Nos últimos tempos muito se tem falado na crise do sector automóvel e, ainda há pouca semanas, se fez manchete do encerramento histórico (porque pela primeira vez em território alemão) de fábricas da Volkswagen. A mesma Volkswagen cuja unidade de Palmela a torna numa das principais empresas exportadoras de Portugal.
No olho do furacão estão (especialmente, mas não só…) os construtores europeus de automóveis, a braços com a concorrência chinesa que está a inundar o mercado mundial com carros elétricos mais baratos, mais eficientes e tecnologicamente mais avançados. Outro problema sério prende-se a com a perda de rendimento das famílias trabalhadoras na Europa, onde os construtores do continente até aqui dominavam. Anos e anos de austeridade, como resultado da crise capitalista, diminuíram o número de vendas e reorientaram o consumo para o chamado low-cost onde as margens de lucro são menores e, portanto, não é por acaso que o Dácia Sandero, um dos carros mais baratos seja também o mais vendido entre particulares no continente europeu. De qualquer modo, e por enquanto, esta crise não se reflete ainda em prejuízos para estas empresas, mas apenas em menores lucros que, todavia, continuam a contar-se na escala dos biliões.
Contudo, em face da queda das vendas e redução das quotas de mercado, num exemplo claro de crise de sobreprodução, as grandes empresas europeias do sector preparam-se para reduzir a capacidade produtiva instalada e despedir milhares por toda a Europa, tanto nas empresas-mãe como nas fábricas de componentes. E também em Portugal!
No nosso país, de acordo com a Associação de Fabricantes para a Indústria Automóvel (AFIA), existem 350 empresas que empregam 64 mil operários, faturando em 2023 mais de 14 mi milhões de euros, equivalente a 5,4/ do PIB e mais de 15% das exportações em bens transacionáveis! Falamos, portanto, dum sector industrial crítico no qual soam as sereias de alarme, prevendo-se que os próximos anos serão de estagnação. Porém e ainda antes da anunciada “estagnação”, já este sector é aquele onde o desemprego mais subiu, com um aumento de 26% até outubro deste ano. E, na verdade, a situação poderá tornar-se dramática: sabe-se agora do Layoff na Ficosa afetando 900 trabalhadores, a Coindu vai deixar no desemprego 350 trabalhadores até ao fim do ano e 400 postos de trabalho estão ameaçados com o fim do contrato da Vanpro com a Volkswagen.
Para Daniel Bernardino, coordenador do órgão representativo das comissões de trabalhadores do Parque Industrial Autoeuropa em Palmela e membro do conselho de administração da Forvia (o capitalista inteligente gosta de ter os trabalhadores a bordo…), para resolver a crise, “um dos caminhos é a formação. Apostar nisto é responder aos desafios da eletrificação e digitalização”. Bom… um pouco de formação em capitalismo e luta de classes não estaria mal de todo, com efeito!
Falar em “formação” é sempre muito bonito. Mas de que serve a “formação” se o mercado não estica e a procura não cresce e se a indústria automóvel europeia enfrenta hoje a concorrência chinesa que era inexistente há 20 anos e se preveem, em consequência “anos de estagnação”? De que serve a “formação” se num outro país os custos energéticos forem mais reduzidos ou a mão-de-obra mais barata, ou se na China ou na Índia conseguem organizar economias de escala inimagináveis para um pequeno país como Portugal? De que serve, enfim, a “formação” para a eletrificação e digitalização se são os próprios grandes capitalistas do ramo automóvel a avisar que a construção de carros elétricos exigirá o concurso de muito menos trabalhadores…?
Mas talvez não fosse mal-avisado dar alguma formação aos patrões portugueses que, pela voz do seu representante da (AFIA), na peça do jornal Público que temos citado, se queixa dum “quadro regulatório severo”. Ora, não obstante esse “quadro severo”, sucede que os fabricantes chineses de automóveis elétricos não se queixam das metas de descarbonização nos mercados europeus onde paulatinamente estão a dar cartas, mas para as quais “todos [isto é: patrões portugueses e europeus] pedem mais tempo“…
Os argumentos da descarbonização e dos “regulamentos europeus” são, aliás, absolutamente falaciosos. Na China (que é já hoje um mercado mais de duas vezes maior que o europeu) não existem nem os regulamentos nem as metas de descarbonização da Comissão Europeia e a realidade é que as vendas dos construtores europeus estão em queda-livre, a começar nas marcas alemãs.
