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A extrema direita: o que é e como combatê-la 

Artigo de Arturo Rodriguez

A ameaça do Chega está a pairar sobre as próximas eleições em Portugal. O surto do partido de André Ventura insere-se no auge internacional da extrema direita. Dos Estados Unidos ao Brasil, de Espanha a Hungria, têm aparecido novos movimentos reacionários que em muitos países têm chegado ao poder. É importante compreendermos a natureza desta ameaça para podermos a combater eficazmente. 

A democracia burguesa 

Os regimes constitucionais e parlamentares modernos escondem sob uma miragem democrática a ditadura do capital, que decide todas as questões fundamentais. A democracia acaba onde começa a grande propriedade privada, ou seja, onde começa a estrutura social opressiva e exploradora do capitalismo. Como disse Lenine, «a liberdade da sociedade capitalista permanece sempre aproximadamente como era a liberdade nas repúblicas gregas antigas: liberdade para os escravistas». Porém, a democracia burguesa inclui liberdades e direitos civis valiosos, que foram ganhos pelo povo através das suas lutas e que os comunistas defendemos perante as tentativas da burguesia de os minar ou contornar. Evidentemente, a democracia burguesa é um regime preferível à ditadura burguesa aberta, já que, graças às condições de liberdade política relativa, facilita e simplifica a luta de classes. 

A democracia burguesa também tem vantagens importantes para a burguesia, por motivos bem diferentes. Em primeiro lugar, a pompa democrática gera uma ilusão de participação popular na vida política, toldando o verdadeiro caráter bárbaro da sociedade atual e o papel opressivo do Estado, que é apresentado como o defensor da «vontade popular». Assim, a democracia burguesa contribui para distrair e confundir a classe trabalhadora. Em segundo lugar, o sistema constitucional e parlamentar permite à burguesia gerir ordeira e pacificamente os conflitos que inevitavelmente surgem entre as suas diferentes famílias e facções, que podem se expressar através dos seus partidos e políticos profissionais, corrompidos e dirigidos pelos capitalistas. 

Contudo, a democracia burguesa é uma planta frágil, que requer condições bastante específicas para poder florescer. Em condições ideais, de crescimento e paz social, os governos atuam como uma simples correia de transmissão dos desejos da classe dominante, obtendo os votos necessários sem demasiado esforço. Dois ou três partidos burgueses sem diferenças programáticas substanciais alternam-se no governo. 

Em períodos de crise e descontentamento, porém, este mecanismo estraga-se. Torna-se mais difícil ganhar as eleições. Espalha-se a frustração para com o sistema político corrupto. Mas para os políticos burgueses a política é uma profissão, da qual dependem os seus privilégios! Abre-se assim uma brecha entre a burguesia e os seus representantes políticos, que se tornam menos previsíveis. Começam a empregar uma demagogia cada vez mais radical para enganar os cidadãos. Elementos oportunistas dos grandes partidos criam novas formações para escapar à crise das velhas famílias políticas. Não esqueçamos, por exemplo, que antes de criar o Chega André Ventura calejou-se politicamente no PSD, igual que Santiago Abascal passou os seus primeiros anos no PP. 

Reacionários 

Certamente, até os demagogos burgueses mais incendiários nunca questionam o sistema capitalista. Pelo contrário, a sua demagogia procura reforçar o sistema, atirando a atenção para tal ou qual sintoma secundário da crise, como a corrupção ou a criminalidade, para os que não têm solução nenhuma; empreendendo guerras culturais contra a esquerda; ou, mais frequentemente, procurando bodes expiatórios entre os setores mais vulneráveis da população, como os migrantes ou os ciganos. 

