António Balmer
Nos primeiros quatro meses deste ano, 541 projetos de lei anti-trans foram apresentados em todo o país, incluindo 23 a nível federal, e mais de 70, já foram sancionados. Trata-se de um aumento significativo na legislação transfóbica em relação a apenas um ano atrás, quando 174 projetos de lei desse tipo foram introduzidos e 26 tendo sido aprovados.
A maioria desses projetos de lei draconianos consiste em restrições arbitrárias aos direitos dos transgêneros, e particularmente os dos jovens trans. Limitam o acesso a cuidados de saúde e a serviços de afirmação de género, proíbem as pessoas trans de praticar desporto e impedem-nas de usar a casa de banho do género com que se identificam. Esses projetos de lei foram acompanhados por uma campanha alarmista na imprensa de direita, demonizando as pessoas trans e retratando-as como predadoras perigosas.
O momento deste frenesim transfóbico – intensificado nas legislaturas e nos meios de comunicação social no momento em que uma nova recessão económica ameaça desestabilizar o país – não é um acaso. A classe dominante está lutando para conter uma crise bancária e uma inflação fora de controle, e prepara-se para um “crash landing” no que pode ser uma grave recessão. Uma pesquisa recente descobriu que 72% das famílias que ganham menos de US$ 100.000 já estão lutando para acompanhar o aumento do custo de vida. Em sintonia com a miséria crescente na sociedade, os políticos da classe dominante são confrontados com o imperativo desesperado de encontrar bodes expiatórios para desviar o crescente descontentamento social para canais reacionários.
É por isso que os políticos burgueses têm redobrado os esforços para acirrar as ansiedades da “guerra cultural” nos últimos anos. A crescente campanha sobre uma perigosa “invasão migratória” que visa despertar medos racistas e sentimentos anti-imigrantes, serve o mesmo propósito. Ambos são uma resposta direta aos interesses imediatos de uma classe que governa um sistema em crise.
Cálculos políticos baratos – e as suas consequências reacionárias
Além de fomentar preconceitos e colocar pessoas da classe trabalhadora umas contra as outras em linhas de identidade e “cultura”, ambos os partidos da classe dominante [Democratas e Republicanos] consideram a febre transfóbica como um fator-chave em seus cálculos eleitorais no curto prazo.
A direita cristã evangélica tem sido um segmento cobiçado da base de eleitores republicanos desde o final da era dos Direitos Civis, quando o apoio aberto ao racismo do Jim Crow [leis de segregação racial] não era mais uma tática viável para mobilizar os eleitores. Através de uma cruzada reacionária após outra, o Partido Republicano cortejou esta base, encontrando novas formas de levar eleitores preconceituosos às urnas, enquanto espezinha os direitos básicos de um grupo oprimido atrás do outro.
Após o fim da segregação legal, o direito ao aborto tornou-se o ponto central do debate sobre “escolhas” – debate esse que voltou à ribata novamente. Depois, foram as leis homofóbicas que criminalizaram as relações entre pessoas do mesmo sexo até 2003, quando a última dessas leis foi derrubada pelo Supremo Tribunal no caso Lawrence v. Texas. Então, o casamento entre pessoas do mesmo sexo tornou-se o campo de batalha, até que também foi reconhecido federalmente em 2015 através do caso Obergefell v. Hodges. A nova onda de transfobia é apenas o último elo da cadeia reacionária de polarização sobre gênero e sexualidade.
Embora a religião esteja claramente em declínio nos EUA – apenas 47% dos americanos pertencem a uma igreja, em comparação com 70% em 1999 – enquanto segmento do eleitorado, os eleitores religiosos são um alvo-chave das campanhas eleitorais burguesas. Em 2020, entre 76% e 81% dos cristãos evangélicos votaram em Trump, de acordo com duas pesquisas. A Pew Research relata ainda que 90% dos republicanos são religiosos, 73% dizem ter “certeza absoluta” sobre sua crença em Deus e 62% dizem que rezam diariamente. Mesmo entre os democratas, 83% afirmam ter crença religiosa, embora apenas 47% a considerem “muito importante” em suas vidas. Desta forma, preconceitos centenários e superstições antigas encontram seu caminho nos esquemas eleitorais burgueses do século 21.
