O chumbo do orçamento de Estado indica uma mudança qualitativa na situação política de Portugal. As eleições antecipadas do próximo ano decorrerão num contexto político muito diferente do anterior. Após seis anos de colaboração do PCP e do BE com o governo do PS, a geringonça morreu. Neste momento os comunistas e bloquistas, culpados pela queda do governo, ficam numa situação complicada. Apoiamos a decisão corajosa do PCP e do BE de rejeitar o orçamento frugal e reacionário do PS, que procurava mesmo gerar uma crise governamental, mas é preciso também fazer uma autocrítica acerca dos erros cometidos pela esquerda durante a geringonça. Os militantes e ativistas da esquerda e do movimento operário têm de tirar as conclusões necessárias desta experiência para que possam sair fortalecidos desta crise. É importante que nos preparemos politicamente para as grandes lutas com que nos vamos deparar no futuro.
O orçamento
As reivindicações do PCP e do BE para o orçamento representam medidas progressistas básicas para a classe trabalhadora e para os setores empobrecidos do país: o aumento do salário mínimo até 805€ (ainda bastante inferior ao dos países vizinhos, incluindo Espanha) e das indemnizações por despedimento coletivo, bem como o fortalecimento da negociação coletiva; a revogação dos ataques às pensões e o seu aumento generalizado; e o fortalecimento do SNS e do seu caráter público. Apesar da proposta do PS conter alguns pontos positivos, fica muito longe do que seria necessário para “destroikar” o país e aliviar o duro impacto social e económico da pandemia. O PCP e o BE tomaram uma posição correta ao rejeitar o orçamento de António Costa, mantendo-se firmes nas suas reivindicações
A inflexibilidade do PS e os seus apelos à “responsabilidade”, à “sustentabilidade” e a não “pôr em causa a recuperação” refletem a verdadeira motivação do governo: agradar aos patrões e colocar todo o peso da crise nas costas da classe trabalhadora. A recuperação capitalista promovida pelo PS baseia-se na exploração dos trabalhadores. De facto, houve várias intromissões dos patrões nas negociações do orçamento e a seguir ao chumbo. Os seus representantes não só abandonaram a comissão de concertação social, como têm mantido reuniões com Marcelo Rebelo de Sousa à revelia do governo. António Costa a desculpar-se por ter antagonizado os patrões com propostas tímidas de reforma laboral foi a cereja no topo do bolo. Assim é a democracia burguesa: os representantes eleitos do povo ajoelham-se e modificam programas políticos perante as pressões dos ricos e do grande capital! Marcelo tem também demonstrado o carácter antidemocrático da presidência ao sair em defesa da “estabilidade” capitalista em tempos de crise. A pressão da União Europeia para “moderar” o conteúdo do orçamento tem-se sentido também nos seus diferentes comunicados e na entrevista de Christine Lagarde com o presidente.
Durante a pandemia, os governos gastaram milhares de milhões de euros para salvar o capitalismo. Os bancos centrais adotaram uma política expansiva sem precedentes (de impressão de dinheiro). Alguns analistas da esquerda reformista confundiram estas medidas desesperadas e temporárias com um abandono da austeridade e um regresso do Keynesianismo. As ferramentas utilizadas para evitar o colapso total têm-se convertido agora no seu contrário: em montanhas de dívidas e em inflação descontrolada (agravada por estrangulamentos nas cadeias de distribuição), que se tornam num fardo pesado para a economia. Segundo os últimos dados, do final de 2020, a dívida pública portuguesa atingiu o valor astronómico de 133% do PIB. Para reverter isto, os governos capitalistas têm de voltar aos cortes. Esta austeridade não será uma simples repetição daquela que vimos no pós-2008. A União Europeia está a promover despesa pública de acordo com os seus planos de recuperação, que visam fortalecer as grandes empresas europeias e torná-las mais competitivas perante guerras comerciais e tensões com a China, a Rússia e os EUA. Porém, paralelamente a estes grandes investimentos, os governos, sobretudo nos países da periferia europeia, estão sob pressão para controlar as suas dívidas e implementar “reformas estruturais”.
As contas de Costa
A intransigência do PS contra a esquerda corresponde, em primeiro lugar, ao seu desejo de agradar aos capitalistas (em Portugal e na Europa) e, em segundo, às pressões provocadas pela crise do sistema. Porém, também resulta do calculismo político do próprio António Costa, que procurava um pretexto para um confronto com o PCP e o BE. Esta concordância entre as ambições de Costa e as exigências dos capitalistas não é casual. Apesar da sua retórica de esquerda, o PS é um partido muito sensível às pressões da burguesia. Efetivamente, a função da social-democracia é enganar os trabalhadores, protegendo a burguesia e camuflando o seu verdadeiro programa com um discurso progressista apenas na estética. Costa quer livrar-se do PCP e do BE para realizar esta tarefa sem entraves e sem prestar contas a ninguém. Apesar da sua retórica em 2015, Costa nunca esteve à vontade com a geringonça, vista como uma solução temporária. Acabou por se afastar decididamente dos seus “parceiros” após 2019, seguindo-se a colaboração com a direita para aprovar a nova lei laboral.
