O Estado e revolução

Existem diferentes perspetivas acerca de como o Estado passou a existir. As mais proeminentes explicações perspetivam que o Estado nasce de um conflito, havendo, contudo, divergência sobre a origem desse mesmo conflito.

As explicações sobre a origem do Estado não são independentes da ideologia da classe dominante, contudo, a teoria marxista do Estado expõe claramente a estrutura de dominação nele existente.

No seio do pensamento marxista, Lenine não foi o primeiro a escrever sobre o Estado. No entanto, a sua obra “O Estado e a Revolução”, tornou-se num marco ao sintetizar a necessidade de uma revolução para derrubar o Estado burguês e instaurar a ditadura do proletariado como um caminho para a verdadeira emancipação das massas oprimidas. O livro foi escrito em 1917, num momento onde a preocupação da tomada do poder pelo proletariado estava nos pensamentos de Lenine e, pode-se afirmar, que as suas conclusões ainda continuam válidas.

Contratualismo

A noção do Estado, embora possa parecer imutável ao longo do tempo, é, na verdade, um fenómeno relativamente recente. Em épocas antigas, os caçadores-recoletores vagavam em busca de sustento até que a introdução da agricultura marcou o início do sedentarismo. A posse da terra tornou-se então um símbolo de riqueza, criando uma distinção entre proprietários e trabalhadores da terra.

A partir deste contexto histórico, emergem diferentes perspetivas acerca da natureza e do surgimento do Estado, sendo o contratualismo uma das teorias que mais se destaca. Um exemplo é a abordagem de Hobbes, que descreveu o estado de natureza como um cenário de guerra perpétua de todos contra todos, onde a procura pela estabilidade e segurança comuns levou os indivíduos a renunciarem a parte da sua liberdade em prol da formação de um Estado soberano, que fosse capaz de garantir a ordem e proteção neste ambiente de guerra.

John Locke, por sua vez, com uma visão menos pessimista do estado de natureza, enfatizava a igualdade dos indivíduos e o direito à propriedade adquirida através do trabalho individual. Neste sentido, o Estado, não apenas garantia a segurança, mas também protegia os direitos naturais, incluindo o direito à propriedade, assumindo a missão de conciliar os interesses das diferentes classes sociais em busca do bem comum, hierarquizando-as para garantir a segurança e os direitos em troca de certa limitação da liberdade individual.

As teorizações contratualistas refletem os interesses da classe burguesa, sugerindo que o Estado existe externamente à sociedade e desempenha um papel neutro nas lutas sociais, assemelhando-se a um árbitro que prima pela imparcialidade, enquanto garante um lastro teórico que legitimava o direito à propriedade privada e desigualdade social.

Teses de Estado e a revolução

Podemos sintetizar as teses de O Estado e a revolução nos seguintes pontos:

  • Estado é um órgão de dominação de classe (burguesia);
  • É necessária uma revolução, porque o Estado não pode ser domado/reformado;
  • É necessária uma ditadura do proletariado como transição para o comunismo.

Vejamos em detalhe o que é o Estado e qual a sua função.

A propriedade privada e a especialização cada vez maior das atividades, criou a divisão social e a acumulação de riquezas. Se é verdade que a especialização contribuiu para melhorar a produtividade, também é verdade que serviu de elemento de criação produção superior ao que era necessário à manutenção dos meios essenciais de vida. E estes dois processos, divisão social e acumulação de riquezas estão intimamente relacionados, trazendo a semente do antagonismo de classes.

A sociedade, portanto, envolveu-se numa luta entre duas forças opostas e neste momento surge um terceiro elemento: o Estado. O Estado passa a ter a missão de evitar que a sociedade se envolva numa guerra civil, sendo, no entanto, um instrumento de dominação da classe dominante.

Como sintetizou Lenine:

“O Estado é o produto e a manifestação do facto de as contradições de classe serem inconciliáveis. O Estado aparece precisamente no momento e na medida em que, objectivamente, as contradições de classe não podem ser conciliadas.”

Caraterísticas do Estado

Já vimos que o Estado aparece no momento em que as lutas sociais são de tal modo antagónicas que as classes dominantes tiveram que criar uma terceira entidade que estivesse “acima” destas lutas e que servisse de intermediário dos diferendos. É a classe que domina com base no seu poder económico e que transforma esse mesmo poder em poder político. 

É este poder político que mantém a exploração de uma classe egoísta e minoritária em detrimento de uma maioria explorada, ao longo de toda a História e diferentes modos de produção.

A dominação de uma classe sobre a outra também é estabelecida através do monopólio do uso da força, negando à classe dominada o seu uso. Isso é evidente nas restrições ao porte e uso de armas pelos cidadãos, limitando-se em grande parte aos agentes do Estado (como as forças armadas ou polícia), sob o pretexto de “manter a ordem pública”.

Para manter a “ordem”, a classe opressora, através do Estado, tem de criar uma força de violência que permite o controle social, isto é, um instrumento coercitivo. Claro que tudo isto exige que se crie uma ordem legal que, não apenas sirva de fundamento à ordem social como também de elemento punitivo a todo o desviante. A lei tem, neste sentido, um carater classista e serve para proteger os interesses da classe dominante e, com o auxílio da ideologia, disciplinar os elementos da classe dominada.

