Originalmente publicado a 16 de Agosto, só agora nos foi possível reproduzir em português este artigo. Contudo, os últimos desenvolvimentos no campo de batalha, nomeadamente no Donbas, tornaram ainda mais urgente a publicação deste texto verdadeiramente presciente.
Artigo de Alan Woods, 16 agosto 2024
“É um conto dito por um idiota, cheio de som e fúria, não significa nada.” – Shakespeare, Macbeth
À medida que o tambor da guerra aumenta a cada dia e a máquina de propaganda bem oleada entra num exagero histérico, qualquer um começa a perder o controle da realidade. Dia após dia, com uma monotonia tediosa, as manchetes gritam-nos de todos os ângulos imagináveis, e até mesmo de alguns que são francamente inconcebíveis.
Quão afortunados são aqueles de nós que vivem no Ocidente “amante da liberdade” por termos a oportunidade de partilhar diferentes pontos de vista sobre o amor, a vida e até a política! Basta pensar nas pessoas pobres da Rússia que só ouviram um lado da história – aquele lado que serve os interesses do governo e do círculo dominante!
Essas pessoas infelizes têm de acreditar em qualquer notícia distorcida que lhes é apresentada diariamente. Nós, pelo contrário, temos um vasto leque de órgãos de informação, que são livres de imprimir qualquer opinião que desejem, sobre qualquer assunto.
Mas, por alguma peculiaridade do destino, a nossa imprensa livre escolhe (por sua livre escolha, escusado será dizer) imprimir exatamente a mesma história sobre a guerra na Ucrânia. Por uma coincidência ainda mais notável, esta história coincide sempre de perto com as opiniões oficiais da NATO, de Washington e, naturalmente, do regime de Kiev.
E assim, nós, cidadãos afortunados do Ocidente democrático, somos livres de escolher entre uma mesma opinião, expressa com regularidade mecânica sobre o mesmo assunto e repetida vezes sem conta.
Na manhã de ontem, 15 de agosto de 2024, o The New York Times não perdeu tempo para nos informar sobre como as tropas ucranianas invadiram a Rússia.
Somos iniciados no segredo de como, em 6 de agosto, a Ucrânia lançou “uma audaciosa – e altamente secreta – ofensiva militar, com o objetivo de acabar com uma guerra que há meses parecia estar perdendo“.
A campanha de desinformação sistemática começa, assim, de forma esplêndida logo na primeira frase. Para quem está remotamente familiarizado com as realidades da guerra na Ucrânia, não é certamente segredo que a Ucrânia não “parecia estar a perdê-la”. Está de facto a perder em toda a frente, e a perder bastante.
Na verdade, não era segredo para nenhum observador minimamente informado que a guerra, do ponto de vista do regime de Kiev, já estava perdida, e irremediavelmente. Mas agora, de acordo com o New York Times, juntamente com a CNN, The Washington Post, BBC, ITV, Channel 4 News, The Guardian, The Telegraph, The Financial Times, Le Monde, El País, Bild e inúmeros outros meios de comunicação famosos, tudo está subitamente virado do avesso.
De repente, a Ucrânia já não está a perder a guerra com a Rússia, mas, pelo contrário, está a ganhá-la. Suas tropas são retratadas em inúmeras transmissões de televisão, avançando profundamente em território russo, aparentemente sem qualquer oposição significativa.
Os soldados são mostrados rindo e sorrindo, como se estivessem em algum tipo de piquenique. Ocupam inúmeras aldeias do lado russo da fronteira, divertem-se derrubando bandeiras russas e hasteando as ucranianas em seu lugar.
É tudo muito alegre e absolutamente esplêndido para a moral.
A mensagem de Kiev aparece alto e bom som em todas as entrevistas televisivas com homens e mulheres triunfantes do lado ucraniano. Agora vamos dar-lhes uma lição!