Os maus resultados do PCP e do BE nas autárquicas de setembro convenceram Costa da possibilidade de cortar relações com estes partidos e obter uma maioria numa hipotética eleição antecipada. Apesar do PS ter sofrido derrotas em municípios importantes, como Lisboa, Coimbra e Funchal, conseguiu manter a sua vantagem geral. Nestas contas de Costa entraram também os sérios problemas da direita, com os dois partidos tradicionais, o PSD e o CDS, paralisados por guerras internas. Um eventual crescimento do Chega e da Iniciativa Liberal contribuirá para uma maior fragmentação da direita. Por outro lado, esta postura mais combativa do PCP e do BE nas últimas semanas é em grande medida uma consequência das autárquicas, que finalmente tornaram claro para ambos os partidos que uma ligação próxima ao PS tinha desgastado a sua imagem.
PCP e BE: uma decisão sem preparação
Apoiamos a decisão do PCP e do BE de votar contra o orçamento e rejeitamos a demagogia hipócrita do PS, que tenta culpar estes partidos pela queda do governo. Em 2015, foi correto facilitar a formação do governo de Costa para expulsar a direita do poder e para mostrar às massas que o PS não seria capaz de responder às esperanças dos trabalhadores. Porém, o mais correto teria sido o PCP e o BE passarem imediatamente à oposição após a tomada de posse de António Costa, em vez de celebrarem um acordo de estabilidade política a longo prazo, a chamada geringonça. Esta aliança permitiu que o PS assumisse uma estética de esquerda e que Costa tirasse vantagem das concessões oferecidas pelo governo (obtidas sempre graças à pressão do PCP e do BE), enquanto a responsabilização pelas numerosas capitulações era partilhada entre os parceiros da geringonça. Para além disso, a geringonça ajudou a esbater as diferenças políticas entre o PS, o PCP e o BE aos olhos das massas, que, observando a aparente sintonia entre estes partidos, tenderam a inclinar-se para o lado do parceiro mais forte, o PS.
O PCP e, sobretudo, o BE criaram ilusões sobre o novo governo. O BE chegou ao ponto de disponibilizar-se para ser uma força de governo. Não houve ameaças sérias por parte do PCP e do BE de romper a geringonça. Pelo contrário, em determinados momentos foi o PS que usou esta ameaça para proteger as suas políticas pró-capitalistas, como durante a luta dos professores em 2019. Em suma, devido à atitude reconciliadora da esquerda, a geringonça não ajudou a comprometer o PS. Pelo contrário, acabou por fortalecê-lo. Ironicamente, o fim do acordo governativo (um prelúdio da atual crise) foi levado a cabo pelo próprio PS após as eleições de 2019. Infelizmente, temos de concluir que a razão fundamental da difícil situação na qual se encontram atualmente o PCP e o BE é consequência da sua atitude fraca e inconsistente perante Costa.
O chumbo do orçamento é uma consequência inevitável das contradições de classe entre os partidos da geringonça. Contudo, a nosso ver, a rotura da geringonça não foi preparada adequadamente pelo PCP e BE. Uma mudança desta magnitude necessitava de uma preparação política prévia, que tivesse alertado os trabalhadores para a crise económica que aí vem e, sobretudo, tivesse fornecido uma explicação política coerente sobre a natureza da rotura. Nos últimos meses, o PCP e o BE endureceram as suas críticas (o BE até votou contra o orçamento de 2020), mas estas simples manobras parlamentares não foram suficientes. Em particular, as propostas do PCP e do BE para o orçamento que desencadearam a rotura tinham de ter sido complementadas por uma mobilização nas ruas prolongada e enérgica, que fizesse destas reivindicações questões centrais na vida política do país, assumidas ativamente pelas massas. Não bastavam discursos parlamentares e alguns cartazes nas ruas: era preciso ter mobilizado os militantes e simpatizantes e aproveitado a ligação forte do PCP com os sindicatos, envolvendo os grupos mais atingidos pelas medidas no orçamento do governo (pensionistas, profissionais da saúde, trabalhadores precários, etc.). A fraca mobilização em torno destas questões facilitou a demagogia do PS, que apresentou a disputa sobre o orçamento como se se tratasse de meros pormenores que apenas escondiam uma manobra cínica por parte do PCP e do BE para derrubar o governo.
