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O ABC da dialética materialista

O “ABC da dialética materialista” de Trotsky é uma breve e brilhante explicação da filosofia marxista. Foi escrito como parte de uma defesa do marxismo contra uma tendência revisionista de classe média no movimento trotskista norte-americano no final dos anos 1930, que tentava desafiar os seus princípios básicos. Em oposição ao pragmatismo e ao empirismo, Trotsky defendeu o materialismo dialético como uma visão mais rica, completa e abrangente da sociedade e da vida em geral.

O ABC da dialética materialista

A dialética não é ficção nem misticismo, mas uma ciência das formas do nosso pensamento, na medida em que não se limita aos problemas cotidianos da vida, mas tenta chegar a uma compreensão dos processos mais complicados e profundos. A dialética e a lógica formal mantêm uma relação semelhante à que existe entre as matemáticas superiores e as matemáticas elementares.

Tentarei aqui esboçar a essência do problema, de uma forma muito esquemática. A lógica aristotélica do silogismo simples parte da proposição de que “A” é igual a “A”. Este postulado é aceite como um axioma para uma infinidade de ações humanas práticas e generalizações elementares. Porém, na realidade, “A” não é igual a “A”. Isto é fácil de provar, se observarmos as duas letras sob uma lupa – estas são bastante diferentes uma da outra. No entanto, pode-se objetar que a questão não está no tamanho ou na forma das letras, uma vez que são apenas símbolos para quantidades iguais, por exemplo, um quilo de açúcar. A objeção não vem ao caso; na realidade, um quilo de açúcar nunca é igual a um quilo de açúcar – uma balança mais precisa sempre revela a diferença. Novamente, pode-se objetar: mas um quilo de açúcar é igual a si mesmo. Isso também não é verdade – todos os corpos mudam ininterruptamente em tamanho, peso, cor etc. Estes nunca são iguais a si mesmos. Um sofista responderá que um quilo de açúcar é igual a si mesmo “em dado momento”.

Além do valor prático extremamente duvidoso do “axioma”, este também não resiste à crítica teórica. Como devemos realmente conceber a palavra “momento”? Se for um intervalo infinitesimal de tempo, então um quilo de açúcar está sujeito, durante o curso desse “momento”, a mudanças inevitáveis. Ou o momento é uma abstração puramente matemática, ou seja, um tempo zero? Mas tudo existe no tempo; e a própria existência é um processo ininterrupto de transformação; o tempo é, portanto, um elemento fundamental da existência. Assim, o axioma “A” é igual a “A” significa que uma coisa é igual a si mesma se não mudar, isto é, se não existir.

À primeira vista, pode parecer que estas “sutilezas” são inúteis. No entanto, na realidade, têm um significado decisivo. O axioma “A” é igual a “A” parece, por um lado, ser o ponto de partida de todo o nosso conhecimento e, por outro, o ponto de partida de todos os nossos erros. Fazer uso do axioma “A” é igual a “A” com impunidade só é possível dentro de certos limites. Quando as mudanças quantitativas em “A” são insignificantes para a tarefa em questão, podemos presumir que “A” é igual a “A”. Essa é, por exemplo, a maneira pela qual um comprador e um vendedor consideram um quilo de açúcar. Consideramos a temperatura do sol da mesma forma. Até recentemente, considerávamos o poder de compra do dólar da mesma forma. Mas as mudanças quantitativas, além de certos limites, convertem-se em qualitativas. Um quilo de açúcar, submetido à ação da água ou do querosene, deixa de ser um quilo de açúcar. Um dólar, nas mãos de um presidente, deixa de ser um dólar. Determinar no momento certo o ponto crítico onde a quantidade se transforma em qualidade é uma das tarefas mais importantes e difíceis em todas as esferas do conhecimento, incluindo na sociologia.

Todos os trabalhadores sabem que é impossível fazer dois objetos completamente iguais. Na elaboração de rolamentos de bronze em rolamentos de cone, um certo desvio é permitido para os cones, mas não deve, entretanto, ir além de certos limites (isso é chamado de tolerância). Ao  observarem-se as normas de tolerância, os núcleos são considerados iguais (“A” é igual a “A”). Quando a tolerância é excedida, a quantidade converte-se em qualidade; por outras palavras, os rolamentos de cone tornam-se inferiores ou completamente inúteis.

O nosso pensamento científico é apenas uma parte da nossa prática geral, inclusive da técnica. Para os conceitos, também existe “tolerância”, que é estabelecida não pela lógica formal que surge do axioma “A” é igual a “A”, mas pela lógica dialética proveniente do axioma de que tudo está sempre em mudança. O “senso comum” caracteriza-se pelo facto de que excede sistematicamente a “tolerância” dialética.