Andrew E. Kramer, chefe do escritório do NYT em Kiev, falou com ucranianos que vivem em aldeias perto da fronteira com a Rússia. “Uma ucraniana que tinha sido evacuada de uma aldeia fronteiriça estava a dizer que era tempo de os russos sentirem como é a guerra.”
Entretanto, a cena no Kremlin é retratada com as cores mais escuras. Os infelizes russos parecem ser incapazes de reagir a este audacioso lançamento de dados.
Diz-se que estão paralisados, como um pobre coelho preso nos faróis de um veículo que se aproxima.
Os jornalistas ocidentais, e os autointitulados e sempre presentes “analistas”, estão ocupados a estudar todas as fotografias ou vídeos do homem no Kremlin, na esperança de ver indícios do seu estado psicológico nos mais pequenos movimentos dos músculos da face.
Sendo incapazes de elaborar uma hipótese racional com base nos factos, reduzem-se a recorrer às misteriosas artes da adivinhação, na esperança de descobrir a verdade da mesma forma que os antigos videntes passavam a vida a examinar incessantemente as entranhas das galinhas mortas.
É triste dizer, mas os esforços de nossos jornalistas investigativos atuais produzem aproximadamente os mesmos resultados que aqueles veneráveis padres de antigamente. Na verdade, seria indiscutivelmente um empreendimento mais lucrativo estudar os contornos das moelas de frango do que tentar descobrir o que está na mente de Vladimir Putin estudando seu rosto.
Independentemente do que se possa pensar sobre o homem no Kremlin, ele é um mestre em esconder os seus sentimentos mais íntimos, mantendo a mesma expressão morta que se esperaria ver num jogador de poker experiente.
E como Shakespeare disse uma vez:
“Não há arte em encontrar a construção da mente no rosto” (Macbeth)
No entanto, a guerra psicológica ocupa um papel central nas guerras em geral, e tem desempenhado um papel particularmente crucial na guerra atual.
O artigo do New York Times vangloria-se de que:
“A Ucrânia entrou sete milhas dentro da Rússia ao longo de uma frente de 25 milhas e tomou dezenas de soldados russos como prisioneiros, dizem analistas e autoridades russas. O governador da região russa de Kursk disse na segunda-feira que a Ucrânia controla 28 cidades e vilas. E mais de 132.000 pessoas foram evacuadas de áreas próximas, disseram autoridades russas.”
A história não se perde em contenção. As dezenas de soldados russos feitos prisioneiros, segundo o The Times,são imediatamente infladas por um Zelensky triunfante para precisamente cem. No dia seguinte, o seu gabinete informa-nos que o número ascende a “centenas”. Quantas centenas? 200, 900, mil? Ninguém sabe. É melhor deixar o número preciso para a imaginação, uma vez que a imaginação aqui tem um papel muito importante a desempenhar.
O que foi conseguido?
Do lado positivo, é evidente que o efeito inicial da incursão para além da fronteira russa foi, sem dúvida, um sucesso ucraniano. Mas, afinal, em que consiste este sucesso? A resposta a essa pergunta permanece um mistério.
E o que foi realmente conseguido com esta ofensiva? Todos os meios de comunicação são unânimes em afirmar que as forças ucranianas “penetraram profundamente em território russo“. Mas quão profundo é o profundo?
O artigo do Times diz: “A Ucrânia entrou sete milhas dentro da Rússia ao longo de uma frente de 25 milhas“. Este número, que é retirado de fontes russas, parece estar correto, embora também pareça que os ucranianos começaram agora a se espalhar em direções diferentes, sem qualquer ideia clara de qual é o propósito disso, além de atos esporádicos de sabotagem.
Ora, a Rússia, como sabemos, é, de facto, um país muito grande. Estamos a falar de muitos milhões de quilómetros quadrados. Penetrar 7 milhas ao longo de uma frente de 25 milhas não pode ser considerado uma penetração muito significativa do território russo de qualquer ponto de vista.
Os ucranianos afirmam ter conquistado várias aldeias, embora as fotografias que emitiram tenham sido claramente manipuladas para falsificar a posição, pelo menos em vários casos. Seja como for, as aldeias mencionadas são extremamente pequenas – lugarejos – e foram maioritariamente evacuadas.
