Quem tem medo do referendo popular?  

Artigo de David Lafuente

Um incrível grito popular de milhares de vozes irrompeu com força nos cinzentos corredores da Assembleia Municipal de Lisboa. No passado dia 4 de dezembro, a Assembleia Municipal aprovou a proposta de referendo local, que seguiu para o Tribunal Constitucional (TC). Superava-se assim o penúltimo requisito político para a convocatória do que seria o primeiro referendo por iniciativa popular do país. Uma ferramenta cujo objetivo seria impedir a conversão de imóveis habitacionais em apartamentos turísticos, preservando assim a sua função social, supostamente garantida na Constituição. 

A Movimento Referendo pela Habitação (MRH) apresentou no início de novembro mais de 6.550 assinaturas de residentes em Lisboa, das mais de 11.000 recolhidas no total. Essa quantidade de assinaturas obrigou à Assembleia Municipal a levar a votação a proposta de referendo local, passando previamente por uma comissão criada ad-hoc encarregue de ouvir o movimento proponente e emitir um parecer sobre a legalidade do processo. 

Durante o curto périplo nesta comissão deu para ver uma data de tentativas desesperadas de encontrar impedimentos processuais por parte dos representantes dos proprietários e do rentismo nas instituições. No próprio dia da votação (e aprovação) em plenário, com mais ou menos estridências, o PSD, CDS, IL e CH acabaram por encenar uma comédia que lhes permitiu justificar votar contra um referendo com tanto apoio popular, pois é a classe trabalhadora a que é expulsa dos bairros históricos em que sempre habitou, para que estes se transformem num Disneyland em que as casas servem só para vir passar férias. 

Surpresas que já não surpreendem 

Surpreendente foi o apoio oportunista e hipócrita do PS, responsável da implantação do atual modelo predatório de cidade, baseado no estímulo desenfreado do turismo, mediante a projeção de Lisboa em grandes eventos internacionais. É importante também salientar o apoio que o PS deu no passado a esta elite parasitária, tanto desde o governo de república como desde a câmara municipal, sob a desculpa do “pequeno-senhorio”, facilitando a conversão de habitação em alojamento turístico. 

Outra surpresa, e esta bem mais triste por profundamente imatura, foi a abstenção de um PCP desnorteado e com nula noção da realidade social, tão reivindicada por eles. Trata-se de uma atitude sectária que podia ter colocado em perigo a aprovação da proposta no plenário, e que se fundamentou em desculpas baratas que (provavelmente) nem os próprios conseguem acreditar. Quais são as verdadeiras razões detrás desta abstenção: Uma nova viragem pequeno-burguesa? O repúdio sistemático a qualquer iniciativa autónoma às diretrizes do PCP? Ou é uma, já estrutural, falta de visão estratégica para com qualquer decisão política mobilizadora de maiorias sociais? 

Convidamos o PCP a refletir profundamente sobre esse posicionamento político, contraditório com o sentir maioritário da sua base militante e totalmente contrário aos interesses da classe trabalhadora. Certamente tirar a habitação da lógica especulativa como “bem de mercado” não se resolve apenas impedindo o alojamento turístico, pois ainda no plano mais imediato é preciso regular os preços das rendas, expropriar devolutos e especuladores, deixando de financiar com dinheiro público o aumento das rendas mediante o Porta65. Mas será que o PCP está a apostar por estas medidas efetivas para além de pedir mais habitação pública, uma solução a longo prazo? 

O poder de organização popular resiste às manobras burocráticas 

Como é habitual, a Assembleia Municipal pediu, como garantia, a verificação das assinaturas ao Ministério da Administração Interna no momento de encaminhar a iniciativa ao TC. Se bem que o ministério teve as assinaturas nas suas mãos desde início de novembro, não emitiu o relatório até dia 5 de dezembro, um dia depois da aprovação do referendo em plenário. Este relatório anulou 1.700 assinaturas, fazendo com que a iniciativa ficasse 150 assinaturas por baixo das 5000 requeridas. 

No momento da verificação mais de 800 pertenciam a pessoas não residentes em Lisboa, algo representativo da magnitude da crise habitacional, pois essas pessoas no momento de assinar moravam no concelho e, entretanto, tiveram de procurar rendas mais acessíveis em outras partes da área metropolitana. Outras poucas eram de pessoas que faleceram e algumas encontravam-se duplicadas, algo habitual num processo de recolha de assinatura que durou um ano e meio. 

Finalmente, houve 570 assinaturas anuladas porque “não foi possível identificar os eleitores”, sem mais detalhe que este…Cabe aqui perguntar, qual foi o motivo de não conseguir identificar o eleitor: não perceber a escrita? Não ter o registo atualizado dos eleitores nacionais de outros estados membros da União Europeia? Alguma diretriz política do PSD para tentar ganhar burocraticamente aquilo que perderam politicamente? 

Mesmo assim, o Movimento mostrou uma grande capacidade organizativa e, 48 horas depois, conseguiu entregar mais 600 assinaturas válidas. O processo ao redor das assinaturas extras foi o reflexo da grande importância que tem o assunto para a classe trabalhadora, que percebe que o alojamento turístico é um dos maiores contribuidores ao aumento descontrolado das rendas que cada vez nos está a expulsar de mais bairros da cidade. 

A institucionalidade burguesa pode impossibilitar a participação popular? 

Depois de, com muito mérito, a proposta de referendo ter superado tantos entraves e armadilhas de uma institucionalidade burguesa que finge manter viva a ilusão da participação popular, o Tribunal Constitucional (TC) optou por matar esta fantasia. Já no último dia do prazo, dia 3 de janeiro, o TC emitiu um acórdão baseado em mesquinhices procedimentais para chumbar a proposta de referendo. Contudo, este acórdão também continha declarações jurídicas de fundo como “o poder local não tem a competência para limitar o Alojamento Local (alojamento turístico)”… Bom, então que espécie de alojamento “local” é esse que não pode ser regulado localmente? 

O TC emitiu uma mensagem política clara: o poder político está totalmente ao serviço do poder económico (os capitalistas) no qual não se toca. O resultado da mensagem é que qualquer figura de participação mediante referendo local por iniciativa popular, inscrito na Constituição, mantem-se na lei como puro elemento decorativo para adornar a aparência democrática da intitucionalidade burguesa. É a mesma função que tem o famoso prefácio socialista da Constituição. 

Os rentistas e os seus representantes, com fato ou com toga, têm feito tudo o que está nas suas mãos para travar este movimento, até ao extremo de desmascararem a verdadeira essência antidemocrática das instituições burguesas. Isto significa que tiveram algum medo. 

Acreditamos que este episódio pode ajudar a tantos companheiros a tomar consciência que não há alternativa nem social nem ambientalmente sustentável ou viável dentro do criminoso sistema capitalista. Os “valores de Abril” há muito tempo que deixaram de existir, o regime atual é o resultado da sua negação, mesmo que haja alguns que tenham vivido os últimos 50 anos nessa miragem.  

Tentou-se fazer as coisas pelos “canais próprios” e não nos deixaram. Não estranhem, pois, se a luta começar a desbordar estes canais. A luta continua, toda a força para o Movimento Referendo pela Habitação! 

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