O pensamento vulgar opera com conceitos como capitalismo, moral, liberdade, Estado dos trabalhadores etc., bem como com abstrações fixas, presumindo que o capitalismo é igual ao capitalismo, a moral é igual à moral etc. O pensamento dialético analisa todas as coisas e fenómenos na sua mudança contínua, embora determinando, nas condições materiais dessas mudanças, aquele limite crítico além do qual “A” deixa de ser “A”, um Estado operário deixa de ser um Estado operário.

O defeito fundamental do pensamento vulgar reside no facto de que deseja contentar-se com as impressões imóveis de uma realidade que consiste em movimento eterno. O pensamento dialético dá aos conceitos, através de aproximações sucessivas, correções, concretizações, uma riqueza de conteúdo e de flexibilidade; diria mesmo uma certa suculência que, até determinado ponto, os aproxima dos fenómenos vivos. Não o capitalismo em geral, mas um determinado capitalismo numa determinada etapa de desenvolvimento. Não um Estado operário em geral, mas um determinado Estado operário num país atrasado e sob cerco imperialista, etc.

O pensamento dialético está para o pensamento vulgar, assim como um filme está para uma fotografia fixa. O filme não exclui a fotografia fixa, mas combina uma série delas de acordo com as leis do movimento. A dialética não nega o silogismo, mas ensina-nos a combinar os silogismos de forma que nos levem o mais próximo possível da compreensão de uma realidade em eterna mudança. Hegel, na sua Lógica, estabeleceu uma série de leis: mudança da quantidade em qualidade, desenvolvimento através da contradição, conflito entre forma e conteúdo, interrupção da continuidade, mudança de possibilidade em inevitabilidade etc., que são tão importantes para o pensamento teórico quanto o silogismo simples para as tarefas mais elementares.

Hegel escreveu antes de Darwin e antes de Marx. Graças ao poderoso impulso dado pela Revolução Francesa ao pensamento, Hegel antecipou o movimento geral da ciência. Mas, por ser apenas uma antecipação, embora de um génio, recebeu, de Hegel, um caráter idealista. Hegel operou com sombras ideológicas como a realidade última. Marx demonstrou que o movimento dessas sombras ideológicas não refletia nada além do movimento de corpos materiais.

Chamamos a nossa dialética de materialista porque as suas raízes não estão no céu nem nas profundezas do nosso “livre arbítrio”, mas na realidade objetiva, na natureza. A consciência surgiu do inconsciente, a psicologia da fisiologia, o mundo orgânico do inorgânico, o sistema solar das nebulosas. Em cada degrau dessa escada de desenvolvimento, as mudanças quantitativas foram transformadas em qualitativas. O nosso pensamento, incluindo o pensamento dialético, é apenas uma das formas de expressão da matéria em mutação. Não há lugar neste sistema nem para Deus nem para o Diabo, nem para a alma imortal, nem para as leis e normas morais eternas. A dialética do pensamento, tendo surgido da dialética da natureza, possui, consequentemente, um caráter inteiramente materialista.

O darwinismo, que explicou a evolução das espécies através de transformações quantitativas passando a qualitativas, foi o maior triunfo da dialética em todo o campo da matéria orgânica. Outro grande triunfo foi a descoberta da tabela de pesos atómicos dos elementos químicos e, posteriormente, a transformação de um elemento em outro.

A essas transformações (espécies, elementos etc.) está intimamente ligada a questão da classificação, tão importante nas ciências naturais quanto nas sociais. O sistema de Linnaeus (século XVIII), partindo da imutabilidade das espécies, limitava-se à descrição e classificação das plantas de acordo com as suas características externas. O período infantil da botânica é análogo ao período infantil da lógica, uma vez que as formas do nosso pensamento se desenvolvem como tudo o que vive. Apenas o repúdio decisivo à ideia de espécies fixas, assim como o estudo da história da evolução das plantas e da sua anatomia prepararam a base para uma classificação realmente científica.

Marx, que, diferentemente de Darwin, era um dialético consciente, descobriu as bases para a classificação científica das sociedades humanas no desenvolvimento das suas forças produtivas e na estrutura das relações de propriedade que constituem a anatomia da sociedade. O marxismo substituiu a classificação descritiva vulgar das sociedades e dos Estados, que ainda hoje floresce nas universidades, por uma classificação dialética materialista. Só através do método de Marx, é possível determinar corretamente tanto o conceito de um Estado operário quanto o momento da sua queda.

Tudo isso, como vemos, não contém nada de “metafísico” ou “escolástico”, como afirma a ignorância presunçosa. A lógica dialética expressa as leis do movimento no pensamento científico contemporâneo. A luta contra a dialética materialista, ao contrário, expressa um passado distante, o conservadorismo da pequena burguesia, a presunção de universitários rotineiros e… uma centelha de esperança por uma vida após a morte.


Leon Trotsky, 13 de dezembro de 1939

Tradução da Esquerda Marxista adaptada para o português europeu.

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