Para além do valor temporário da propaganda, o significado militar real destes ganhos é precisamente zero. Não terá absolutamente nenhum efeito na principal guerra que está a ter lugar na Ucrânia – especialmente na área-chave do Donbas.
De que serve mobilizar recursos valiosos, necessários para fins defensivos em toda a linha da frente, em nome da ocupação de algumas pequenas aldeias do lado russo da fronteira?
Mesmo que aceitemos as reivindicações mais ambiciosas do lado ucraniano, é perfeitamente claro que a tomada dessas aldeias terá uma duração muito curta. As forças russas já estão se reunindo para um contra-ataque, que as expulsará com perdas muito pesadas em vidas e equipamentos.
Então, qual era o objetivo disto?
Uma ofensiva importante, envolvendo várias brigadas do exército ucraniano, além disso, brigadas retiradas em grande parte das reservas muito limitadas da Ucrânia e incluindo muitas das suas forças mais eficazes e de elite, deveria ter objetivos claramente definidos.
Mas, até hoje, nenhuma explicação clara desses objetivos foi dada por ninguém em Kiev. A razão deste misterioso silêncio tornar-se-á clara para nós mais tarde. Entretanto, continua a ser uma questão de especulação nos meios de comunicação ocidentais.
A única explicação meio razoável que foi dada até agora é que a ofensiva do Kursk pretendia obrigar os russos a retirar as forças da frente central no Donbas, aliviando assim a pressão sobre as defesas ucranianas, que estão severamente esticadas e a desmoronar-se rapidamente.
Se assim fosse, então falharia claramente no seu objetivo. Para além de um pequeno número de combatentes chechenos que foram enviados para Kursk, as forças russas que foram retiradas do Donbas parecem ter sido negligenciáveis.
De facto, já apareceram artigos nos meios de comunicação ucranianos em que as forças que tentam resistir ao implacável avanço russo sobre locais como Pokrovsk, queixam-se ruidosamente de que a retirada das forças ucranianas as enfraqueceu de tal forma que estão à beira do colapso.
O porta-voz da Guarda Nacional da Ucrânia, Ruslan Muzychuk, admitiu na quinta-feira que a ofensiva de Kiev na região russa de Kursk não abrandou o avanço de Moscovo.
“Como visto tanto pelos relatórios oficiais do Estado-Maior quanto pelos relatos de unidades e combatentes na linha de frente, o ritmo da ofensiva russa e a intensidade dos ataques não estão diminuindo“, disse Muzychuk a uma emissora local.
Desde que a Ucrânia lançou a ofensiva no Kursk, “diria que as coisas pioraram na nossa parte da frente“, disse Ivan Sekach, porta-voz da 110.ª Brigada Mecanizada da Ucrânia, atualmente destacada no distrito de Pokrovsk, na região de Donetsk. “Temos recebido ainda menos munição do que antes e os russos estão pressionando“, disse ele ao Politico.
Nas últimas 24 horas, a Rússia ocupou as aldeias de Zhelanne e Orlivka e avançou em Nova Iorque (sic!), Krasnohorivka, Mykolaivka e Zhuravka em Donetsk, segundo o DeepState, um projeto de mapeamento de guerra próximo do Ministério da Defesa da Ucrânia.
O Estado-Maior General das Forças Armadas ucranianas não confirmou nem negou a informação, dizendo apenas que estavam em curso intensos combates nessas áreas e que Kiev estava a concentrar os seus esforços na cidade de Pokrovsk, na região de Donetsk.
Falemos francamente. Ao contrário da impressão criada pelos meios de comunicação ocidentais, a frente decisiva na guerra na Ucrânia não é a batalha por Kursk, ou mesmo a frente de Kharkiv. É no Donbas, onde os russos avançam lenta, mas implacavelmente, expulsando os ucranianos de um ponto-chave atrás do outro.
