade ao sistema.

Estas contradições atingiram o seu paroxismo na nossa época. As colossais dívidas acumuladas após a crise de 2008 são agora um pesado fardo na economia. Ainda mais importante, a sobreprodução empurra as diferentes burguesias a uma luta à morte por garantir as suas parcelas do mercado, em detrimento dos seus concorrentes. Isto é particularmente certo no caso das potências em declínio, que têm de insular as suas indústrias ineficientes da concorrência externa através das tarifas. Veja-se a tesla: de empresa líder passou a segundo plano, ofuscada pela qualidade e preços das marcas chinesas. Só as tarifas sobre carros elétricos chineses que já estão em vigor desde o primeiro mandato de Trump, garantem a Elon Musk o mercado americano. Esta é a “solução” de Trump ao declínio do capitalismo norte-americano perante o ascenso da China. Agora ele deu uma grande acelerada às políticas protecionistas iniciadas no seu primeiro mandato e continuadas por Biden. Mas o protecionismo não implica só a defesa do mercado nacional, mas também o acirramento da luta pela conquista de novos mercados e esferas de influência, o que explica o aumento das tensões e até das guerras por procuração entre as grandes potências imperialistas, principalmente os EUA, a China e a Rússia. Também explica o afastamento entre Washington e Bruxelas: num mundo afogado pela sobreprodução, os EUA e a EU tornaram-se em concorrentes.

Porém, o remédio do protecionismo acaba por ser pior do que a doença: as retaliações acabam por espalhar as tarifas descontroladamente, parcelando ainda mais o mercado mundial e minando a divisão internacional do trabalho, que esteve na base da prosperidade relativa das últimas décadas. Enveredando por este caminho, que lhes é imposto pela sua posição desesperada, os capitalistas gerarão uma terrível depressão, como acontecera há quase um século: o crash de 1929 só se tornou numa depressão mundial com o espalhamento do protecionismo no início dos anos 1930.

O nacionalismo económico é um sintoma da descomposição do capitalismo e da sua absoluta incapacidade de gerir as forças produtivas de que dispomos. Sob as relações de propriedade antiquadas e reacionárias do capitalismo, baseadas na propriedade privada, a livre concorrência, e o Estado nacional burguês, estas poderosas alavancas económicas, fruto do génio da humanidade, tornam-se em grilhões terríveis que provocam crises, exploração e guerras. Como o estalajadeiro Procusto da antiga mitologia grega, que amputava as pernas dos convidados que não coubessem na sua cama, o capitalismo ataca uma divisão internacional do trabalho que não encaixa nas suas obsoletas relações de produção.

Defender os “interesses nacionais”?

Qual é a resposta que dão o PCP e o Bloco às tarifas? É quase idêntica. Para Louçã é preciso “substituir importações e alargar exportações” (ou seja, o que todas as burguesias do mundo estão a tratar fazer). De forma semelhante, o PCP considera “necessária uma política de substituição de importações por produção nacional – alimentos, medicamentos, equipamentos, etc – e de valorização do mercado interno”, com uma “diversificação das relações comerciais do País”. Trata-se, em definitivo, de “defender os interesses nacionais”.

Mas estas fórmulas colocam mais interrogações do que aquilo que esclarecem. A divisão internacional do trabalho tem atingido um grau de integração muito elevado (essa é, de facto, uma das causas desta crise, ao potenciar a sobreprodução), com cadeias logísticas integradas a nível mundial. Nem a maior economia do mundo, os EUA, pode quebrar essa divisão internacional do trabalho, como mostra o recuo de Trump, que teve de adiar as tarifas perante o caos económico que desencadeou. Esperar que um país diminuto como Portugal, afogado pela dívida e sem recursos, possa aspirar à autarquia económica (até a uma autonomia parcial) é utópico e, é também, reacionário.

A indústria portuguesa é incapaz de concorrer com a concorrência chinesa, norte-americana, ou até dos vizinhos europeus mais poderosos: só pode aspirar a integrar-se nas cadeias de produção por eles dominadas. Só através de altas tarifas, subsídios à produção nacional e restrições às importações é que se poderia, hipoteticamente, rearmar a indústria portuguesa. Apesar das suas críticas a Trump, o que o PCP e o BE propõem é… protecionismo, à portuguesa. Mas uma hipotética (hipotética porque impossível) industrialização a grande escala de Portugal, que obrigaria a fechar as portas do país a mercadorias mais competitivas (e mais baratas), tornaria a produção infinitamente mais cara, pulverizando as condições de vida da classe trabalhadora.

A situação atual coloca a questão de quem “paga o pato”, ou seja, que classe é que vai arcar com o peso da crise, questão que o PCP e o BE não discutem. Aliás, ocultam-na, ao falarem de “interesses nacionais”, que supostamente uniriam os burgueses e os trabalhadores portugueses num esforço comum por proteger a economia nacional. Mas os seus interesses são antagónicos. O acirramento das tensões entre as diferentes burguesias nacionais não atenua, mas, pelo contrário, agrava a luta de classes entre capitalistas e proletários em cada país. Os burgueses falam de tempos difíceis, da perda dos seus mercados estrangeiros, do acirramento da concorrência estrangeira, do custo dos novos investimentos para reforçar a produção nacional, para justificar novos ataques a classe trabalhadora. A retórica sobre os “interesses nacionais” por parte da esquerda desarma os trabalhadores perante estes ataques.

Naturalmente, nós comunistas revolucionários lutaremos contra o fechamento das indústrias, pela defesa dos locais de trabalho e por qualquer medida que ajude a aliviar a crise inflacionária. Mas somos cientes dos limites que, no quadro do capitalismo em ruína, têm este tipo de medidas parciais. A nossa missão é, sobretudo, abrir os olhos aos trabalhadores sobre a natureza da crise e sobre as tarefas revolucionárias que esta época histórica nos coloca, e nos organizarmos para as levar a cabo.

Trabalhadores do mundo, uni-vos!

Não defendemos o protecionismo, mas também não defendemos o regresso à globalização liberal das últimas décadas, que trouxe precariedade e desemprego a milhões de pessoas em todo o mundo. Em qualquer caso, o regresso ao livre mercado do passado que almejam os liberais é, de facto, impossível.

O proletariado não tem interesses nacionais, mas sim internacionais. Os trabalhadores operam uma economia integrada mundialmente. Conformam, portanto, uma classe mundial. Se as poderosas indústrias de que dispõe a humanidade forem libertas da camisa de força da propriedade privada e dos Estados-nação, se elas forem aproveitadas racionalmente, através do planeamento democrático a escala internacional, poderiam garantir condições de vida dignas para todas as pessoas. Mas para isso é preciso que o proletariado mundial tome posse da economia, derrubando o capitalismo através da revolução. Impõe-se, agora mais do que nunca, a unidade do proletariado internacional à volta de um programa revolucionário. É o objetivo pelo que luta a Internacional Comunista Revolucionária, à que pertence o CCR. Como disseram Marx e Engels: trabalhadores do mundo, uni-vos!

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