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Lições de Abril

A herança do fascismo e o seu derrubamento

Em 1974 Portugal era um país pobre, isolado e em guerra. Era uma pesada herança deixada pelos ditadores Salazar e Marcelo para um país que na década precedente se industrializara à taxa de 9,2% ao ano, mas cuja população regredia numericamente devido à sangria emigratória que desde meados dos anos sessenta levava anualmente mais de 100.000 concidadãos para lá das fronteiras nacionais. País cuja agricultura, tida como causa perdida para o progresso, ocupava ainda cerca de um terço da população activa em sincronia com a detenção de 53% do capital de todas as sociedades por apenas 168 empresas, i.e., 0,4% do total. Sete bancos, sete famílias, controlavam 83% dos depósitos e 87% das carteiras comerciais. As cidades e a periferia de Lisboa cresciam, via-se já não um mundo de pequenas coisas, mas um mar de assalariados (74,7% da população activa) nos quais se destacavam os cerca de 1 milhão de operários industriais.

Este era um Portugal em guerra em três cenários africanos e cujas despesas militares naturalmente disparavam (sensivelmente ao nível do que gastava a racista África do Sul cujo produto interno era o triplo do português); era um país onde os liceus persistiam na separação das turmas por sexo e que exportava os tradicionais têxteis, vestuário, concentrado de tomate, mas também produtos electrónicos manufacturados por multinacionais como a Timex ou Standart Electric ávidas de explorar a mão-de-obra barata que a PIDE e a repressão garantiam. Era um país sem liberdades políticas ou sindicais, e que ia equilibrando as contas da balança de pagamentos com as transferências financeiras das colónias e as divisas dos investidores, dos emigrantes e dos turistas.

O desenvolvimento que conhecera, importante sem dúvida, tinha sido sobretudo baseado nos baixos salários, na protecção da pauta aduaneira, nos apoios do Estado aos grandes grupos, na exploração colonial e – contrariando a retórica política do “orgulhosamente sós” – na associação ao capital estrangeiro. Na base de tudo isto os “30 gloriosos”, isto é, o período mais próspero do capitalismo que vai do pós-Segunda Guerra ao início dos anos 70. Quando se inverteu este período de crescimento e prosperidade geral, quando o choque petrolífero de 73 deu o empurrão final para a queda na depressão mundial, vieram ao de cima todos os problemas de uma pequena economia, todavia atrasada e amplamente deficitária como a portuguesa.

A taxa de lucro baixava, porém, já desde há algum tempo, na indústria e, com ela, descia o interesse no investimento produtivo desviando-se dessa maneira mais e mais capitais para a especulação financeira. O aumento da formação bruta de capital fixo, ou seja, o total de investimentos anuais na produção foi de 17,3% em 1966, de 5,7% em 1967, de 2,95% em 1968 e de 0,7% em 1969. Por outro lado, após o virar da década, só nos primeiros cinco meses de 73, o valor das cotações dos títulos subiu tanto como nos sete anos anteriores e o valor nominal das acções era 32 vezes superior ao seu valor real! Com ou sem o 25 de Abril, o crash bolsista era absolutamente inevitável. Toda essa especulação febril alimentava uma explosão inflacionista que baralhava ainda mais as contas e levantava o espectro do aumento do custo de vida: 11,5% em 1972 e 19,2% em 1973. Já sob o tremendo efeito da crise económica e do choque petrolífero na economia portuguesa, o regime ver-se-ia a braços com uma explosão grevista entre mãos nos seus últimos seis meses: cerca de 100 000 trabalhadores recorreram à greve – ação ilegal – para travar a queda dos salários. Mesmo retratando muito sucintamente a situação económica geral do país, uma coisa é evidente: não foi a revolução que mergulhou o país na crise: este, pelo contrário, já se encontrava atolado nela. Crise não só económica, mas simultaneamente política, militar e moral que 48 anos de ditadura fascista tinha legado ao país.

