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25 de Novembro: anatomia de um golpe 

O 25 de novembro deve ser compreendido na sequência do rumo que a revolução portuguesa tomara nos meses anteriores, nomeadamente após as eleições à Constituinte a 25 de abril de 75.  Malgrado as diferenças políticas importantes que existiam no seio da classe trabalhadora, esta fora capaz de ter uma ação resoluta e unida nas grandes jornadas do primeiro ano da revolução, nomeadamente nos primeiros dias após a sublevação militar que transformou um golpe numa revolução e na derrota dos golpes de Estado tentados por Spínola a 28 de setembro e 11 de março. 

Foi essa unidade resoluta que permitiu a conquista das liberdades políticas e sindicais, uma série de melhorias palpáveis para a classe trabalhadora (criação do salário-mínimo, férias pagas, aumentos salariais, etc.) e, após o 11 de março, a nacionalização da banca, seguros e grandes empresas. 

As eleições à Constituinte, porém, vieram contrabalançar a “legitimidade revolucionária” com a nova “legitimidade eleitoral”. Os resultados eleitorais não podiam ter sido mais claros: o PS era, de longe, o partido mais votado com quase 38% dos votos. O PCP apenas obtivera 12,5% e o seu próximo aliado MDP cerca de 4%. Toda a chamada “extrema-esquerda” somada alcançava apenas outros 4%. 

Este ponto é importante: não obstante toda a militância, por vezes histriónica, dos pequenos grupos esquerdistas e de alguns bastiões que efetivamente possuíam em empresas e faculdades, o conjunto dos trabalhadores orientava-se face ao PCP e do PS e este último surgia como o partido mais votado pela classe trabalhadora. 

A partir daqui os conflitos latentes entre PS e PCP (e na questão da “Unicidade Sindical” já não tinham ficado tão dissimulados assim…) vieram à tona fraturando a classe trabalhadora: a unidade e determinação mostradas nas jornadas do 28 de setembro e 11 de março não se repetiriam a 25 de novembro. 

A classe trabalhadora dividida 

A divisão e o sectarismo que se instalou no movimento operário iria permitir à contrarrevolução levantar a cabeça durante o chamado “Verão Quente de 75”. Aproveitando o caso “República”, jornal que lhe era afeto e que tinha sido tomado pelos próprios trabalhadores que em seguida sanearam a direção do jornal e mudaram a sua linha editorial, lançou o PS uma campanha em “defesa da liberdade”, no qual foi seguido por toda a direita, extrema-direita e até algumas seitas maoistas.  

Isto coincidiu com algum cansaço, desilusão e medo de alguns setores da pequena-burguesia que tinham ficado a perder (ou temiam ver-se prejudicados) com o processo revolucionário – e a estes juntavam-se ainda os “retornados” das antigas colónias. Quinze meses depois, com a sabotagem e fuga de capitais, apertando-se um cerco económico e financeiro, durante a mais grave recessão económica mundial do pós-guerra e, necessariamente, com a desorganização e instabilidade provocadas pela agitação social, pela descolonização e pelas mudanças revolucionárias, a situação económica do país tinha de estar (não obstante os ganhos sociais) necessariamente numa situação difícil, pois  apesar de  toda a retórica socialista, a economia portuguesa continuava a ter uma natureza capitalista. A revolução não tinha sido concluída!  

Com as divisões políticas extremadas, durante esse Verão, caíram o 4º e depois o 5º governo provisório sem que o clima de violência e intimidação que se abatia sobre o PCP, a CGTP e outros partidos de esquerda, em certas zonas mais conservadoras do país, pudesse ser sustido pela ação do MFA. 

O Movimento das Forças Armadas era um movimento de oficiais. Ainda que muitos destes oficiais se tivessem tornado genuína e convictamente revolucionários, o conjunto do corpo de oficiais pequeno-burgueses que compunham o MFA, e que até aí se mantivera unido e se apoiara na classe trabalhadora para manter-se no poder, para rechaçar os golpes reacionários e adoptar medidas progressistas como a descolonização, reformas sociais, eleições e até nacionalizações; uma vez chegado à hora decisiva, esse corpo de oficiais pequeno-burgueses refletindo as divisões na sociedade, dividiu-se ele também em linhas de classe! O MFA não podia ficar imune à luta de classes. E não ficou! 