O Ministério da Defesa da Rússia disse que as forças russas obtiveram uma série de vitórias ao longo da frente, da região de Kharkiv a Luhansk e Donetsk.
O principal objetivo russo no momento, no entanto, parece ser o ponto fortificado de Pokrovsk, que é o principal centro logístico da região de Donbass, e também a última linha fortificada de defesa antes do rio Dnieper. A queda de Pokrovsk precipitaria o colapso das linhas de defesa no leste da Ucrânia.
A linha da frente em direção a Pokrovsk tem vindo a desintegrar-se rapidamente nos últimos dias e a última linha da frente está a apenas 11 km do ponto de fronteira da própria cidade de Pokrovsk. Segundo a imprensa ucraniana, o chefe da administração militar de Pokrovsk, Serhiy Dobryak, diz que o “inimigo quase chegou ao limite da nossa comunidade“.
Numa publicação no Telegram, o chefe da administração militar da cidade diz que é importante que os moradores “não atrasem” sua evacuação, já que as tropas russas estão “aproximando-se rapidamente dos arredores de Pokrovsk“.
As credenciais militares de Zelensky
Se tivesse a menor compreensão da tática e da estratégia, Zelensky reconheceria imediatamente que a aventura do Kursk terminou em fracasso e ordenaria a retirada das forças ucranianas, a fim de preservar o que pudesse ser preservado desses valiosos e escassos recursos. Mas ele não dá qualquer sinal de que o faça.
Isto é absolutamente típico do líder ucraniano, um homem que, recordemo-nos, não tem qualquer experiência militar ou compreensão da arte da guerra. Ele só parece conhecer um comando – atacar! As palavras “recuar” ou “retirar” não entram no seu vocabulário muito limitado.
Este facto tornou-se claro em todas as junções decisivas do conflito ucraniano. Teve consequências extremamente terríveis, causando uma derrota desastrosa atrás da outra. E, no entanto, ele não aprende. Ontem, acerca duma reunião do Estado-Maior ucraniano, Zelensky relatou a situação em Donbass, que agora se tornou crítica:
“Hoje, na reunião do Estado-Maior, recebi um relatório do comandante-em-chefe Syrskyi. Nossas principais direções de defesa na linha de frente: Toretsk, Pokrovsk e outros. Essas áreas estão atualmente enfrentando os ataques russos mais intensos e estão recebendo nossa máxima atenção defensiva. Suprimentos prioritários – tudo o que é necessário – estão sendo enviados para lá.”
Não menciona o facto de a defesa destas áreas decisivas ter sido seriamente enfraquecida pelas suas ordens de retirada das tropas para apoiar a sua ofensiva em Kursk!
Parece absolutamente incrível que, num momento tão crítico, Zelensky ainda persista no seu plano insano de invadir a Rússia! Tendo dedicado apenas algumas palavras à posição desesperada de suas forças em “Toretsk, Pokrovsk e outros” (ou seja, ao longo de toda a linha central do conflito), ele imediatamente retorna à sua própria obsessão pessoal, que é devorar forças vitais e equipamentos sem absolutamente nenhum propósito lógico.
A conquista de Pokrovsk pela Rússia será incomensuravelmente mais importante para o resultado da guerra do que qualquer número de pequenas aldeias que os ucranianos conseguirem ocupar temporariamente em Kursk.
Não há absolutamente nenhuma esperança de que eles as ocupem por qualquer período de tempo significativo. E a sua derrota – que é inevitável – será acompanhada por um nível impressionante de perdas. Zelensky continuou no seu relatório:
“Separadamente, o comandante-em-chefe [Syrskyi] informou sobre a operação no oblast de Kursk. Registaram-se novos progressos. O nosso “fundo cambial” foi ainda mais reabastecido. Além disso, o general Syrskyi relatou a libertação bem-sucedida da cidade de Sudzha das forças russas. Um gabinete de um comandante militar ucraniano está a ser estabelecido lá. Vários outros assentamentos também foram liberados. No total, mais de oitenta. Estendo minha mais profunda gratidão a cada um de nossos guerreiros que tornaram isso possível.”
