IMG 20231008 WA0004

Após a manifestação de 30 de setembro: balanço e perspetivas

Não é preciso repetir a gravidade da crise que estamos a atravessar. A grande maioria da população sente-a todos os dias: o aumento dos juros e das rendas, a falta de habitação, a precariedade laboral, a crise do custo de vida, estão a gerar uma situação insuportável para milhões de pessoas. A isto somam-se as alterações climáticas, que deixaram de ser uma ameaça abstracta para se tornar num perigo imediato. Neste contexto, milhares de pessoas encheram as ruas do país no dia 30 de setembro para exigir casas para viver e um planeta para habitar. Após este sucesso, o movimento necessita fazer um balanço e analisar as perspectivas.

O grande potencial…

A manifestação de dia 30 foi, em grande medida, uma repetição dos protestos que aconteceram há meio ano, em abril. Os seus métodos, objetivos e reivindicações foram muito semelhantes. O vigor e a resiliência da mobilização refletem a situação social, que está a se tornar cada vez mais crítica, mas também se deve aos sucessos do movimento pela habitação, ao seu trabalho de base e a sua política unitária. Centenas de ativistas têm se envolvido nos diferentes coletivos e plataformas, fornecendo-lhes a sua energia e criatividade. As diferentes organizações foram capazes de construir uma plataforma unificada para a manifestação, apesar das suas diferenças táticas e ideológicas. A unidade contribuiu para impulsionar a mobilização e arrastar ainda mais pessoas para a luta. Significativamente, o movimento pela habitação e pelo clima uniram-se numa convocatória única.

O governo e a burguesia estão cientes da gravidade da situação. No mesmo dia da manifestação, Marcelo aprovou o pacote Mais Habitação, após o ter vetado. “Prefiro qualquer coisa, mesmo que curto, a nada”, disse. Já tinha expressado a sua preocupação de que o aumento dos juros e as rendas “favorece os populismos”. Alguns dias mais tarde, Carlos Moedas lamentou que “o divórcio entre a política e as pessoas” (refere-se à política burguesa, claro) está a criar um vazio que pode ser “capturado pelas minorias barulhentas e os ativismos radicais.” A classe dominante e os seus representantes políticos temem a radicalização na sociedade portuguesa. O seu medo está totalmente justificado, e reflete o potencial para lançarmos um movimento que varra os exploradores, os especuladores, os grandes poluidores e os seus lambe-botas na Câmara e nos ministérios.

…e os grandes riscos

Todavia, o sucesso da manifestação de dia 30 não deve toldar os riscos que ameaçam o movimento. Não se pode convocar manifestação após manifestação indefinidamente. Isso abriria a porta à rotina, ao desgaste, à desagregação do movimento, e ao regresso aos pequenos círculos de ativismo. Um movimento de massas não pode se prolongar indefinidamente. Se ele não conseguir desenvolver-se, avançar e ampliar os seus objetivos, o cansaço espalhar-se-á inevitavelmente. É preciso elevar a luta para um patamar superior, radicalizá-la, oferecendo um plano de luta ascendente e uma perspetiva clara. Só assim poderá o movimento ampliar ainda mais a sua base. 

Radicalizar a luta não quer dizer apostar em ações audaces levadas a cabo por pequenos grupos afastados das massas, que na realidade não ameaçam o Estado e que arriscam ser esmagados pela repressão e consumidos pelo próprio desgaste e isolamento que tais métodos comportam. O problema não é a acção direta, mas o risco de se afastar das massas. Também não se pode cair nas visões exclusivamente localistas, focalizadas na defesa de pequenas iniciativas – de ocupações, hortos urbanos, centros de apoio mútuo ou cooperativas – não porque estas iniciativas não sejam importantes, mas precisamente porque se ficarem isoladas e fragmentadas serão engolidas pela espiral de gentrificação e repressão. A defesa dos nossos espaços é necessária, mas é preciso ligar as lutas locais a uma visão mais abrangente.     

O PCP e o Bloco de Esquerda têm-se envolvido ativamente no movimento pela habitação e noutras lutas importantes. Se houver eleições amanhã, muitas das pessoas que saíram às ruas no dia 30 votariam neles, e nós também. O problema é que a atual legislatura acaba em 2026, e a classe trabalhadora não pode esperar até então. Ainda mais importante: por diferentes motivos, as perspectivas eleitorais da esquerda não são muito boas. O PCP e o Bloco estão a pagar a sua política oportunista durante a geringonça. Além disso, a sua atual propaganda reformista e rotineira está muito afastada do ambiente de raiva que existe na sociedade. De facto, são o Chega e a IL quem estão a explorar parcialmente o vazio que existe na política portuguesa, de forma totalmente reacionária e demagógica. Portanto, a saída à crise não pode ser exclusiva, ou principalmente, eleitoral. Encontra-se na luta de massas.