No princípio de setembro, na Assembleia do MFA em Tancos, operou-se a uma profunda recomposição dos órgãos do MFA, conferindo ao Conselho da Revolução uma maioria clara de oficiais ditos “moderados”. Esta foi a última reunião da Assembleia do MFA e, de certa maneira, marcou o fim do Movimento.  

O 6º governo provisório e a luta operária 

Pouco depois formava-se o 6º governo provisório refletindo correlação de forças entre o PS, PPD e PCP expressa nas eleições à Constituinte – o PCP tinha agora apenas um ministro. Tinha também um pé dentro do governo e outro em cada manifestação popular contra a sua política. A tática do PCP era utilizar a luta de massas como pressão para provocar uma nova remodelação governamental na qual ganhasse mais peso: tal como acontecera em anteriores remodelações governamentais até à formação do 6º governo provisório!  

Desde o início de funções do novo governo, ficou claro que esse executivo iria levar a cabo uma política de retrocesso da revolução. Contra a crise pregava a disciplina e a austeridade. O socialismo era ainda a meta oficialmente perseguida, mas não seriam políticas socialistas (na ótica governamental) a recuperar a economia do país: seriam medidas capitalistas a fazê-lo. Ora isso iria encontrar – e encontrou – uma grande resistência por parte dos trabalhadores. 

Precisamente, este período foi marcado pela ocupação em massa de herdades na zona da reforma agrária e pela terceira grande vaga de greves do movimento operário. Não obstante as divisões políticas na classe, as grandes batalhas no plano sindical tomaram forma em torno das negociações dos contratos coletivos de trabalho, contra a crise e a austeridade que o governo pretendia aplicar. Cada greve era uma pequena guerra e o governo, apesar de tentar ter mão pesada como foi com rebentamento à bomba dos emissores da Rádio Renascença que se encontrava em autogestão, não dispunha de instrumentos seguros para reprimir o movimento operário e impor as suas políticas.

Um aspeto político importante neste Outono foi que polarização na revolução portuguesa, radicalizara não apenas à direita um sector da pequena-burguesia, mas também à esquerda um sector de trabalhadores, soldados e marinheiros 

Para poder quebrar a resistência operária, popular e militar, era prioritário para o governo a eliminação de centros autónomos de poder de modo a reforçar a sua própria autoridade. Com esse objetivo criou uma nova Unidade militar: o Agrupamento Misto de Intervenção como contraponto às forças do COPCON dominadas pelos oficiais radicais. Mas desde o início, contou com uma oposição aguerrida. A indisciplina militar não podia ser travada por decreto e apar da criação do AMI surgiu o movimento Soldados Unidos Vencerão (SUV) que se proclamava como “trabalhadores fardados” exigindo a expulsão dos oficiais reacionários dos quartéis e a destruição do exército burguês para a criar o braço armado da classe trabalhadora, o que constituía um novo desafio à disciplina das Forças Armadas reclamada pelos moderados. 

Essa dualidade de poder no seio das Forças Armadas, retirava à burguesia um instrumento seguro para poder reprimir o movimento operário e popular e sob o guarda-chuva protetor das unidades militares de esquerda, a contestação às políticas pró-capitalistas do VIº Governo Provisório podia e estava a ganhar uma radicalidade que punha em xeque a “normalidade democrático-burguesa” pretendida – veja-se o cerco de 2 dias ao parlamento! 

Numa ação inaudita, o próprio governo chegou a entrar em greve protestando contra as greves e contra o clima de agitação que se vivia no país: as demonstrações de força do executivo eram sabotadas pela indisciplina de várias unidades militares e pela audácia dos sectores mais avançados da classe trabalhadora. Assim, quando os operários da construção civil cercaram e sequestraram os deputados da Constituinte (11 de novembro) para que o governo cedesse e assinasse o acordo coletivo de trabalho, este mais nada pôde fazer senão… ceder! Tinha mandado a tropa “libertar” o parlamento, mas os soldados ao invés de dispersarem o cerco, preferiram confraternizar com os operários partilhando-se entre eles sardinhas e vinho tinto… 

Servindo-nos das palavras do então primeiro-ministro, almirante Pinheiro de Azevedo: “a situação está como estava: primeiro fazem-se plenários e depois cumprem-se as ordens”

No Outono de 1975 estávamos num clássico dilema: nem a burguesia conseguia governar, nem o proletariado tinha força para criar o seu governo, apenas porque não existia nenhuma força política de massas capaz de unir os trabalhadores em torno dum programa de classe que apontasse a tarefa de concluir a revolução.  