Uma das caraterísticas do Estado é, portanto, a sua organização enquanto força que subjuga as classes dominadas. Um outro elemento caraterístico é a burocracia. A burocracia e a existência de uma força militar permanente permitem duas coisas:

  • Cobrar impostos, com vista a alimentar toda a máquina estatal;
  • Meio de subordinação da pequena-burguesia que passa a ocupar um lugar neste aparelho, elevando-se acima do povo, dando uma falsa ilusão de que está acima deste.

Lenine sustenta que a revolução ocorre mediante a tomada do poder estatal pelas classes oprimidas, sendo um processo complexo, e que tem como objetivo destruir o Estado burguês. Aqui, o uso da violência revela-se como um meio necessário para alcançar esse fim, não porque os comunistas desejem a violência, mas porque a burguesia, detentora do poder, não cederá pacificamente a sua posição dominante. 

Qualquer tentativa de reformar o Estado ou o sistema capitalista, argumenta Lenine, seria insuficiente para eliminar as injustiças e desigualdades fundamentais, até porque as reformas apenas servem para perpetuar a condição de exploração e opressão da classe trabalhadora, através de algumas concessões com o intuito de reduzir a contestação. Ainda que essas mesmas reformas possam trazer algumas melhorias, não modificam a natureza opressora do Estado.

É somente através da ditadura do proletariado e da construção de uma sociedade socialista que as massas oprimidas poderão finalmente alcançar a verdadeira libertação e justiça social.

Ditadura do proletariado

Pode parecer paradoxal que no marxismo se fale de ditadura, especialmente, quando se almeja fazer uma revolução com o intuito de libertar-se de uma outra ditadura (da burguesia). Este conceito tem sido deturpado pelos pensadores burgueses e, por isso, alvo de algumas incompreensões.

Precisamos retroceder ao período romano para compreendermos o que se entende por ditadura, que tem um sentido diferente do da atualidade. Se hoje entendemos uma ditadura como um poder absoluto e arbitrário sem legitimidade, na antiguidade a ditadura só era exercida em situações agudas de crise. Portanto, em períodos excecionais, e que tinham como objetivo o regresso à normalidade. O ditador exercia o poder temporariamente e, assim que a crise ou problema que a motivou, estivesse ultrapassada deixava esse cargo.

A ditadura do proletariado tem como objetivo principal desmantelar o Estado burguês e expropriar a burguesia, enquanto cria as condições onde a classe mais numerosa (proletariado) governe, por oposição à democracia liberal, que se carateriza pelo governo da minoria sobre a maioria.

A ditadura do proletariado não é nada mais do que o poder exercido pelas classes oprimidas, com o objetivo de desmantelar o Estado burguês. E como se pode fazer isso? Na fase inicial, torna-se necessário adotar medidas que estiveram presentes na Comuna de Paris como:

  • Desmantelar o exército permanente. Isto permite que a força de repressão seja voltada, não contra a maioria da população, mas contra a minoria capitalista que ainda tenta reagir.
  • Supressão do parlamentarismo. Isto não significa que a representatividade deixa de existir, muito pelo contrário. O parlamentarismo, em boa verdade, tem contribuído para manter a exploração, dando a aparência de que o sufrágio universal dá liberdade de escolha. O objetivo do sufrágio na democracia burguesa passa por escolher quem terá o chicote para reprimir os oprimidos.
  • Plena elegibilidade e revogabilidade de todos os funcionários públicos, ou seja, escolha pública de todos os cargos, mas também permitindo a rotatividade de pessoas pelos cargos.
  • Redução dos vencimentos dos altos cargos estatais e dos funcionários públicos ao vencimento de um operário, e que tem como objetivo acabar com postos e funções favorecidas.
  • Socialização dos meios de produção. Isto não significa que o trabalho seja abolido, mas que cada um trabalhará o necessário socialmente e, deduzindo a “quantidade de trabalho destinada ao fundo social, receberá quanto deu”. Elimina-se, assim, a exploração do homem pelo homem, com a extinção da propriedade privada dos meios de produção.

A sociedade comunista será aquela um pouco semelhante ao que abordámos no início. Não existe uma classe possuidora, exploradora ou que domine outras. A sociedade produz o necessário para as necessidades e todos são igualmente responsáveis

O Estado nem sempre existiu e nem sempre existirá. A sua essência é a preservação de interesses particulares de um pequeno conjunto de pessoas em detrimento da maioria sendo, por isso, usado como instrumento de dominação.

Por isso, muito dificilmente o poder poderá ser passado pacificamente de uma classe que tem o monopólio da força e que tem muito a perder. Se o proletariado só tem a perder as correntes que o prendem, a burguesia tem a perder as chaves que usa para manter esta hierarquia de poder. E da mesma forma que os esclavagistas não libertavam pacificamente quando os escravos se queriam libertar, a burguesia também não o fará.

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About Davide Morais Pires (Colectivo marxista)

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