Em suma, Zelensky fala como um homem num sonho, completamente divorciado da realidade.
A Rússia foi apanhada de surpresa?
Se é verdade que a Rússia foi apanhada de surpresa pela ofensiva ucraniana em Kursk, isso representaria, sem dúvida, um fracasso catastrófico dos serviços secretos russos. Esta é a interpretação que tem sido amplamente divulgada nos meios de comunicação social ocidentais. No entanto, é difícil justificar esta interpretação sem um exame crítico mais aprofundado.
É sabido que os serviços secretos russos estão entre os mais eficientes do mundo. Têm à sua disposição um vasto aparelho de vigilância, que herdaram do KGB e da União Soviética. Este aparelho terá sido modernizado e atualizado para acompanhar todos os desenvolvimentos na frente de guerra.
A existência de satélites de espionagem e drones, que mantêm uma observação constante de todos os desenvolvimentos nas linhas de frente, é indubitavelmente reforçada pela existência de espiões e informantes que, a todos os níveis, passam informação. Sem dúvida, tal aparelho dificilmente será pego de surpresa até mesmo pelos menores movimentos na Ucrânia. E o que temos aqui não é um pequeno movimento, mas um movimento em grande escala de tropas, tanques e veículos blindados numa área muito sensível da frente.
Para os russos não terem detetado esses movimentos, eles devem ter sido cegos, surdos e mudos. Manifestamente, não terá sido esse o caso. Há outros fatores que são muito difíceis de explicar. Na área onde ocorreu a incursão, os russos tinham convenientemente limpado os seus campos de minas. A razão para isso pode muito bem ter sido à conta dum futuro avanço russo através da fronteira, que estes estariam a planear.
No entanto, isso apresentou um alvo muito tentador para os ucranianos – demasiado tentador para Zelensky resistir, de facto. Era quase como se os russos convidassem a um ataque, como um homem que coloca um tentador pedaço de queijo numa ratoeira.
É concebível que os ucranianos tenham de facto caído numa armadilha? Tal hipótese será indignadamente negada por todos os comentadores ocidentais que insistem em apresentar o que foi claramente uma aventura sem sentido como um ato de brilhantismo militar.
Mas, com o devido respeito pelos nossos “especialistas” ocidentais, tal hipótese não pode ser logicamente excluída. E, de facto, parece muito mais credível do que a explicação alternativa, segundo a qual, por razões inexplicáveis, os serviços secretos russos foram incapazes de detetar algo que teria sido óbvio.
Se excluirmos a possibilidade de que algum tipo de armadilha tenha sido preparada pelos russos, então somos obrigados a tirar outra conclusão, a saber, que Zelensky caiu numa armadilha criada por ele próprio. E agora será obrigado a viver com as consequências do seu erro.
O Ocidente esteve envolvido?
A pergunta seguinte que deve ser feita é: o Ocidente esteve envolvido neste movimento, ou mesmo foi informado com antecedência? O Times diz o seguinte:
“A operação surpreendeu até mesmo os aliados mais próximos de Kiev, incluindo os EUA, e ultrapassou os limites de como o equipamento militar ocidental poderia ser usado dentro do território russo.”
A Casa Branca diz que a Ucrânia não notificou antecipadamente a sua incursão e que Washington não teve qualquer envolvimento. Mas estas afirmações são recebidas com ceticismo em Moscovo. Um assessor do Kremlin afirmou que a NATO e o Ocidente estiveram diretamente envolvidos no planeamento do ataque da Ucrânia à região russa de Kursk e que as negações do seu envolvimento são mentiras.
E, de facto, porque deveriam os russos acreditar em qualquer coisa que é dita pelos americanos, já que eles sempre mentiram e enganaram a sua própria opinião pública desde o início?