Pairando como mórbida névoa que tudo cobria, a guerra colonial acabaria por ferir de morte o próprio fascismo que a alimentara. O esforço de guerra, chegando a consumir mais de 40% do orçamento de Estado, sacrificando a expansão dos gastos sociais como educação, saúde, segurança social, travando o ritmo de investimento do Estado nas infra-estruturas do país, contribuía para o seu atraso. Esta militarização da sociedade portuguesa, teve, naturalmente outros custos: foram mais de 1 milhão e 200 mil os militares que estiveram nas campanhas africanas, o que representava cerca de 15% do total da população e que motivou o ferimento, a incapacitação permanente e a morte de milhares de jovens. 107 000 Refractários recusaram-se a cumprir até quatro anos de serviço militar, fugindo do país. Outros, em muito menor número, mas demonstrando uma invulgar coragem, passaram-se de armas nas mãos para o lado dos guerrilheiros.

Estas pressões eram sentidas não apenas pela base, mas também pelos escalões inferiores da oficialidade, que compartilhavam com as tropas os horrores do conflito colonial. Os jovens oficiais à saída da Academia Militar tinham pela frente várias comissões de guerra e uma adiada ascensão na carreira.

À medida que os anos passavam e a guerra se eternizava, diminuía a vocação castrense entre a juventude portuguesa, tendo o regime de recorrer a expedientes vários para assegurar o número de oficiais necessário ao prosseguimento das hostilidades. Quando em meados de 1973, o titular da pasta da Defesa julgou ter encontrado uma solução – a concessão de facilidades na integração e promoção no quadro permanente dos oficiais milicianos, de jovens que faziam “a tropa” – apenas soltou a mola que viria a derrubar o regime. Para os capitães do quadro permanente, saídos da Academia Militar, que tinham de conduzir a guerra no mato ao contrário das altas patentes que guerreavam detrás de uma secretária, verem-se assim preteridos foi a gota de água de um copo que vinha enchendo à medida que os anos passavam e a situação militar se degradava nas várias frentes.

Sinceramente enojados com a guerra, descontentes com a ausência de realismo político por parte do governo da ditadura – aquela era uma guerra destinada a ser perdida – temendo, mesmo, vir a ser responsabilizados pela derrota, os Capitães (e foram cerca de 300 os conspiradores, menos ainda os activamente envolvidos no golpe…) impulsionados por uma questão reivindicativa, puramente castrense, evoluíram muito rapidamente para a oposição e conspiração contra a guerra e o regime. Que tudo se tenha passado numa questão de meses, não foi obra do acaso: foi fruto do apodrecimento geral do regime, de um regime isolado que contra a juventude, os trabalhadores e o povo apenas podia manter-se pela violência. E de algum modo, foi também sintomático do grande giro à esquerda que o mundo conheceu nas décadas de 60 e 70. E quando as “baionetas se puseram a pensar” … o regime caiu com estrondo.

As massas entram em cena

No dia 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas (MFA) protagonizou um golpe de Estado que a população transformou imediatamente numa revolução. Com efeito, foi a mobilização popular que garantiu, na prática, na rua e nos dias seguintes, a instauração efetiva das liberdades políticas e sindicais, tal como as confraternizações em África dos soldados com os guerrilheiros traçaram, desde logo, um destino à guerra colonial. Em defesa do regime, praticamente não houve ninguém. Foi mesmo uma das revoluções mais pacíficas da história apenas manchada pelo sangue de quatro vítimas baleadas por PIDEs cercados no que foi o último ato de cobardia da polícia política. Dias depois, as manifestações do 1º de Maio contando com a participação de milhões de trabalhadores irmanados com soldados e marinheiros – só em Lisboa participaram cerca de um milhão – foram uma eloquente consagração da revolução.

Mas este clima de festa não podia durar muito tempo pois a unanimidade era só aparente.