A propósito, a decisão da União Europeia para aumentar as tarifas alfandegárias às importações de carros elétricos chineses, incrementando a guerra económica latente com a China, acabará, mais à frente na estrada, por se voltar contra os construtores europeus que precisam do mercado chinês para sobreviver… se o conseguirem! De qualquer modo, mesmo descontando o médio prazo, o aumento de tarifas alfandegárias tem uma expressão imediata: serão os consumidores (i.e. os trabalhadores) a pagar o preço acrescido pelo protecionismo!
Certo e seguro é que 350 trabalhadores na Coindu em Arcos de Valdevez perderão o seu emprego até ao fim do mês. O impacto que isto terá numa pequena comunidade do Alto Minho é difícil de imaginar… Para o patronato português tudo se poderia revolver se adiássemos as metas de descarbonização, sacrificando o futuro do planeta ao lucro do presente, através duma economia do passado… Para o sindicalista que participa no conselho de administração da empresa, nada como uma mão-cheia de “formação”. Consciencializar, organizar, mobilizar? Isso pelos vistos não será sindicalismo moderno e responsável quanto baste.
Porém, e pelo contrário, este exemplo da indústria automóvel é paradigmático da crise sistémica do capitalismo e dos limites das políticas reformistas. A eletrificação automóvel só é um “problema”, na medida em que interfere com os lucros dos patrões. Mas numa economia democraticamente planificada não seria o lucro a ditar as metas de descarbonização. A eletrificação nem sequer deveria ser uma ameaça aos postos de trabalho, mas uma mola para a redução da jornada laboral.
De igual modo, só existe “sobreprodução”, porque existe capitalismo. No capitalismo se não se vendem carros, corta-se na produção, nos salários, no emprego. No limite, encerram-se as fábricas. Numa economia planificada (e planificada democraticamente primeiro à escala europeia e depois mundial) não estaríamos a falar na redução de milhares de postos de trabalho na indústria automóvel, mas na reconversão da indústria automóvel europeia e dos seus trabalhadores para a produção de meios de transporte “verdes” – e seguramente nem seriam de todo ou necessariamente sequer carros ligeiros de passageiros…
E para tudo isto bastaria que os trabalhadores, ganhando consciência do seu poder, se organizassem e tomassem as rédeas da sociedade nas suas mãos. Mas qual é dirigente sindical que tem esta perspetiva no horizonte? Na coordenação das comissões de trabalhadores do Parque Industrial Autoeuropa em Palmela a única perspetiva balbuciada é “formação” … quiçá com o apoio de “fundos europeus”!
Contudo, a batalha está longe de estar perdida. Na verdade, só agora está a começar. Este é um combate que na Europa e nos próximos anos irá mobilizar centenas de milhares de trabalhadores do Alto Minho à Baixa Saxónia; e é um combate que pode ser vencido. Mas é absolutamente urgente a unificação das lutas do sector e a sua coordenação à escala europeia, porque toda a indústria é transnacional e está integrada. É definitivamente necessário que os trabalhadores do ramo automóvel se juntem a operários de outros sectores também eles ameaçados pela decrepitude do capitalismo europeu: o patrão só nos pode vencer se nos mantiver isolados e divididos. E é totalmente imperativo que a pauta de luta não se restrinja à manutenção de postos de trabalho, salários e regalias: se os patrões não conseguem manter a funcionar uma fábrica, se uma empresa está em dificuldades ou se ameaça encerrar, que se avance com a consigna da expropriação e da gestão destas indústrias sob controlo dos trabalhadores – único modo de verdadeiramente se salvaguardem (e melhorarem) as condições de vida e de trabalho destes operários.
Enfim, a crise do sector automóvel (principalmente europeu) coloca em evidência os limites, não só da propriedade privada, mas também do Estado nacional. Toda a política “patriótica”, ainda que possa aspirar a querer ser de “esquerda”, revela-se inconsequente e inútil: não só o protecionismo económico, “exportando a crise” será sempre pago pelos trabalhadores, mas também a reconversão necessária da indústria automóvel tem de ser feita à escala continental e até mundial. E assim será feita, seja à custa da acrescida opressão dos trabalhadores, seja graças à expropriação dos patrões: o futuro está nas nossas mãos por decidir!