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As acampadas pela Palestina em Portugal: balanço e perspetivas 

Inspirados pelas ocupações das universidades dos EUA, o movimento estudantil pela Palestina cruzou o Atlântico durante a primavera. Nós no Ocidente temos uma grande responsabilidade para travar o genocídio porque sem o apoio do imperialismo europeu e norte-americano a maquinaria de guerra israelita ruiria imediatamente. Em Portugal o movimento espalhou-se no início de maio para várias faculdades em Lisboa, Coimbra e no Porto. Algumas das acampadas, como na FBAL, foram desmontadas depois de terem chegado a acordos mínimos com as direções universitárias, enquanto outras foram desconvocadas pelas pressões da administração e da polícia, como no Porto, ou pela repressão aberta, como na FPUL e na faculdade de medicina da NOVA. Várias semanas após o início do movimento, podemos e devemos fazer um balanço crítico e tirar as lições desta luta. 

Antes de entrar na nossa análise, porém, é preciso louvar a dedicação e coragem dos camaradas que dirigiram as acampadas, e que fizeram face a inúmeras pressões e a uma repressão brutal, que culminou no dia 27 de maio com o despejo da faculdade de medicina da NOVA. O objetivo destas observações críticas não é menosprezar o esforço feito, mas identificar as fraquezas que tiveram as acampadas para fortalecer o movimento no futuro.

Luta de massas

Só a força de milhares de jovens e trabalhadores mobilizados pode abalar o governo. Infelizmente, porém, a maioria das acampadas tiveram uma reduzida base de apoio ativo. Uma luta que não consiga ir além dos círculos ativistas tornar-se-á vulnerável à repressão do Estado e das reitorias, que, como aconteceu na FPUL, explorarão o isolamento das ocupações para as atacar; o movimento sofrerá um desgaste inevitável, já que um grupo reduzido de estudantes deverá arcar com inúmeras responsabilidades; e, o mais importante, a luta não conseguirá desafiar o governo nem a administração universitária, que só farão concessões reiais sob a pressão dum grande movimento de massas. Podemos dizer que as dificuldades que tiveram as acampadas para descolar em Portugal, ao contrário do que tem acontecido noutros países, devia-se principalmente ao facto serem protagonizadas por grupos bastante pequenos de ativistas, muito corajosos e comprometidos, mas que foram incapazes de envolver a maioria dos estudantes. De facto, as ocupações “caíram” nas universidades quase com paraquedas, da noite para o dia, sem o necessário trabalho prévio de explicação, organização e propaganda.

Contudo, é injusto atribuir as limitações das acampadas aos camaradas que as iniciaram. As grandes organizações de esquerda e sindicais (PCP, BE, CGTP) viraram as costas ao movimento, excetuando algumas declarações platónicas contra a repressão. O papel da Juventude Comunista Portuguesa, que controla muitas associações de estudantes, foi especialmente sectário e prejudicial. 

Impunha-se uma agitação sistemática entre os estudantes. As panfletagens, os discursos nas aulas e nas cantinas, uma explicação paciente dos objetivos das acampadas, e propostas de ação concretas poderiam ter despertado os setores que permaneceram inativos. A tarefa mais importante era política: explicar a cumplicidade dos nossos governos e a responsabilidade da juventude na Europa para travar o genocídio. Apesar dos múltiplos entraves burocráticos das universidades, deviam sempre explorar-se todas as plataformas para a agitação, nomeadamente a possibilidade de convocar assembleias gerais de estudantes, desafiando e pressionando publicamente as associações estuandis e as suas estruturas para as convocarem, incluindo a JCP. Mas as associações viraram as costas ao movimento e não foram desafiadas abertamente por ele. Da mesma maneira, as escolas secundárias e as suas organizações permaneceram geralmente à margem da luta, ao contrário do que aconteceu noutros países. 

Até em países sem grande tradição revolucionária, como a Suíça ou Canadá, as ocupações assumiram um caráter massivo. É falso que a maioria de estudantes em Portugal esteja “alienada” ou seja “indiferente” ao genocídio: se eles não têm tomado partido é em grande medida devido ao perfil relativamente fechado que tiveram a maioria de acampadas. O potencial para um grande movimento também existia em Portugal, mas só podia ser aproveitado rompendo como as rotinas do ativismo tradicional. Há uma profunda solidariedade com a Palestina entre os estudantes, como indicam, por exemplo, as grandes manifestações dos últimos meses e, mais recentemente, a grande adesão à carta aberta à FCSH, mas esta simpatia até agora teve um caráter bastante passivo. Embora os episódios repressivos gerassem ondas de simpatia, o repúdio episódico à violência policial não pode substituir o envolvimento consciente da grande massa de estudantes. 