Na verdade, há boas razões para acreditar que os americanos foram informados dos planos de Zelensky antes da ofensiva ter lugar – porque parece que os próprios russos os podem ter informado! Destaca-se um telefonema curioso. Em 12 de julho, o ministro da Defesa russo, Andrey Belousov, tomou a iniciativa de ligar diretamente para o chefe do Pentágono, Lloyd Austin.
Isso, por si só, já é bastante incomum. Desde o início da guerra, em fevereiro de 2022, Austin teve apenas cinco telefonemas com o ministro da Defesa russo – quase todos iniciados pelos EUA para evitar a escalada do conflito.
Mas, de acordo com três fontes oficiais americanas no The New York Times, foi Belousov quem ligou para Austin nesta ocasião para avisá-lo de que os russos tinham descoberto uma operação secreta ucraniana contra a Rússia.
A natureza precisa desta operação não foi revelada. O que aconteceu a seguir permanece incerto. Aparentemente, funcionários do Pentágono foram apanhados de surpresa com a notícia dos planos dos ucranianos. Quando perguntado diretamente por Belousov se tinha conhecimento da operação planejada pelos ucranianos, Austin negou que tivesse conhecimento dela e, além disso, disse que avisaria os ucranianos para não a realizar.
À luz dos acontecimentos subsequentes, é difícil não chegar à conclusão de que a operação secreta referida foi precisamente a ofensiva em Kursk, que, com ou sem a permissão de Washington, Zelensky já estava a planear.
A razão pela qual isso foi considerado pelos russos como uma séria ameaça foi a seguinte. O único alvo estratégico militar de qualquer valor na região de Kursk é a central nuclear de Kursk, nos limites da cidade de Kurchatov, a oeste da capital regional, Kursk.
Se os ucranianos pudessem tomar essa instalação, isso sem dúvida lhes teria dado força para chantagear a Rússia de alguma forma. Este era, sem dúvida, o verdadeiro objetivo da ofensiva ucraniana em Kursk, embora isso nunca tenha sido esclarecido pelos ucranianos.
A ofensiva fracassou
A rapidez e a facilidade com que os ucranianos conseguiram avançar para o território russo em primeira instância pegaram muitas pessoas de surpresa – especialmente os próprios ucranianos. Isto exige, mais uma vez, alguma explicação.
Será que os russos não tinham forças suficientes para repelir os invasores e expulsá-los de volta para a fronteira? Eles certamente têm reservas suficientes dentro da Rússia para tornar desnecessário retirar as forças de Donbass (outro objetivo declarado dos ucranianos).
No entanto, as únicas forças conhecidas que estavam presentes na área nessa altura eram pequenos grupos de forças especiais (comandos), chechenos e membros do grupo Wagner. Estes estiveram envolvidos em emboscadas que, juntamente com ataques aéreos e drones, causaram, de facto, baixas muito graves aos ucranianos – um facto que foi completamente minimizado pela imprensa ocidental.
No entanto, até agora, os russos têm evitado uma batalha total com os invasores, preferindo minimizar as baixas do seu próprio lado, enquanto maximizam as perdas ucranianas em mão de obra e veículos, que sofreram um preço muito pesado por resultados insignificantes.
Os russos construíram uma linha fortemente fortificada, que bloqueia o avanço ucraniano, obrigando os ucranianos a dispersar suas forças em pequenas unidades, dedicadas principalmente à sabotagem.
No entanto, o principal alvo – a central nuclear – continua fora do seu alcance. Foi fortemente fortificada pelos russos, o que a torna praticamente inatacável pelas forças invasoras.
Assim, os ucranianos encontram-se efetivamente numa armadilha, privados do acesso ao seu alvo mais importante, permanecendo na posse de várias aldeias maioritariamente vazias (a população foi maioritariamente evacuada) e agora condenados a atividades mais ou menos sem objetivo, enquanto aguardam um sério contragolpe do lado russo.
Quanto tempo levará para os russos reunirem forças suficientes para lançar uma contraofensiva demolidora, é impossível dizer. Mas as tropas estão a chegar de todos os lados e, quando os comandantes estiverem convencidos de que os ucranianos foram suficientemente enfraquecidos pelos bombardeamentos, irão avançar para a matança.