A burguesia sempre foi racista porque sempre necessitou dividir a classe trabalhadora para poder governar. Uma sociedade baseada na exploração da grande maioria por um punhado de parasitas só pode se manter se os oprimidos estiverem divididos. Em fases de crise, a política de “dividir para conquistar” torna-se ainda mais importante: só colocando os últimos contra os penúltimos pode a burguesia sobreviver, só assim pode escapar a raiva dos trabalhadores. Portanto, na crise do capitalismo a violência e a intolerância racista intensificam-se. Além disso, o racismo ajuda os burgueses a criar uma camada vulnerável, socialmente isolada e hiper-explorada de trabalhadores migrantes, que empurra os salários de todos para baixo. Já vimos o deputado do Chega Rui Paulo Sousa que empregava indianos na sua plantação! O problema deles não são os trabalhadores indianos, mas que eles possam ter direitos e se organizarem com os trabalhadores portugueses contra os patrões. 

A única verdadeira proposta destes partidos é o reforço do aparato repressivo do Estado, da polícia, do exército e da legislação repressiva, para impor “a ordem”. De facto, estes políticos reacionários sempre têm ligações estreitas com o Estado. Basta com olhar, por exemplo, para a amizade de Jair Bolsonaro com a polícia e o exército e até com grupos paramilitares. A nível de rua, os seus militantes, sobretudo entre os ambientes neonazis que gravitam à volta dos partidos de extrema direita, colaboram com a polícia na repressão da esquerda, dos sindicatos, da juventude e dos migrantes, como foi o caso de Aurora Dourada na Grécia na última década. 

Em definitivo, estes partidos são o mais fiel representante do sistema na sua crise terminal, a cara autêntica da reação capitalista. Por isso, embora alguns burgueses expressem desconforto perante as extravagâncias de personagens como Ventura, estes políticos são sempre financiados generosamente pelos grandes capitalistas e promovidos pelos seus meios de comunicação. Embora latem contra a “casta política”, têm ligações estreitas com o Estado e com o establishment político, como já demonstrou Javier Milei na Argentina, enchendo o seu governo de relíquias dos velhos partidos conservadores corruptos. Como temos visto na Argentina, no poder estes políticos implementarão o programa de contrarreformas da burguesia na sua expressão mais radical. São o alicerce dos ricos e dos poderosos, que ficam protegidos da raiva popular pela demagogia bem paga de mercenários cínicos, exploradores profissionais do povo, como André Ventura. O capitalismo está a afundar e as suas formas de domínio político tornam-se inevitavelmente mais grotescas, irracionais e violentas! 

Fascismo? 

Entre amplos setores da esquerda tem-se falado em fascismo para definir as novas forças da extrema direita. Mas temos de ser cuidadosos com a nossa linguagem. Sem dúvida, a extrema direita é uma ameaça que devemos levar a sério e combater com toda a nossa energia. Porém, estes novos movimentos não podem ainda ser considerados como fascistas. 

O que é o fascismo? É um movimento contrarrevolucionário, de massas, que mobiliza a pequena burguesia reacionária para esmagar a classe operária, destruindo todas as suas organizações, impondo um regime ditatorial férreo. Partidos como o Chega, Vox ou Rassemblement Nacional ficam claramente aquém desta definição, tanto porque não são forças de massas, de grande capacidade mobilizadora, e porque, por enquanto, nem podem nem almejam esmagar o proletariado e destruir a democracia burguesa. Isto não é uma simples especulação, mas a experiência dos últimos anos: basta só com olhar os governos de Bolsonaro ou Trump, que foram abalados por ondas de protestos e até por greves gerais, e foram expulsos do poder nas eleições. Na maioria dos casos, estes demagogos nem sequer têm conseguido impor regimes autoritários “convencionais”, com exceções parciais como Vladimir Putin na Rússia ou Nayib Bukele em El Salvador, sob condições bastante particulares que nada tem a ver com Portugal. Na Europa, Aurora Dourada e os seus sucessores na Grécia exibiram uma ideologia e umas táticas abertamente fascistas, mas nunca atingiram um apoio de massas. E essa é uma outra questão crucial. 