Porém, não chega com envolver os estudantes. O princípio do “protagonismo estudantil” das ocupações em Portugal, que até negou a palavra aos não estudantes nas assembleias, foi contraproducente. A solidariedade com a Palestina interessa a toda a classe trabalhadora e à juventude, e não só aos alunos universitários. O movimento estudantil tem jogado um papel revolucionário na história, mas sempre como precursor e estímulo para lutas de massas mais abrangentes: assim ocorreu, por exemplo, em maio de 68 em França, onde os protestos estudantis desencadearam uma vaga sem precedentes de greves e ocupações de fábrica. Era, e ainda é, preciso implicar a classe trabalhadora na luta. Esta é a única força social que, devido ao seu peso numérico, à sua coesão e à sua centralidade na economia capitalista pode deter a cumplicidade criminosa dos nossos governos com o genocídio. Em diferentes países, por exemplo, os estivadores têm boicotado o carregamento de barcos com armas para Israel, mostrando concretamente o poder da classe trabalhadora. Nenhuma roda gira, nenhum telefone toca, nenhuma luz acende sem a permissão da classe trabalhadora! 

O primeiro passo deveria ter sido o envolvimento dos trabalhadores universitários, entre os quais existe uma profunda simpatia com a Palestina. Diferentes núcleos de investigação e associações de docentes têm-se pronunciando publicamente contra o genocídio. A agitação devia interpelar os trabalhadores e dar-lhes a forma de se envolverem concretamente, por exemplo, fazendo aulas nas ocupações, organizando piquetes e pressionando os seus sindicatos para tomarem partido pela Palestina. Isto só se materializou nos últimos dias da acampada da FCSH, e foi uma iniciativa dos próprios professores. A partir dos trabalhadores universitários e os seus sindicatos e associações teria sido mais fácil alargar a luta para outros setores da classe operária. 

No início de qualquer luta, é importante pensar nos passos sucessivos, num plano de ações ascendente. As ocupações, até se forem massivas, não podem existir indefinidamente, como se tem verificado em todos os países. Implicam um forte desgaste e tendem a perder força ao longo dos dias. Falou-se muito na “escalada” do movimento, mas geralmente isso tem vindo a significar as ações impactantes de pequenos grupos de ativistas. Mas a melhor forma de “escalar” a luta é a ação de massas, colocando o horizonte duma greve universitária, envolvendo estudantes e trabalhadores, com a perspetiva de alastrar para outros setores. 

Contudo, alargar o movimento não é só um trabalho de agitação e propaganda entre os estudantes e trabalhadores, mas também exige modificações internas no funcionamento das ocupações. Embora formalmente democráticas, muitas das assembleias nas acampadas caraterizaram-se pela falta de transparência, por uma linguagem pouco clara, e pela tomada atropelada de decisões às vezes incompreensíveis para as pessoas externas aos círculos dirigentes. Embora esta opacidade possa justificar-se parcialmente pela ameaça da repressão, é perfeitamente possível debater abertamente nas assembleias as questões políticas e estratégicas principais sem revelar informações sensíveis.  Só métodos verdadeiramente democráticos podem sustentar uma luta de massas: assembleias com ordens de trabalho claras e com verdadeiro poder decisório, onde, se o consenso for impossível, os acordos sejam votados. 

Que reivindicações? 

Em Portugal, as ocupações foram dirigidas principalmente pelo ativismo climático ligado a organizações como Climáximo ou a Greve Climática Estudantil. Sem eles, as acampadas seguramente não teriam acontecido. No passado, estes camaradas jogaram um papel heroico, desmascarando a hipocrisia do governo e das empresas e a sua cumplicidade com a catástrofe climática e tornando-se por este motivo em alvos da repressão do Estado. Porém, os métodos de pequeno círculo que têm caraterizado as lutas pelo clima tornaram-se depois num entrave para o desenvolvimento das ocupações, não só pela reticencia de fazer um trabalho de massas e o caráter opaco e segredeiro da organização, mas também pela natureza das reivindicações que foram colocadas. A mistura mecânica do “fim ao fóssil” com a solidariedade com a Palestina parece estranha e artificiosa. Os argumentos enredados que tentaram ligar o genocídio da Palestina com a exploração de gás no Mediterrâneo oriental ou com a exploração do carvão por parte do império britânico eram bastante intricados. 

Compreendemos que o ativismo climático já tinha organizado uma vaga de protestos exigindo o fim ao fóssil para a primavera, mas os grandes acontecimentos no Médio Oriente que estão a abalar a América do Norte e a Europa têm mudado completamente a situação. O foco dos protestos devia ser a Palestina e o genocídio em curso em Gaza. Esta é a questão crucial do momento, que está a mobilizar milhões de pessoas no mundo todo. Nós concordamos com os camaradas do movimento ambientalista que o genocídio na Palestina levanta questões mais amplas sobre o capitalismo e o imperialismo, incluindo a catástrofe climática. Mas levanta-as de forma indireta. Portanto, não podemos justapor mecanicamente os slogans contra o genocídio com o “fim ao fóssil”.  