Tudo isto será, portanto, exposto aos olhos do mundo como uma aventura sem sentido e imprudente, que apenas servirá para enfraquecer as defesas ucranianas já em ruínas e preparar o caminho para o colapso final.
Kursk: um ponto de viragem na guerra
Pode ser verdade que a aventura do Kursk será um ponto de viragem na guerra na Ucrânia, mas não no sentido entendido por Zelensky e pelos seus admiradores no Ocidente. Pelo contrário, terá causado danos irreparáveis às defesas da Ucrânia face a um novo ataque russo, que está claramente em preparação.
Há rumores – cuja veracidade não posso apurar – de que Oleksandr Syrskyi, o principal comandante militar da Ucrânia, está a tentar distanciar-se do caso Kursk, tentando transferir a culpa para os ombros de Zelensky.
Se é verdade que o general Syrskyi, que é considerado um “yes man” do Presidente, está a tentar dissociar-se da sua aventura imprudente e irresponsável no Kursk, é um sinal sinistro das fissuras em desenvolvimento nos círculos no poder em Kiev.
O argumento de Zelensky de que a ofensiva do Kursk pretendia dar aos ucranianos uma posição mais forte em futuras negociações com a Rússia revela-se agora como um sonho vazio.
Longe de entrar em negociações com a Rússia, a aventura do Kursk retirou qualquer possibilidade das negociações se realizarem. Putin deixou isso perfeitamente claro. E a ação de “invadir” o território russo sem dúvida fortaleceu sua mão e endureceu a opinião pública russa contra o regime de Kiev.
Finalmente, alguns comentadores ocidentais começam a acordar para o facto de que esta incursão não só terminará em derrota, mas num colapso militar completo e desastroso.
Num certo sentido, a ofensiva tem sido um sucesso espetacular. Deu um grande impulso ao barulhento circo mediático, que está sempre ansioso por aproveitar todo e qualquer sucesso ucraniano – seja real ou imaginário é uma questão assessória… – e exagerá-lo até ao nono grau.
Os relatos dos média têm transbordado de cobertura jorrante dos galantes ucranianos lutando e infligindo derrotas humilhantes a um inimigo maligno. No entanto, se você escavar um pouco mais além do hype dos média, não é difícil de detetar uma nota de dúvida e até mesmo de ceticismo.
Mesmo as claques mais entusiasmadas com a ofensiva admitem, a contragosto, que foi uma “aposta muito arriscada“. Isso vale para o próprio The New York Times. Ao analisar estes acontecimentos no mesmo artigo, diz o seguinte:
“Esta ofensiva é uma grande aposta para a Ucrânia. Se as suas tropas conseguirem deter território, poderão esticar a logística do exército russo, criar embaraço para Putin e obter uma moeda de troca para quaisquer negociações de paz. Mas se a Rússia conseguir rechaçar, os líderes militares ucranianos poderão ser responsabilizados por dar aos russos uma abertura para ganhar mais terreno.”
Zelensky obviamente esperava que sua ofensiva causasse desmoralização generalizada e pânico entre a população russa. Na realidade, teve o efeito contrário. O espetáculo das forças ucranianas, armadas com armas e tanques fornecidos pelo Ocidente, ter-lhes-á convencido de que a futura adesão da Ucrânia à NATO representa, de facto, uma ameaça direta e atual para a Rússia.
Longe de minar a posição de Putin, galvanizará o apoio à guerra. Já está a levar a um aumento do número de recrutas para o exército russo. Isto ao mesmo tempo que a Ucrânia considera necessário usar a força bruta para arrastar recrutas involuntários das ruas para serem enviados para o que é cada vez mais visto como um matadouro. O povo da Ucrânia está a acordar rapidamente para o facto de os seus pretensos amigos e benfeitores no Ocidente estarem dispostos a lutar até à última gota do seu sangue.