Podia-se viver assim algum tempo, não se podia viver assim para sempre. Que consenso poderia ser formado entre a burguesia e o proletariado? Uma das duas classes teria de vencer: Na história não há lugar a empates.  

O 25 de novembro 

Ainda hoje se discute sobre o 25 de novembro, sem que haja consenso. Num nível mais superficial podemos dizer que as tropas para-quedistas, ameaçadas de dissolução e com salários em atraso, revoltaram-se conta as suas chefias hierárquicas e ocuparam um conjunto de bases aéreas. Há quem sustente que se tratava dum simples conflito corporativo que foi aproveitado pelos “moderados” e direita militar para decapitar a esquerda. Há quem jure que fazia parte dum “golpe comunista” orquestrados pelos oficiais radicais.  

Certo é que os para-quedistas foram talvez a tropa mais enganada durante o PREC: enganados no 11 de março e enganados no caso da Rádio Renascença. Terão também sido engados no 25 de novembro? Certo é que a ação dos paraquedistas a 25 de novembro coincide com a nomeação de Vasco Lourenço para a chefia do COPCON o que, num espaço de semanas ou até dias, permitiria desarticular a esquerda militar. Certo é que após a reunião do Conselho da Revolução em que Otelo é exonerado da Chefia do COPCON, este ausenta-se e desaparece de cena durante horas. Certo é que mesmo sem um comando centralizado, na manhã do 25 de novembro, com as principais bases aéreas ocupadas pelos para-quedistas, com Otelo demitido e desaparecido, as unidades militares de esquerda tomam conta de pontos estratégicos e acessos à capital. Certo é que o Presidente Costa Gomes passa nessa manhã horas ao telefone com diversos oficiais e unidades (em particular demovendo os fuzileiros de se juntarem à liça, eles que eram uma unidade próxima do PCP), mas também com todos os líderes políticos e com a CGTP. Certo é que todos os principais partidos apelaram à calma, contenção e “disciplina revolucionária” e não houve uma mobilização popular e operária como nas jornadas do 28 de setembro e 11 de março. Certo é que com recurso a escassas duas centenas de comandos, sem que praticamente se disparasse um tiro, a contrarrevolução triunfaria!  

O papel do PCP 

A 25 de novembro a classe trabalhadora achou-se politicamente dividida e paralisada. Os vários grupos esquerdistas não tiverem peso e influência para modificar os acontecimentos. E se a direção do PS fomentou o golpe de novembro, a direção do PCP aceitou-o sem lutar, sem mobilizar os milhares de trabalhadores, soldados e marinheiros comunistas, em troca duma “normalização democrática” onde estivesse incluindo, o que de facto viria a acontecer não pelo seu papel “moderador”, não pela sua “capacidade negocial”, mas porque o poder imenso da classe trabalhadora, a sua militância e elevado grau de consciência, condicionaram a burguesia a conduzir uma contrarrevolução democrática que levaria anos e até décadas para destruir as grandes conquistas da Revolução no plano económico e social. 

Este é, aliás, um ponto crucial. Amiúde à esquerda é indicado que se evitou uma “guerra civil” no 25 de novembro. Escassos dias depois do golpe, Álvaro Cunhal, secretário-geral do PCP, afirmava num comício em Lisboa:   “Creio poder afirmar-se que se deve em grande parte à serenidade do PCP, à sua orientação responsável, que a classe operária e as massas trabalhadoras em diversos sectores não tenham sido contagiados pelo verbalismo pseudo-revolucionário e aventureirista, e se tenha assim evitado uma grande tragédia e uma grande e sangrenta derrota do movimento operário e popular.” 

Admissão mais clara, por parte do próprio PCP, de que o PCP contribuiu para o efetivo desenlace do dia 25 de novembro não pode haver! A derrota do 25 de novembro é, pois, apresentada como uma consequência, por um lado, do “aventureirismo esquerdista”; e por outro, porque “em 25 de Novembro, se encontravam dum lado e do outro militares que poderiam e deveriam ter-se entendido para uma solução política da crise que se agravava dia a dia”. (ibidem).  