A base social do fascismo histórico, na Itália, na Alemanha, e noutros países, sempre foi a pequena burguesia: os pequenos proprietários, lojistas, empresários, senhorios, profissionais e fazendeiros, estratos intermédios entre os operários e os capitalistas que, após crises sociais prolongadas, durante as quais às vezes olharam para o proletariado (que nunca conseguiu conquistar o poder), acabaram por orientar-se para a contrarrevolução. Assim, Mussolini e Hitler conquistaram uma base de massas, que mobilizaram para esmagar o movimento operário na rua e para adquirir uma autonomia relativa perante a grande burguesia e o aparato de Estado, impondo as suas ditaduras pessoais. Porque, efetivamente, a pequena burguesia nos anos 1920-1930 na Europa era uma força de massas, que representava uma percentagem importante da população. 

Hoje, a erosão da pequena propriedade pelos grandes monopólios capitalistas e a proletarização de amplos setores da população tem minado a pequena burguesia e, portanto, a base social da contrarrevolução. Na atualidade, profissões como os médicos ou os professores, que antes eram privilegiadas e conservadoras, não apenas pertencem à classe trabalhadora, mas são muito combativos e estão altamente organizados. Isso não quer dizer que demagogos como Ventura não possam encontrar numerosos votantes entre a pequena burguesia e setores desmoralizados da classe trabalhadora. Mas obter muitos votos não é a mesma coisa que criar um movimento de massas violentas e enlouquecidas para a imposição de uma ditadura. 

André Ventura e os políticos da sua laia têm uma veia violenta, que, potencialmente, no futuro, se a crise se prolongar, se a classe trabalhadora não triunfar, poderia evoluir numa direção abertamente fascista. É por isso que devemos matar a serpente quando ainda está no ovo. 

A responsabilidade da esquerda 

O que explica o surto da extrema direita nos últimos anos? Tem a ver com a alienação dos trabalhadores, com a sua fascistização”, como tem dito alguns comentadores da esquerda? Não acreditamos. Sem dúvida, em todas as sociedades há uma camada minoritária profundamente reacionária de pequeno burgueses e até de alguns trabalhadores, que antigamente gravitava à volta dos antigos partidos conservadores e que agora tem virado para a extrema direita. Mas, no seu conjunto, as vitórias dos reacionários têm um caráter mais circunstancial, e, lamentavelmente, aqui devemos assinalar à esquerda. 

Os triunfos eleitorais da extrema direita têm-se dado, quase sem exceção, após uma viragem inicial para a esquerda, a chegada desta ao poder, e a frustração das ilusões que ela tinha gerado. Ao trair a sua base social com políticas de austeridade e de ataques aos trabalhadores, a esquerda tem empurrado parte da população para a apatia, a abstenção e até para a direita e a extrema direita. Olhemos para alguns exemplos. 

Na Grécia, a crise capitalista de 2008 gerou uma onda de mobilizações, greves e protestos sem precedentes, que abalaram todo o panorama político e levaram, em 2014, a esquerda ao poder. SYRIZA (Coligação da Esquerda Radical) chegou ao governo prometendo pôr cobro à austeridade, despertando grandes ilusões. O apoio popular para uma transformação revolucionária da Grécia foi reafirmado no referendo de julho de 2015, onde, contra a pressão de todos os capitalistas, nacionais e estrangeiros, o povo votou massivamente contra o memorando de austeridade da Troika. O líder do SYRIZA, Alexis Tsipras, porém, esmigalhou o resultado do referendo, assinando o terceiro e mais duro memorando dos anos da crise, e procedendo a implementar um programa de cortes e privatizações. Previsivelmente, a direita de Kyriakos Mitsotakis voltou ao poder em 2019 e o SYRIZA entrou num declínio irreparável. 