Vendo a onda transfóbica como uma maneira fácil de construir uma base confiável entre um segmento atrasado de eleitores, os legisladores republicanos têm-se atropelado na corrida para se juntar a esta investida. Mas há duas faces cínicas na moeda da “guerra cultural”. Enquanto um partido capitalista conduz o ataque, os políticos do outro lado do espectro esfregam as mãos gananciosamente ponderando nos seus próprios cálculos…
Isto ficou claramente demonstrado nas intercalares do ano passado. Analistas liberais comemoraram a revogação da Suprema Corte de Roe v. Wade como uma medida oportuna que levou mais eleitores democratas às urnas. Até hoje, o New York Times saúda as medidas eleitorais a nível estadual sobre o direito ao aborto como uma iniciativa que pode “energizar a participação em 2024 entre os eleitores democratas” e que pode até “gerar participação democrata suficiente para ajudar o presidente Biden a vencer” importantes Estados oscilantes. Não importa que o partido de Biden nunca tenha tomado qualquer medida séria para defender, e muito menos codificar, o acesso universal ao aborto nos EUA.
Para os democratas, o espectro útil do “mal maior” é uma tónico para as suas campanhas. Os seus cálculos simplesmente correm no sentido contrário dos republicanos, apostando que a sua retorica pró-LGBTQ fortalecerá as suas chances em 2024, enquanto (na prática) não fazem absolutamente nada para defender os direitos ou as condições de vida trans. Como principal partido de Wall Street – o representante político mais confiável da classe dominante dos EUA – os democratas tentam dar um verniz “progressista” às suas políticas reacionárias. Eles são os inimigos dos trabalhadores, mas, para eles, a “guerra cultural” é uma oportunidade para desviar a atenção de sua investida antioperária. Sua abordagem é idêntica às campanhas de marketing das grandes corporações cujos lucros são baseados na exploração brutal de milhões de trabalhadores, mas que usam logotipos arco-íris para mostrar suas credenciais progressistas durante o mês do Orgulho sem nenhuma outra intenção se não vender produtos.
Da mesma forma, com a próxima campanha presidencial de Biden aproximando-se rapidamente, a Casa Branca decidiu proclamar oficialmente um “Dia da Visibilidade Transgênero” no final de março. Numa mistura de patriotismo e sentimentalismo liberal, declarou que “os americanos transgénero moldam a alma da nossa nação” e apelou aos americanos para se certificarem de que “todas as crianças saibam que são feitas à imagem de Deus, que são amadas”, terminando com um apelo “para se juntarem a nós na elevação das vidas e vozes das pessoas transgénero em toda a nossa nação”.
Essa linguagem florida é tão vazia quanto divorciada da realidade da luta trans em condições capitalistas de miséria. O próprio sistema que Biden e os dois partidos no poder representam é a fonte da opressão horrível que torna a vida cada vez mais impossível para as pessoas trans em todo o país.
A vida sob o capitalismo
Como em todas as formas de opressão sob o capitalismo, é nas condições materiais de vida que a desigualdade trans se destaca com claro relevo. Um estudo da UCLA de 2020 descobriu que 35% das pessoas trans viviam na pobreza. De acordo com dados do censo de 2021, adultos trans têm três vezes mais hipóteses de passar fome. Mais de um quarto das famílias trans experimentam insegurança alimentar, e 36% das pessoas trans de cor relataram não ter o suficiente para comer. Um estudo menor de 2019 da Universidade do Tennessee em 12 estados do sudeste descobriu que 79% das pessoas trans e não conformes de gênero relataram insegurança alimentar.
As pessoas trans têm quase seis vezes mais probabilidade do que o resto da população de viver sem abrigo em algum momento das suas vidas – 8% dos adultos trans, em comparação com 1,4% da população total. Muitos jovens trans se encontram nas ruas como resultado do preconceito existente em lares conservadores. O US Transgender Survey (USTS) de 2015, o maior estudo do tipo até agora, entrevistou 28.000 pessoas trans nos EUA e descobriu que 18% relataram não ter apoio das famílias.
De acordo com dados do CDC, estudantes trans no ensino secundário têm mais de nove vezes mais hipótesess de serem sem-teto do que os seus colegas. Entre os jovens que eram percebidos como trans, 77% relataram ter sofrido algum tipo de maus-tratos; 54% relataram ter sofrido assédio verbal, 24% foram agredidos fisicamente e 17% relataram ter saído de uma escola por causa de maus-tratos.
As taxas mais elevadas de sem-abrigo também decorrem diretamente do aumento da precariedade e da discriminação contra trabalhadores trans nos locais de trabalho. Uma em cada quatro trabalhadoras trans perdeu um emprego devido à sua identidade de género. Mais de três quartos (77%) declararam tomar medidas como atrasar a transição, ocultar a identidade de género ou abandonar o emprego para evitar maus-tratos ou discriminação por parte de um empregador.
