Mário Cruz/Lusa
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Escravatura Moderna em Portugal: Quando o Capitalismo se Torna Barbarismo

O recente surto de COVID-19 no concelho de Odemira, que levou à cerca sanitária de duas freguesias do concelho, expôs uma terrível gangrena no tecido social de Portugal. Uma realidade de autêntica escravatura moderna, com tráfico humano e exploração laboral de trabalhadores migrantes que vivem em condições muito precárias, passou para debaixo dos holofotes num momento em que as explorações agrícolas intensivas no Alentejo passaram a ser objeto de maior escrutínio, também por causa do seu impacto ambiental. O caso pôs a nu a completa indiferença do sistema capitalista em relação à dignidade humana e a hipocrisia do governo e das autoridades locais, que, conhecendo o problema há vários anos, o ignoraram até ao mesmo ter atingido impacto mediático.

Surto em Odemira

No final do mês passado, o governo decretou uma cerca sanitária nas freguesias de São Teotónio e Longueira/Almograve, em Odemira, visto que o aumento do número de casos de COVID-19 no concelho tinha como foco estas duas freguesias. Este surto estava associado à população migrante que trabalha nas explorações agrícolas deste concelho e o governo anunciou a intenção de requisitar instalações para o realojamento temporário de pessoas que, por terem testado positivo ou por terem tido contacto com infetados, precisavam de cumprir isolamento profilático. Esta decisão foi justificada com o facto de muitos destes migrantes viverem em condições de insalubridade e de sobrelotação.

Imediatamente se tornou claro que estas condições muito precárias, longe de serem a exceção, são a regra entre a população migrante que chega a Portugal para realizar trabalhos sazonais nas explorações agrícolas do Alentejo. Embora as autoridades já tivessem conhecimento do que ali se passava há vários anos, estes casos permaneceram largamente ignorados até terem atraído atenção mediática nas últimas semanas. Por trás deles, milhares de trabalhadores imigrantes sofriam em silêncio.

Escravatura Moderna

Lenin escreveu que “capitalismo é horror sem fim”. Nenhuma outra frase nos ocorre perante as informações, agora largamente difundidas, acerca das condições de vida destes trabalhadores migrantes. Foi revelado que o SEF tem 32 inquéritos a decorrer visando crimes de tráfico humano e que desde 2018 sinalizou 134 vítimas, tendo sido detidos 11 suspeitos e constituídos arguidos 37 pessoas e 14 empresas. Estes casos são conhecidos pelas autoridades precisamente pelo menos desde 2018 e a maior parte diz respeito ao setor agrícola, no qual chegam para trabalhar imigrantes oriundos principalmente da Índia, Paquistão, Nepal, Roménia e Moldávia. O número real de casos de tráfico humano é seguramente muito maior do que o divulgado pelo SEF, já que apenas em 2020 foram sinalizados 155 casos suspeitos, segundo o último relatório anual de segurança interna.

Em 2018, o SEF identificou 255 migrantes em situação de exploração laboral. São condições de muita precariedade aquelas que têm vindo a ser denunciadas nas últimas semanas e que a PJ está já a investigar. Apenas em Odemira vivem mais de 9600 imigrantes em situação legal. Um estudo concluiu que estes migrantes pagam cerca de 10 mil euros a redes nos seus países de origem para regularizarem a sua situação. Este crescimento do fluxo de imigrantes deve-se a um maior número de explorações agrícolas, sobretudo estufas, que requerem mão de obra sazonal.

Não se pode dizer que as autoridades tenham sido apanhadas de surpresa. O relatório anual de segurança interna de 2018 já alertava para o tráfico de pessoas para efeitos de exploração laboral. Segundo a CGTP, apesar da lei de combate ao trabalho forçado e outras formas de exploração ter sido aprovada há quase cinco anos, a sua fiscalização tem sido muito insuficiente e nenhuma sanção foi até agora aplicada aos prevaricadores. A organização sindical denuncia a inação das autoridades competentes, alertando que a Autoridade para as Condições no Trabalho (ACT) não tem sido dotada dos meios humanos e técnicos necessários.