No Brasil, o Partido dos Trabalhadores pôde implementar algumas reformas importantes nos primeiros dois mandatos de Lula, em 2003-2011, graças ao crescimento econômico da época. Mas, vinda a crise do capitalismo, sobretudo a partir de 2014, as reformas transformaram-se em contrarreformas. A primeira onda de protestos contra o governo do PT, em junho de 2013, teve um caráter progressista e de esquerda, embora espontâneo. Para ganhar as eleições de 2014, Dilma Rousseff pôs a camisola vermelha e fez grandes promessas aos trabalhadores, mas, após as eleições, dedicou-se a implementar o programa económico da direita! Assim, desmoralizou a sua base social e abriu o caminho para as grandes mobilizações da direita, sendo expulsa do poder pelo seu próprio vice-presidente, Temer. Só foi neste contexto reacionário que Bolsonaro pôde ganhar as eleições de 2018. 

Ainda mais recentemente, na Argentina, o governo reacionário de Mauricio Macri encarou uma das maiores vagas de greves e mobilizações dos últimos anos. Finalmente, foi derrotado nas eleições de 2019 e a esquerda peronista voltou ao poder. Mas as condições de vida dos argentinos não melhoraram; pelo contrário, pioraram, com a pandemia, o agravamento da crise capitalista e novas negociações com o FMI. Nas eleições de 2023, o candidato oficial da “esquerda” era o antigo ministro de economia, Sergio Massa, que tinha estado a gerir a pior crise das últimas décadas! Isso criou condições insuperáveis para o ascenso de Javier Milei. 

O problema, portanto, não é a “fascistização” dos trabalhadores, que, de facto, têm lutado como leões nos últimos anos, mas a covardia, capitulações e traições da sua liderança, da esquerda reformista. As traições destes governos de esquerda reformista não é por acaso, nem é um problema moral. O reformismo pode florescer em fases de desenvolvimento capitalista, quando há migalhas para compartilhar. Mas em períodos de crise a base material para as reformas evapora-se, e as reformas tornam-se em contrarreformas. Incapazes de olhar para além do capitalismo, sem fé na classe trabalhadora, sem acreditarem no socialismo, estes políticos reformistas tornam-se involuntariamente em gestores da crise do sistema. Isso mina a sua própria base social e impulsiona a reação. Perante esta impotência, muitos destes políticos de esquerda têm-se devotado à “política de identidade” à volta de questões raciais, sexuais, de género, etc. Mas, sem conteúdo social e de classe, estas políticas culturais ficam num plano simbólico vazio, e oferecem um terreno de jogo ótimo aos demagogos reacionários. 

Paradoxalmente, porém, a extrema direita é, a seu modo, vítima de um processo parecido ao que acabamos de descrever. Os Venturas, Mileis e Bolsonaros não têm absolutamente nenhuma solução para a crise do sistema, gerando, pelo contrário, ainda mais sofrimento e desespero com os seus programas ultra-capitalistas, como estamos a ver agora na Argentina. Eles também “traem” os seus apoiantes e preparam a sua própria queda. 

Não passarão! 

A extrema direita deve ser combatida nas ruas e nas urnas. Mas, sobretudo, deve ser contestada politicamente. Isto não pode significar o apoio ao “mal menor”, ou seja, ao representante mais amável da classe dominante, como já temos visto na França com Macron ou nos EUA com Biden, porque isso, de facto, só dá mais espaço à reação para se desenvolver. Também não pode significar a miserável gestão “de esquerda” da crise capitalista. Portugal… de te fabula narratur! Após 8 anos de geringonça e de maioria absoluta do PS, de governos que têm frustrado e desiludido a classe trabalhadora, têm-se criado condições ótimas para o Chega. A única forma de combater eficazmente Ventura, e a extrema direita toda, é através de uma política de classe, que desmascare o caráter capitalista apodrecido destes partidos, e contraponha uma alternativa revolucionária. A extrema direita, na verdade, é fraca, baseada numa demagogia vazia, algemada aos ricos e aos poderosos e sem uma base social firme. Através de um programa revolucionário, que ofereça uma saída real ao inferno capitalista, podemos destrui-la. 

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