Por causa da falta de preparação para esta rotura da geringonça, o PCP e o BE ficam agora numa situação difícil. As massas têm recebido a queda do governo com estupefação e incompreensão. Como era previsível, amplos setores sociais acreditaram na demagogia do PS, que culpou a esquerda pela rotura. António Costa espera sair reforçado das próximas eleições, aproveitando as dificuldades que PCP e BE atravessam e as divisões da direita. Porém, esta é uma decisão arriscada que abre a porta a um possível regresso da direita, mesmo que fragmentada, e até à participação do Chega no governo. Os militantes e simpatizantes do PCP e do BE não podem ficar desmoralizados por estas dificuldades conjunturais. O dever da classe trabalhadora e dos jovens é organizar a sua luta em torno de uma campanha eleitoral que tire todas as conclusões necessárias dos acontecimentos recentes. Temos de começar por exigir ao PS que não espere pelas eleições para aumentar o salário mínimo, as pensões e o investimento no SNS.
Um programa revolucionário
Além das considerações conjunturais, é importante para os ativistas e militantes perceber os processos e tendências gerais que sustentam estes acontecimentos. A crise do capitalismo é também a crise do reformismo e a queda do governo reflete este facto, embora de forma distorcida.
O desenvolvimento sem precedentes das forças produtivas nas últimas décadas entrou em fortes contradições com a propriedade privada, a anarquia do mercado e o incentivo ao lucro – ou seja, contra as próprias relações do modo de produção capitalista. O mercado mundial, caracterizado pela exploração a que é submetida a classe trabalhadora e pela concorrência entre as diferentes potências, tornou-se demasiado pequeno para a capacidade produtiva existente. As ferramentas tradicionais da burguesia para ampliar artificialmente o mercado, a dívida e a expansão monetária são facas de dois gumes que a médio prazo apenas agravam as recessões. As crises de excesso de produção tornam-se cada vez mais frequentes e profundas, enquanto as fases de crescimento se tornam mais curtas, fracas e instáveis. Ao mesmo tempo, radicaliza-se a luta entre as grandes potências, nomeadamente os EUA e a China, pelo domínio do mercado mundial.
Neste contexto, há uma menor margem de manobra para as políticas reformistas, uma vez que é mais difícil obter concessões. Isto não quer dizer que seja impossível que os trabalhadores conquistem novos direitos e melhores condições de vida, mas certamente que qualquer avanço exigirá uma luta mais intensa e enfrentará uma maior resistência da burguesia, que tentará sabotar e posteriormente reverter qualquer concessão que seja obrigada a fazer.
Além das ambições políticas dos diferentes partidos, as crescentes tensões entre a esquerda e o PS e o colapso da geringonça demonstram a incapacidade dos governos reformistas como o de António Costa para satisfazer reivindicações básicas da classe trabalhadora. A lição que têm de tirar os militantes do PCP e do BE, e todos os trabalhadores conscientes e politicamente ativos, é que sob o capitalismo os problemas fundamentais das massas não podem ser resolvidos. Há recursos suficientes para garantir habitação de qualidade, saúde, educação, serviços e condições de vida dignas para toda a população. O problema é que esses recursos estão nas mãos de uma elite minoritária e estão submetidos aos critérios anárquicos e ineficientes do mercado. É preciso dotar a esquerda de um programa socialista que ofereça uma saída revolucionária desta crise do capitalismo português e mundial. Uma mobilização incessante em torno deste programa por parte do PCP e do BE, juntamente com a experiência de viver sob governos da direita e do PS, pode certamente acelerar a descoberta de conclusões revolucionárias por parte das massas.
Nestas eleições antecipadas, é previsível um fortalecimento temporário das tendências moderadas e conservadoras. Todavia, esse possível contratempo momentâneo não pode desmoralizar os trabalhadores em luta perante o processo geral que se está a desenvolver. Independentemente do resultado das eleições, o governo que vai resultar deste processo, seja do PS ou da direita, não gozará de estabilidade económica ou social. A geringonça, que coincidiu com uma etapa de recuperação económica em 2015-19 e com a crise desencadeada pela pandemia, conduziu a uma pausa no processo de radicalização e de luta que começou em 2011. Protegido pela esquerda, gerou-se a impressão de que o governo do PS tinha conquistado uma verdadeira paz social. A sua queda mostra que isso era uma ilusão. O fim da geringonça pede uma necessária clarificação política sobre a natureza do reformismo, que o PCP e o BE podem aproveitar se adotarem uma linha correta. Dialeticamente, a luta de classes vai desenvolver-se e evoluir para um nível superior. A época da estabilidade em Portugal acabou.
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