Antes de mais: Os Capitães tinham dado o golpe, mas logo depois entregaram de bandeja o poder a uma Junta de generais. Afinal, numa óptica militar – e eles eram militares de carreira – os mais graduados elementos das Forças Armadas deveriam assumir o papel de chefia, até porque desse modo a revolução seria mais facilmente reconhecida interna e internacionalmente… E, nas suas origens, o MFA possuía, apenas, dois coronéis! Numa solução de compromisso com a tradicional hierarquia de comando, esta Junta deveria pôr em prática o programa dos Capitães sublevados, à frente da qual ficou o general Spínola (que gozava de grande prestígio como chefe militar na Guiné e, sobretudo, pela máquina de propaganda e autopromoção que tão bem organizara).

O Programa do MFA previa a dissolução das organizações fascistas e das suas instituições políticas, o fim da polícia política, a abolição da censura, amnistia dos presos políticos e o exercício efetivo da liberdade política, bem como a reorganização e depuração das Forças Armadas. Formar-se-ia um governo provisório que promoveria uma política económica e social antimonopolista “em defesa dos interesses da classe trabalhadora” e prepararia as eleições livres para uma Assembleia Constituinte incumbida de redigir o futuro texto constitucional.

A questão mais complexa era a colonial. O Programa do MFA reconhecia o direito à autodeterminação das colónias. Mesmo tida como uma “uma plataforma despida de radicalismos ideológicos” a discussão em torno do Programa do pronunciamento militar só estaria concluída na própria noite do triunfo e não sem ter sido suficientemente acesa:

“Está bem, os tanques ainda estão na rua. Vamos pô-los outra vez em marcha até esclarecermos o assunto”.

O relato da discussão dos Capitães com Spínola é suficientemente esclarecedor sobre as divergências que no próprio momento da vitória existiam. Spínola não podia aceitar uma tal formulação pois entrava em contradição com todas as suas convicções sobre o assunto tornadas públicas pouco antes no seu livro Portugal e o futuro, mas também com os interesses capitalistas que representava. Desejava um modelo federal e não a independência das colónias ou, pelo menos, uma independência adiada para fum futuro incerto. Por sua indicação, o direito à autodeterminação foi retirado do Programa.

Nomeado Presidente da República, possuindo largos poderes, Spínola começou por nomear oficiais da sua confiança para o comando das regiões militares, das colónias e das forças policiais. Enquanto procurava monopolizar os postos-chaves da estrutura político-militar, tentava neutralizar os seus potenciais oponentes através da participação minoritária destes em órgãos colegiais. Assim, nomeava os representantes do MFA para o Conselho de Estado e, numa ação, todavia mais espectacular, escolhia um governo provisório no qual ao lado de ministros liberais (ditos “independentes”), do Partido Socialista, participava também o Partido Comunista, de forma a responsabilizá-lo nas tarefas governativas. Spínola tinha assim os seus amigos por perto e os seus inimigos mais próximos ainda! Dispunha das pedras e montava o seu jogo. O passo seguinte foi limitar ao mínimo o saneamento das Forças Armadas (passou à reserva de 41 oficiais generais dos vários ramos, após 48 anos de ditadura e 13 de guerra colonial…), prosseguindo depois com a tentativa de diluir o MFA nas Forças Armadas: ordenou a todas as unidades militares que no MFA se deveriam incluir todos os oficiais, sargentos e soldados, exigindo que se respeitasse as hierarquias. Este era uma ameaça realmente grave para os Capitães que constituíam uma minoria no seio das Forças Armadas e estavam sob ameaça de se verem diluídos no seio da hierarquia militar.

Cada vez mais preteridos dos centros de decisão, os Capitães tentavam concentrar esforços no controlo operacional das companhias, alargando a sua influência através da sua aceitação por parte dos oficiais e militares de patente inferior. Isto enquanto mantinham a sua coordenação operacional e semiclandestina. Na sua ótica tinham sido eles quem arriscara a carreira e a vida, quem derrubara o regime e achavam que tinham por isso uma palavra a dizer sobre o futuro do país. O confronto com Spínola era inevitável

Todavia…. Insensível às manobras cortesãs do topo, o caudal dos acontecimentos colocava em palco dois problemas que condicionavam todos os demais: a agitação social e a guerra colonial. Logo após o 1º de Maio, o país conheceu a sua maior vaga de greves. Só nos distritos de Lisboa, Setúbal e Santarém se inventariou (à posteriori), durante esse mês, lutas laborais em 158 empresas abrangendo cerca de 200 000 trabalhadores – um número extraordinário, mas enormemente subavaliado pois ficaram de fora do estudo numerosas pequenas unidades produtivas e, claro, o resto do país.