O cenário denunciado pela CGTP e pela comunicação social é um de autêntica escravatura moderna. Estes migrantes são atraídos para Portugal por promessas de uma vida melhor. Redes de tráfico humano atuam sob o disfarce de agências de trabalho temporário. Uma vez chegados ao nosso país, estes trabalhadores têm poucos ou nenhuns direitos laborais e sociais e são obrigados a viver e a trabalhar em condições sub-humanas, recebendo salários muito abaixo do que é determinado pela lei. Evidentemente, estes factos constituem uma violação muito grave dos direitos humanos destas pessoas, tudo em nome dos lucros das grandes empresas detentoras das explorações de agricultura intensiva no Alentejo.

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Os trabalhadores migrantes das explorações agrícolas do Alentejo enfrentam condições de escravatura moderna (Foto: Nuno Veiga/Lusa)

Não só as condições de trabalho destes migrantes, mas também as suas condições de habitabilidade têm estado no centro da atenção mediática. Inúmeras situações de pessoas a viver em casas sobrelotadas, sem privacidade ou quaisquer condições de higiene, foram denunciadas nas últimas semanas. No Alentejo há migrantes que pagam 100 euros por mês por uma cama num quarto com 20 pessoas. A câmara municipal de Odemira estima que no mínimo 6 mil dos 13 mil migrantes no concelho não tenham condições de habitabilidade.

As chocantes condições em que estes trabalhadores, que contribuem de maneira significativa para a economia portuguesa, são forçados a sobreviver é outra expressão da desumanização de que são vítimas e um motivo de vergonha para Portugal. A sobrelotação e a falta de salubridade constituem não só um atentado à dignidade destes migrantes, mas também à sua saúde durante uma pandemia que torna necessário o distanciamento físico e a regular higienização de superfícies partilhadas. Não é portanto de admirar que esta bomba-relógio tenha estado na origem do surto de COVID-19 em Odemira.

Para fazer face a este surto, o governo decidiu requisitar o complexo turístico de campismo de luxo Zmar, que está em processo de insolvência, para realojar algumas dezenas de pessoas em isolamento profilático, que não tinham condições para o cumprir na sua residência habitual. A requisição esteve envolta em polémica desde o início devido ao forte aparato policial que acompanhou os migrantes, que foram levados para o recinto durante a madrugada.

Alguns donos de propriedades privadas dentro do espaço do Zmar, cujas residências não foram requisitadas, apresentaram ainda assim uma providência cautelar com vista à anulação da requisição do Zmar. Uma vez que os trabalhadores nem sequer estão alojados na mesma zona que estes proprietários, esta ação judicial apenas se explica com o preconceito xenófobo que estes pequenos burgueses têm contra os imigrantes realojados no Zmar. A aceitação da providência cautelar pelo Supremo Tribunal levou à retirada de alguns migrantes do recinto. O governo entretanto já reagiu a esta providência cautelar e a batalha judicial promete continuar. Estes trabalhadores migrantes estão a ser tratados como meros peões no meio desta disputa.

Esta polémica em torno da requisição do Zmar ilustra bem o entrave que o conceito de propriedade privada coloca à utilização racional de recursos. A requisição de hotéis e outros empreendimentos turísticos atualmente vazios para o alojamento temporário de pessoas infetadas com a COVID-19 é senso comum e algo que devia ter feito parte da estratégia do governo desde o início da pandemia, mas a legalidade de ações desse tipo é colocada em causa pelo sistema obsoleto no qual vivemos. Este sistema coloca o direito à propriedade privada acima do direito à saúde, à dignidade e até à própria vida.

Um Sistema Podre

Todo este escândalo em torno dos migrantes que trabalham nas explorações agrícolas do Alentejo chocou o país e tem levado muitos a procurar respostas. As degradantes condições sob as quais estas pessoas são obrigadas a viver e a trabalhar não são resultado de uma particular imoralidade dos seus empregadores e senhorios. As empresas que forçam estes migrantes a trabalhar em condições de escravatura moderna não o fazem por serem corporações malvadas, mas sim porque se veem impelidas a fazê-lo para sobreviverem no mercado de competição global e/ou para obterem uma vantagem sobre os seus concorrentes. A inação das autoridades competentes deve-se ao facto destas servirem os interesses destes empregadores. O incentivo ao lucro, aspeto central de uma economia capitalista, é a causa primária de exploração laboral. Levado à sua conclusão lógica, este incentivo implica esticar ao máximo os horários de trabalho e pagar o mínimo estritamente necessário em salários, mesmo que à margem da lei.

