O veto de Marcelo e a luta pela habitação 

Arturo Rodríguez 

O veto presidencial ao pacote Mais Habitação adia a aplicação das medidas para lidar com a crise habitacional e supõe a enésima tentativa de rebaixar e modificar o conteúdo de uma legislação já insuficiente desde o início. Corretamente, o movimento pela habitação vai responder a este novo ataque nas ruas no dia 30 de setembro. A acidentada trajetória deste pacote revela muitas coisas sobre a crise habitacional e é bastante ilustrativa sobre a própria natureza da democracia burguesa.

Um pacote controverso… Para quem? 

Como já denunciamos naquela altura, o pacote Mais Habitação resultava insuficiente desde que o primeiro rascunho foi apresentado “ao debate social” em fevereiro. O pacote visava aliviar a crise habitacional, mas sem abordar os elementos principais do problema: sem tocar grande propriedade privada (pelo contrário, a bajulava através de isenções e subsídios), e sem fazer grandes investimentos públicos em construção e restauração de prédios. A proposta de lei, porém, continha pontos positivos dentro da sua lógica timidamente reformista, como a limitação dos Alojamentos Locais, o arrendamento forçoso de propriedades devolutas e a terminação parcial dos vistos gold. A aplicação destas medidas teria se calhar mitigado um tanto a grave crise habitacional mas, sobretudo, teria revelado os limites do reformismo e empurrado muitas pessoas a tirarem conclusões sobre a verdadeira natureza do problema: a propriedade capitalista, a anarquia do mercado e a impotência e a lentidão burocrática do Estado burgués. 

Todavia, qual foi a natureza daquele “debate social” encetado pelo PS após a apresentação do projeto? O lobby imobiliário começou a pressionar o governo, utilizando o seu poderoso altavoz midiático, paralisando investimentos o ameaçando com os retirar, e mobilizando os seus aliados no aparelho do Estado, particularmente no judicial, na oposição parlamentar e, com efeito, no Palácio de Belém, onde o presidente mostrou-se sempre muito sensível às preocupações dos senhorios. Logo no início Marcelo brandiu a ameaça do veto presidencial, que agora se tem verificado. Nas ruas e praças do país, porém, o lobby imobiliário não conseguiu muita coisa, convocando uma manifestação de “cerca de 200 pessoas” em Lisboa. Os lucros da especulação imobiliária podem comprar manchetes e seduzir juízes e deputados, mas não podem arrastar o povo às ruas. Os que conseguiram levar dezenas de milhares de pessoas a se manifestarem foram as organizações pelo direito à habitação, com as grandes mobilizações de abril. Isto mostra a verdadeira correlação de forças e o caráter deste “debate”: a empatia para com os senhorios dos media não é compartilhada por amplos setores da classe trabalhadora, da juventude, e até da classe média, que estão a encher os bolsos do setor imobiliário com o seu suor. 

Sob a pressão dos proprietários, o governo começou a recuar, esbatendo os elementos mais “controversos” do pacote. A versão final aprovada em julho era ainda mais limitada do que a proposta inicial, contorcendo medidas como o arrendamento forçado até as tornar irreconhecíveis. A ideia do PS ao anunciar aquele “debate social” fica esclarecida: fazer muito barulho no início para recuperar o seu perfil de esquerda, para depois diluir ao máximo o pacote e não mudar nada na prática. Como o próprio Marcelo assinalou, alguns elementos do pacote, como o arrendamento coercivo, ficou “tão limitado e moroso que aparece como emblema meramente simbólico”. Contudo, Marcelo não pode admitir nem a versão adulterada da lei, e vetou-a, exigindo novas rebaixas.”O presente diploma, apesar das correções no arrendamento forçado e no alojamento local, dificilmente permite recuperar alguma confiança perdida por parte do investimento privado”, disse Marcelo. Claro como o dia. 