E porque é que estres militares “dum lado e do outro” não foram capazes de se entender? Talvez porque não escutaram o PCP que talvez tenha sido a única formação política que insistiu sistematicamente numa solução política para a crise, numa solução negociada, numa solução de compromisso entre as forças e sectores políticos e militares que têm estado com o processo revolucionário” (ibidem) 

Por outras palavras, em pleno furação revolucionário, a política do PCP nos meses que antecederam o golpe de novembro centrou-se em convencer a burguesia “antifascista” e os seus representantes políticos e militares da necessidade de se aliarem com as mesmas forças políticas e militares que aqueles pretendiam derrotar, de modo a poderem repor a disciplina nos quartéis, terminar com a dualidade de poder embrionária e travarem o passo à luta da classe trabalhadora. Mesmo já depois do golpe de novembro, Álvaro Cunhal insistia na prossecução da mesma política que conduzira à derrota, afirmando que ”as possibilidades reais da reunificação do MFA (…) passam não só pela revisão da política de alianças do PS e de certos sectores moderados do MFA, como também pelo combate ao aventureirismo esquerdizante e pseudo-revolucionário.” (ibidem). 

Na realidade, toda a política de conciliação de classes defendida pelo PCP (plasmada na “Aliança povo-MFA”) apenas desbravou o caminho para a derrota no 25 de novembro, apresentada à posteriori como inevitável, mas aceitável, dado que se evitou uma “grande e sangrenta derrota”, pela correlação de forças existente. 

Cabe reconhecer aqui que a “correlação de forças” a 25 de novembro não era tão favorável como a 11 de março quando a derrota do golpe spinolista às mãos da classe trabalhadora e dos militares revolucionários conduziu à expropriação imediata, da noite para o dia e sem compensações dos grandes grupos económicos do país. Mas isso serve apenas constatar o óbvio. 

A verdade é que durante todo o período revolucionário, existiram as forças capazes de mudar o país e o mundo, mas faltou a direção política. Os trabalhadores e soldados revolucionários derrotaram várias tentativas de golpes de estado, ocuparam terras, fábricas, casas, forçaram as nacionalizações, forjaram poderosos sindicatos e partidos. A certa altura em 1975, a revista Times escrevia: “Capitalism is dead in Portugal”. Infelizmente não estava. Não foi por falta de mobilização ou de “consciência”, de participação ou de espírito de sacrifício que a revolução se perdeu. Que mais se poderia ter pedido aos trabalhadores naquela época? O que perdeu o movimento foi a sua direção, tanto a social-democrata como a estalinista, cada qual à sua maneira, com os seus métodos e propósitos. 

A única coisa ausente em Portugal nos anos do PREC foi o “fator subjetivo”: uma corrente marxista de massas, um partido, com um programa anticapitalista que salvaguardasse as liberdades democráticas recém-conquistas no 25 de Abril; um programa capaz de superar as divisões que existiam na classe; um programa que apontasse a multiplicação das comissões de trabalhadores e de moradores, de soldados e marinheiros, dos comités estudantis e das cooperativas (que já existiam) e, sobretudo a sua unificação e coordenação a nível nacional como órgãos de luta, como os órgãos emergentes do poder operário capazes de potenciar, primeiro, os elementos de dualidade de poder existente e de derrubar, depois, o Estado burguês, de modo a levar a cabo, com base nas nacionalizações, à planificação democrática da economia, erradicando o capitalismo. 

Tal não sucedeu. Um partido revolucionário de massas não se improvisa no calor dos acontecimentos: tem de começar a ser construído muito antes. Esse é o propósito dos comunistas que se hoje se organizam no Colectivo Marxista! 

À laia de conclusão, é claro que não temos forma de saber como teria sido a história se, no 25 de novembro, o PCP tivesse resistido ao golpe. Na prática, pela sua política de apelo à unidade com os sectores “antifascistas” da burguesia e do seu aparato militar, poderia o PCP pressionar mas não opor resistência, como de facto não o fez! O que sabemos, porém, porque a História o demonstra é que nenhuma classe dominante abdica do seu poder e posição sem uma luta e uma luta séria! E nenhuma luta séria pode ser ganha com apelos à conciliação entre as classes em combate. 

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