Da mesma forma, o incentivo ao lucro aplicado ao arrendamento privado implica a cobrança de rendas abusivas com o mínimo possível de condições de habitabilidade, mesmo quando isso implica a violação dos direitos dos inquilinos. Alguns dos senhorios destes migrantes até podem não ser pessoas abastadas de classe média-alta e gananciosas, mas possivelmente pessoas que estão elas próprias a passar por dificuldades financeiras e que encontraram na exploração de outros trabalhadores uma maneira de sobreviver. A malícia de empregadores e senhorios, quando existe, desempenha apenas um papel secundário. Este não é um problema moral, mas antes um problema sistémico.

O problema é o sistema capitalista. O simples facto de serem necessárias leis, assim como a sua fiscalização contínua, para impedir o tráfico humano, abusos por parte dos senhorios e a exploração laboral, em condições de escravatura moderna, dos  membros mais vulneráveis da nossa sociedade devia fazer qualquer trabalhador com consciência de classe parar para refletir acerca da verdadeira natureza do sistema económico sob o qual vivemos. O capitalismo é um sistema aberrante, que distorce as nossas relações humanas e as reduz ao seu carácter mais primitivo, mais animalesco. É uma doença cujos sintomas, na melhor das hipóteses e através da luta de classes, podemos apenas tentar aliviar enquanto a sua cura for adiada. O capitalismo transforma-se demasiadas vezes em nada mais do que barbarismo.

Solidariedade Entre Todos os Trabalhadores

Como em todos os casos que envolvem uma discussão sobre imigração, este pode tornar-se uma arma nas mãos dos oportunistas de extrema-direita. Embora o tráfico de seres humanos seja um crime hediondo que condenamos sem hesitação, não alimentamos a ideia de que algumas pessoas são ‘ilegais’ por causa da forma como chegaram ao nosso país. Os trabalhadores migrantes, que contribuem para a nossa economia, devem ter os mesmos direitos que todos os outros trabalhadores. Rejeitamos qualquer tentativa de semear divisões com base na xenofobia e apelamos à solidariedade entre todos os trabalhadores.

Estes migrantes chegam ao nosso país porque as empresas que detêm as explorações agrícolas do Alentejo usam e abusam da sua mão de obra. Em última análise, apenas uma revolução socialista mundial poderá pôr fim às grandes disparidades económicas entre países que levam a que trabalhadores de países mais pobres emigrem para o mundo imperialista em busca de melhores condições de vida, acabando frequentemente por ser vítimas de exploração laboral e a viver como cidadãos de segunda, com poucos ou nenhuns direitos. No entanto, devemos lutar pelas seguintes exigências imediatas:

  • A atribuição de todos os direitos de cidadania aos trabalhadores migrantes, que produzem valor para a nossa economia, regularizando a sua situação para que possam ter uma vida digna, acedendo a serviços públicos e a proteções sociais!
  • A expropriação de todas as explorações agrícolas detidas por grandes empresas, nacionalizando-as sob o controlo dos trabalhadores e das comunidades locais para que a produção seja planeada democraticamente para a satisfação das necessidades da sociedade de forma sustentável, e não para os lucros destas multinacionais!
  • A expropriação dos bens dos grandes senhorios e das grandes empresas de construção civil para que a habitação seja gerida de forma democrática, como o bem público essencial que é, de modo a satisfazer as necessidades de todos os trabalhadores; a requisição de alojamentos privados temporários para os trabalhadores migrantes, sempre que necessário!

Exigimos ainda às organizações sindicais que disponibilizem todo o apoio possível aos migrantes e a todos os trabalhadores particularmente vulneráveis para que situações como as que foram denunciadas no Alentejo não se repitam.

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