É preciso explicar as coisas pacientemente, partindo da Palestina: o apoio dos nossos governos ao regime genocida israelita não é nenhum acaso. A política externa é só uma prolongação da política interna. Os governos que enviam armas a Israel são os mesmos que reprimem os estudantes, que destroem o planeta, que afogam os migrantes no Mediterrâneo, que cortam em saúde e educação para financiarem o militarismo. E isso é devido ao caráter capitalista destes governos, cuja função é assegurar os lucros e privilégios duma pequena minoria de parasitas, tanto dentro das fronteiras nacionais como no estrangeiro, assegurando as suas “áreas de influência”, às vezes através das guerras, as ocupações e a limpeza étnica. Israel é o aliado mais fiel e estável do bloco imperialista ocidental no Médio Oriente, que de facto atua como o seu “polícia” na região. Portanto os políticos burgueses em Bruxelas e Washington não duvidarão em apoiar os seus piores crimes, sobretudo numa altura em que a sua influência mundial está a ser posta em causa pelo ascenso do imperialismo chinês e russo. Da mesma maneira, os capitalistas não duvidarão em destruir o ambiente nas suas ânsias de lucros, porque são só os lucros, e não os direitos humanos, a paz ou o futuro do planeta, a determinarem as suas políticas. A luta para travar o genocídio em curso, portanto, é no fundo uma luta contra o capitalismo e o imperialismo que gera estes horrores. Mas esta grande verdade requer uma certa explicação, e é preciso adaptar consequentemente os nossos slogans e reivindicações sempre partindo da denúncia do genocídio contra Gaza.

Contudo, no fragor da luta pela Palestina colocaram-se novas questões: a onda repressiva desencadeada nos EUA e que passou para Portugal, com a violência extrema da polícia contra a ocupação da FPUL e da Escola de Medicina, levantando a questão dos direitos democráticos de forma direta. É preciso incluir na agitação a denúncia da repressão, explicando que os governos que armam a maquinaria militar israelita estão também dispostos a abafar pela violência os protestos contra essa sua cumplicidade. Esta repressão é aliciada por universidades ligadas às grandes empresas que lucram do militarismo e do imperialismo, e dirigidas por reitores e burocratas privilegiados afastados dos problemas dos seus trabalhadores e estudantes. Estas constatações devem traduzir-se em reivindicações concretas: não à repressão, não à polícia nas universidades, demissão imediata dos reitores da UL e da NOVA, democracia universitária e fim ao financiamento privado do ensino. 

Tudo isto é particularmente importante em Portugal, onde o Estado passou o mês passado a celebrar as “liberdades” que trouxe o 25 de abril. Os últimos acontecimentos, com as imagens na FPUL que lembram o Estado Novo, mostram novamente a falsidade desta propaganda: o 25 de Abril ficou incumprido, e o regime capitalista corruto que surgiu após o 25 de Novembro é a negação dos anelos e das ânsias de liberdade e igualdade que impulsionaram a revolução. A tradução portuguesa da intifada mundial é a luta por um novo Abril!  

Perspetivas

O despejo da ocupação da Escola de Medicina da NOVA, junto ao facto de não terem conseguido alargar para novos setores e envolverem a maioria dos estudantes, e o próprio final do semestre, põe em causa a possibilidade do movimento se desenvolver no curto prazo. Porém, apesar dos compromissos (bastante vazios) dalgumas administrações universitárias como na FBAL, nada tem sido resolvido. O genocídio em Gaza continua, assim como a cumplicidade criminosa do governo português, ilustrada no cinema São Jorge pelo Carlos Moedas. As imagens da repressão selvagem na FPUL e na Escola de Medicina não serão facilmente esquecidas. A palavra de ordem duma intifada mundial mantém a sua força. Portanto, é preciso estarmos preparados para novas lutas no futuro próximo, quer no âmbito universitário, quer noutros espaços. É por isso que é preciso estudar a experiência das acampadas e fazer um balanço crítico, reconhecendo a sua principal limitação: o seu enquadramento nas dinâmicas dos pequenos grupos ativistas, sem uma capacidade de alagar para outros setores. O caminho a trilhar no futuro deve ser a luta de massas com palavras de ordem e métodos de agitação agregadores, sustentados por assembleias democráticas, a orientação para a classe trabalhadora e um programa que ligue a solidariedade com a Palestina à luta por transformar a sociedade! 

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