O caminho é conquistar setores mais amplos da população, envolvê-los na luta, saindo das lógicas tradicionais do ativismo. Para conseguir isto é precisa a unidade de todos movimentos à volta dum programa de transformação social e um plano de luta: a criação duma só frente que agite não apenas o direito à habitação, ao emprego digno ou ao planeta, mas que incorpore as reivindicações de todos os setores sociais em luta. 

A unidade

Os setores ainda passivos do povo podem ser ganhos ao movimento se a luta sair da rotina e oferecer perspectivas reais de vitória. As inúmeras greves, dos professores, do SNS, da administração pública, dos comboios, e as grandes mobilizações sindicais; as marchas pela vida justa; os grandes protestos pelo clima; a resistência à destruição do tecido cultural e associativo das cidades; a histórica manifestação das mulheres do dia 8 de março; e, com efeito, as lutas pela habitação, tem abalado o país nos últimos dois anos, mas o governo tem podido as contornar devido ao seu isolamento. A tarefa imediata é unificar essas lutas.

Torna-se especialmente importante a orientação à classe operária e às suas organizações sindicais. Os trabalhadores têm as alavancas da economia nas suas mãos, são eles quem tudo produzem, os que com o seu esforço geram todos os lucros dos capitalistas. Se os trabalhadores pararem, paralisa-se o país. Coloca-se como objetivo a médio prazo uma greve geral, que suporia um golpe devastador à classe dominante e colocaria o governo perante o abismo. Certamente, as burocracias sindicais querem evitar este cenário, mas o movimento pode as comprometer e empurrar através da organização desde baixo.

A melhor unidade constrói-se não nas cúpulas e nos círculos de activistas, mas democraticamente desde baixo, envolvendo e galvanizando os milhares de pessoas que estão a acordar à vida política ativa. Os diferentes movimentos precisam de se reunir em assembleias unitárias para analisar a situação e compilar um leque de reivindicações. As diferenças entre as diversas correntes políticas podem ser resolvidas através do debate democrático. O movimento pela habitação tem ganho uma grande autoridade que lhe permitiria apelar às outras lutas e impulsionar um processo de unidade deste tipo. 

Essas assembleias poderiam fornecer a base para um grande encontro nacional, que sem dúvida teria a autoridade para anunciar um plano de mobilizações e agitar o objetivo da greve geral. As lutas precisam falar com uma só voz: não apenas da habitação, do clima, dos estudantes ou dos diferentes sindicatos, mas de todo o movimento. 

Um novo abril

As diferentes lutas dos últimos anos respondem a diferentes sintomas de um mesmo problema: o afundamento do capitalismo. Este sistema está a arrastar a humanidade à barbárie. Deve ser derrubado através de uma revolução. A riqueza deve ser tirada das mãos dos exploradores e posta ao serviço das necessidades sociais e da sustentabilidade ambiental, sob o controlo dos trabalhadores. No seu afã de lucro, a burguesia está a destruir o planeta. Mas a classe trabalhadora, que tem produzido todas as riquezas da burguesia, pode reconstruir a devastação do capitalismo e criar um mundo novo. Esse tem de ser o horizonte dos nossos esforços.

A juventude está a acordar à luta, decidida não apenas a obter algumas migalhas do governo mas a transformar o mundo todo. As novas gerações só conheceram crises: a de 2008, a pandemia, a guerra, a atual crise do custo de vida e da habitação e a destruição do planeta. Cresceram num sistema capitalista que está a colapsar. A sua consciência reflete este facto: aos seus olhos, as opções reformistas cada vez têm menos credibilidade. O problema não é tal ou qual lei ou político, mas o sistema todo. Ao mesmo tempo, esta nova geração não arrasta o peso das derrotas, traições e capitulações do passado. O seu espírito revolucionário deve armar-se com uma organização e um programa.  

Há quase cinquenta anos, os nossos pais e avós fizeram uma grande revolução que derrubou o fascismo. A derrota da revolução após o 25 de novembro, porém, supôs que as bases econômicas do velho regime se mantiveram intactas: a riqueza se manteve nas mãos dum punhado de parasitas, enquanto o Estado, agora com métodos mais “humanos”, sem a PIDE e o Tarrafal, continua a defender os privilégios da mesma pequena minoria. A revolução ficou incumprida. Cabe-lhe às novas gerações derrubar o capitalismo para cumprir abril.

Spread the love

About Arturo Rodriguez (Colectivo marxista)

Check Also

IMG 20240114 183145 1

Defendamos a Sirigaita, defendamos o direito à militância e à cultura!

Arturo Rodríguez A Sirigaita é uma associação situada no Intendente, no centro de Lisboa, gerida …

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Social media & sharing icons powered by UltimatelySocial