O estudo da USTS descobriu que 68% das pessoas trans não conseguiram alterar nenhum dos seus documentos oficiais – carta de condução, passaporte ou certificados de habilitações – para refletir sua identidade de gênero. Fazer isso pode ser um processo caro, demorado e desconfortável, e alguns Estados até exigem prova de cirurgia para alterar os registros. Ter um documento de identificação e documentação que não corresponda ao nome, identidade ou aparência de uma pessoa pode, por sua vez, criar problemas para se candidatar a trabalhos ou recorrer a serviços públicos.
Num país onde 112 milhões de pessoas lutam para pagar cuidados de saúde, as pessoas trans são especialmente sobrecarregadas pelo fato de que os monopólios de seguros consideram os cuidados de afirmação de gênero como não essenciais, forçando muitos a pagar do próprio bolso por tratamentos e procedimentos caros. Embora nem todas as pessoas trans queiram ou precisem modificar seus corpos para viver suas vidas de uma forma que esteja de acordo com sua identidade, muitas querem fazer a transição, mas simplesmente não podem pagar por isso.
Todas essas dificuldades materiais, juntamente com a prevalência de grandes e pequenas manifestações de discriminação, bullying, preconceito e assédio seriam suficientes para pesar na saúde mental de qualquer pessoa. As pessoas trans têm seis vezes mais probabilidade de sofrer de depressão e transtornos de ansiedade, e nove vezes mais probabilidade de tentar o suicídio do que a população em geral. Nalgum momento das suas vidas, 40% das pessoas trans tentaram acabar com suas vidas, e entre as pessoas sem apoio das famílias, a percentagem chegou aos 54%!
Só a classe trabalhadora unida pode acabar com a opressão!
Essas estatísticas fornecem um pequeno vislumbre das dificuldades enfrentadas pelas pessoas trans – uma realidade torturante que vai muito além do cínico jogo da “guerra cultural” jogado por republicanos e democratas. Ambas as partes são responsáveis pelos ataques aos meios de subsistência das pessoas trans. Gestos simbólicos de políticos “progressistas” prometendo “respeito” e “visibilidade” não proporcionarão habitação estável, saúde ou empregos confiáveis com salários decentes e proteção no local de trabalho. As condições de opressão trans exigem uma luta de massas contra a exploração capitalista, e não fraseologias liberais e marketing empresarial.
Por si só, as pessoas trans constituem uma pequena parcela da população. A pesquisa mais recente sugere que 0,5-0,6% dos adultos e 1,4-2% dos jovens, ou cerca de 1,6 milhão de pessoas nos EUA se identificam como transgênero. Esses números mostram por que a solidariedade de classe é fundamental para combater a opressão trans. Tomadas como um segmento isolado, as pessoas trans constituem uma pequena minoria. Mas, como parte do proletariado, os trabalhadores trans estão entre as fileiras de uma imensa força social com o poder de transformar a sociedade. A força da classe trabalhadora provém de duas fontes: o seu papel crítico na geração de toda a riqueza – e, portanto, de todos os lucros capitalistas – e a sua superioridade numérica como a esmagadora maioria da população.
Como os dados acima mostram, a grande maioria das pessoas trans são trabalhadores que estão lutando para sobreviver, assim como dezenas de milhões de outros. Embora haja um número minúsculo de “elites” transgênero ricas, em geral a luta trans é uma luta pela sobrevivência contra a brutalidade da vida sob o capitalismo. A luta dos trabalhadores trans por reivindicações básicas de saúde, moradia, emprego e estabilidade é a chave para se conectarem com a maré crescente da luta de classes. A luta contra a opressão transfóbica só pode assumir um caráter de massas assumindo um caráter de classe.
Um dos números mais otimistas na pesquisa da USTS foi que a maioria das pessoas trans encontrou apoio de seus colegas de trabalho no local de trabalho. 68% dos trabalhadores trans disseram que seus colegas de trabalho eram solidários, enquanto apenas 3% relataram não ter apoio dos colegas de trabalho e outros 29% relataram uma atitude indiferente dos colegas. O respeito mútuo entre trabalhadores de todas as origens e identidades pode crescer organicamente a partir da experiência diária de trabalhar e lutar lado a lado. É na experiência da luta coletiva que se forja a verdadeira solidariedade de classe.
A sociedade de classes produziu muitos horrores ao longo da história. Embora a opressão seja vivida de diferentes maneiras pelos indivíduos, a chave para acabar com ela é a luta coletiva, como classe. A luta contra a transfobia, tal como a luta contra o racismo e o sexismo, só pode avançar através da organização independente da classe trabalhadora, unida pelo lema “Um ataque a um é um ataque a todos!”