Criticou também o caráter demagógico do pacote, que promete muitas coisas mas não fornece os recursos necessários e encarrega a sua aplicação a instituições já assoberbadas. “Não é fácil de ver de onde virá a prometida oferta de casa para habitação com eficácia e rapidez”, acrescentou. “Salvo de forma limitada, e com fundos europeus, o Estado não vai assumir responsabilidade direta na construção de habitação”, disse. Tem razão ao levantar o problema dos recursos, embora o faça desde a sua perspectiva de classe, que lhe incapacita para compreender o âmago do problema. O setor privado não quer construir casas baratas nem deixar de especular com as já existentes, enquanto o Estado, afogado na dívida, não tem os recursos para abordar as tarefas necessárias. O problema de fundo é a gestão irracional e inhumana por parte do capitalismo e do mercado da riqueza e dos recursos (que existem de sobra); o problema da habitação é, em definitivo, um problema de propriedade. 

O caráter antidemocrático da presidência

A democracia burguesa é uma delicada maquinaria que procura toldar o verdadeiro caráter opressivo, segregador e explorador do sistema capitalista. A tomada de decisões importantes é protegida da pressão da classe trabalhadora através de múltiplos anteparos. Um deles é a chamada “divisão de poderes”, que fornece ao sistema de interruptores de segurança caso alguma das instituições se rebele, nem que seja timidamente, contra os interesses da burguesia. Aqui, o poder judicial, sobretudo, a presidência, têm um papel fundamental. Se estudarmos a atitude de Marcelo para com o governo nos últimos anos, repararemos que tem sempre visado disciplinar e fiscalizar o governo no interesse da burguesia. O seu poder de veto é uma ingerência na vida parlamentar e na atividade do governo eleito, embora seja uma ingerência totalmente coerente com a democracia burguesa e a sua constituição. Cabe-lhe agora ao governo decidir o que fazer com a lei: pode teimar na sua aprovação, ou, previsivelmente, como espera Marcelo, esbater o que restava do pacote, desfigurando-o ainda mais. Assim, a presidência terá cumprido a sua função de fiscalizador burguês do parlamento e do executivo. 

Todavia, o veto é uma arma de dois gumes nas mãos do presidente. Os conflitos constantes entre Marcelo e António Costa estão a “desacreditar” as instituições do Estado burguês e a contribuir para a “polarização” da vida política.  Com efeito, muitas pessoas estão a acompanhar e a tirar conclusões das inúmeras crises políticas que abalam Portugal. Estas brigas mostram que o Estado não é uma instituição “neutra”, que vela pelos interesses da maioria, mas uma amálgama de grupos que lutam cinicamente pelos seus interesses e que são muito sensíveis às pressões dos grandes capitalistas. Nas vésperas do 50 aniversário da revolução, estes episódios também colocam a questão da natureza da democracia portuguesa que tanto louva todo o leque político do país (incluindo o PCP e o BE). A constituição portuguesa diz coisas muito bonitas, mas, na prática, ela e o sistema político que sustenta dedicam-se a defender e proteger os privilégios dos ricos enquanto os pobres são explorados, despejados, expulsos dos seus bairros e sepultados pela burocracia e a indiferença das instituições quando querem mudar as coisas. Já temos ouvido como essa constituição tão “revolucionária” tem sido utilizada pelos senhorios ao denunciarem o pacote Mais Habitação.   

A luta continua! 

A chave para resolvermos a crise habitacional não está na constituição de 1976 mas no exemplo do movimento dos moradores de 1974-1975. Organizaram-se, mobilizaram-se, uniram-se aos sindicatos e aos outros movimentos operários e populares, ocuparam os terrenos e os prédios e, sobretudo, lutaram por um mundo novo. Esse é o nosso caminho. Celebramos a convocatória da manifestação do dia 30 para protestar contra o veto de Marcelo e a passividade e covardia de Costa. Mas não chega com sairmos mais uma vez às ruas como já fizemos há seis meses. No último ano e meio, Portugal tem sido abalado por várias lutas, greves e protestos que, isoladamente, têm sido contornados pelo governo. A tarefa urgente é unirmos as lutas numa grande frente, que aglutine o movimento pela habitação, os setores em greve, os sindicatos, o movimento das mulheres, as lutas pelo clima, pela vida justa, dos bairros periféricos, e que caia como um punho sobre o governo e sobre a burguesia que paparica, colocando uma visão revolucionária de transformação social.  

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