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André Kosters / Lusa

Sócrates, Operação Marquês e uma Paródia de Justiça

Chegou ao fim, no dia 9 de abril, a fase de instrução da Operação Marquês, um dos mais mediáticos processos judiciais de sempre, que tem como figura central o ex-primeiro-ministro José Sócrates. Juntamente com 27 outros arguidos, perfazendo um total de 189 crimes, Sócrates estava acusado pelo Ministério Público de 31 crimes, entre os quais corrupção passiva de titular de cargo político, branqueamento de capitais, falsificação de documentos e fraude fiscal qualificada. A decisão  anunciada pelo juiz Ivo Rosa de não acusar José Sócrates de uma série de crimes, incluindo os crimes de corrupção, vai seguramente causar controvérsia nos próximos tempos.

Este processo arrasta-se há quase sete anos e o seu tamanho e complexidade foram invocados pelo juiz Ivo Rosa para justificar a falta de celeridade da justiça e o facto de não ter sido obtida uma decisão dentro dos prazos legalmente previstos. Teve o seu momento mais mediático com a detenção, a 21 de novembro de 2014, de José Sócrates no aeroporto de Lisboa, vindo de um voo proveniente de Paris. A detenção de um ex-primeiro-ministro, assim como as acusações de corrupção contra o ex-chefe do governo, foi algo inédito na história da justiça em Portugal. No entanto, a montanha pariu um rato e quase todas as acusações contra Sócrates caíram, sobrando apenas três crimes de branqueamento de capitais e três de falsificação de documentos. Não porque tenha ficado provada a inocência do antigo governante, mas apenas devido a meras tecnicalidades jurídicas.

Após acusações de falta de imparcialidade por parte da defesa dos arguidos contra o juiz Carlos Alexandre, o magistrado inicialmente a cargo do processo, o juiz Ivo Rosa foi selecionado em 2018, por sorteio eletrónico, para dirigir esta fase de instrução. A 9 de abril de 2021, Ivo Rosa começou por deixar cair as acusações de falsificação de documentos imputadas a José Sócrates e Carlos Santos Silva, por entender que o juiz Carlos Alexandre não tinha poder para autorizar a respetiva diligência junto do Banco de Portugal, considerando assim como nulos todos os dados obtidos sobre regularização de dívidas ou capital. Justificando-se com outro formalismo técnico, o juiz não autorizou a utilização das escutas do processo Face Oculta, que implicam José Sócrates e vários outros arguidos, como prova no processo da Operação Marquês, dado ter sido o Tribunal da Relação do Porto a autorizar essa migração e não um juiz de instrução. Sócrates foi ilibado do crime de corrupção passiva no âmbito do caso de favorecimento ao Grupo Lena porque o crime já havia prescrito aquando da acusação. O juiz considerou insuficientes as provas apresentadas pela acusação no âmbito de diversos outros crimes de corrupção passiva, nomeadamente os que envolvem a Parque Escolar, o TGV e a OPA da Sonae sobre a PT. Em relação a este último, também já tinha prescrito a acusação contra Sócrates sobre alegados subornos que este terá recebido de Ricardo Salgado para proteger os interesses do Grupo Espírito Santo nessa transação, bem como noutros negócios envolvendo a PT. Também os empréstimos recebidos por Sócrates do amigo Carlos Santos Silva estão já prescritos. O ex-primeiro-ministro viu-se assim livre de todas as acusações de corrupção e, dos 189 crimes no processo, apenas 17 vão a julgamento, apesar do Ministério Público ter já anunciado que vai recorrer destas decisões.

Não sabemos se Sócrates é culpado de todos os 31 crimes de que estava acusado. No entanto, entre todos os pormenores sobre o caso que vieram a público desde que a investigação arrancou em 2013, existem fortes indícios de atividade criminosa, corrupção em troca de benefícios, fraude fiscal e influência indevida, entre outros, da parte do ex-governante. O próprio juiz Ivo Rosa referiu “contornos obscuros” em relação ao alegado suborno de 12 milhões que Sócrates terá recebido de Ricardo Salgado e disse que o empréstimo de Carlos Santos Silva “não pode ser considerado normal”. No entanto, se esta decisão não for revertida por um tribunal de instância superior, o ex-primeiro-ministro não irá sequer a julgamento pela maior parte dos crimes de que estava acusado. Não temos quaisquer dúvidas em classificar isto como uma paródia, uma caricatura grotesca do papel que a justiça deve realizar numa sociedade democrática.

A culpa desta decisão não pode ser atribuída exclusivamente ao juiz Ivo Rosa ou a qualquer outro interveniente individual neste processo. O problema é todo o sistema judicial enquanto braço da máquina burocrática do Estado, que existe para defender exclusivamente os interesses da classe governativa: o capital e os seus representantes políticos. As exasperantes tecnicalidades burocráticas e lacunas jurídicas que determinam a prescrição de acusações, a rejeição de provas e de procedimentos de investigação e várias outras “nulidades insanáveis” não existem por acaso. É evidente que estes formalismos poderiam ser corrigidos, uma vez que não existe qualquer razão válida para a sua existência e é perfeitamente claro que impedem a aplicação da lei em toda a sua força. Mas a lei e o código penal são cuidadosamente desenhados precisamente para permitir a existência desses subterfúgios jurídicos que asseguram uma escapatória possível aos membros de uma classe privilegiada sempre que estes se vejam a braços com a justiça. Essa classe privilegiada é constituída pela classe capitalista e pelos representantes políticos através dos quais a mesma efetivamente governa o país. E uma vez que os partidos que alternam o poder entre si, o PS, o PSD e o CDS, representam os mesmos interesses e a mesma classe, é bastante improvável que o sistema judicial sofra mudanças drásticas que eliminem estes mecanismos desonestos que conferem impunidade aos mais poderosos do país. Quezílias partidárias, enquanto consequência de rivalidades particulares entre alguns membros da burguesia mas acima de tudo como parte do teatro mediático que existe para criar a ilusão de democracia e alternância de poder, podem periodicamente levar à acusação de figuras públicas importantes, cuja reputação pessoal sai consequentemente manchada, como aconteceu com o próprio José Sócrates. Mas o campo da justiça está inclinado a favor desta elite, o que torna a sua condenação extremamente improvável.

Evidentemente, José Sócrates não é o único político corrupto. O suborno de representantes que ocupam cargos oficiais em troca de benefícios diversos, negócios vantajosos, quadros legais e/ou fiscais mais convenientes, etc. – em suma, a promiscuidade entre o poder político e o capital – não são a exceção, mas sim a regra no sistema capitalista. A existência de uma classe que, por via da posse dos meios de produção, pode subjugar sob o seu poder económico – e, consequentemente, político – a classe trabalhadora à sua vontade e aos seus caprichos é a causa primária das inúmeras contradições existentes na sociedade que se exprimem como sintomas dessa realidade, das quais esta recente ilibação de José Sócrates é apenas um dos muitos exemplos. Não existirá a devida responsabilização de representantes de cargos oficiais por crimes e outras irregularidades cometidas no contexto das suas funções enquanto não conseguirmos estender a democracia a todas as esferas da vida pública dos trabalhadores, eliminando privilégios monetários oferecidos aos representantes políticos e criando mecanismos para os remover dos respetivos cargos caso não estejam a desempenhar as suas funções de forma adequada. Mas isto apenas será possível quando a classe capitalista for expropriada, suprimindo assim o seu poder exclusivo, e os meios de produção forem apropriados pela classe trabalhadora em nome de toda a sociedade.

Luta por uma sociedade verdadeiramente justa e democrática! Luta pelo socialismo!

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