Era uma coisa nunca vista, estas lutas marcadas pela descompressão do pós-25 de Abril, cujas reivindicações mais comuns eram os aumentos salariais, os subsídios de férias e de Natal, as reduções no horário laboral, alargamento das férias ou garantias conta os despedimentos, a “exigência de trabalho igual, salário igual”, mas também se exigiam saneamentos e reestruturações internas, bem como a participação dos trabalhadores na gestão das empresas. Greves, manifestações, ocupações e até sequestros dos administradores das empresas foram utilizados como armas deste movimento espontâneo e explosivo, dirigido muitas vezes por comissões de trabalhadores criadas ad hoc nas empresas. Tinham sido 48 anos de repressão e exploração, agora que a PIDE tinha desaparecido os trabalhadores aproveitavam a liberdade recém-conquistada para tomar para si aquilo que consideravam justo: maiores salários, condições de trabalho justas, saneamento dos bufos e fascistas.

É evidente que do ponto de vista dos capitalistas tudo isto era um pesadelo, mas o que é que podiam fazer? Não obstante os discursos de Spínola condenando “os atentados à hierarquia”, as greves e conflitos laborais sucediam-se e, ao cabo de algumas semanas, o movimento operário arrancava do governo e dos patrões conquistas históricas como os aumentos nominais de cerca de 30% dos salários, impondo o salário mínimo nacional que abrangeu cerca de 50% dos trabalhadores – o que para muitos significou um aumento das remunerações na casa dos 100%. Igualmente conquistados foram o mês de férias com subsídio de 100%, a redução das jornadas laborais e o subsídio de Natal para os pensionistas.

A par desta vaga grevista sem precedentes, a revolução revolvia as profundezas do país: populações inteiras de bairros de lata ocupavam casas; a toponímia das ruas e das pontes era alterada; as empregadas domésticas organizavam um sindicato; a liberdade de exibição enchia os cinemas com público ávido de assistir aos filmes proibidos; os estudantes liceais rebelavam-se contra os exames; os jornalistas da Rádio Renascença insurgiam-se contra as ingerências e censura da Igreja na informação transmitida; cantores de intervenção reuniam-se e propunham-se cantar a revolução cultural; agitava-se uma comissão pró-divórcio (o divórcio era proibido nos casamentos católicos); organizavam-se partidos políticos das mais variadas tendências; enfim, o movimento popular, fazia a sua revolução.

Esta indisciplina que aterrorizava políticos liberais, patrões, militares sisudos e até alguns resistentes antifascistas era, todavia, mais acentuada no Ultramar onde as tropas se recusavam, simplesmente, a combater, identificando automaticamente a queda do regime com a paz. Por todo o lado reinavam entre as tropas portuguesas o desejo de regressar, o ensejo de confraternizar com o “inimigo” e a reivindicação de se conceder o direito de autodeterminação aos povos africanos.

Em Moçambique, por exemplo, em finais de julho, o batalhão de Vila Paiva de Andrade comunicou ao seu Quartel-general que já tinha terminado a sua comissão e que se dirigia à Beira para daí embarcar de regresso a Portugal estando disposto a abrir fogo sobre quem tentasse detê-lo. Mas foi na Guiné (onde a guerra tinha sido mais dura) que estes sentimentos se expressaram melhor. Logo a 29 de abril mais de 1000 oficiais, sargentos e praças milicianos subscreveram um comunicado no qual exigiam a autodeterminação do povo guinéu e o estabelecimento de negociações com o PAIGC – único interlocutor válido para eles – com vista ao regresso de todos os soldados. Foram mais longe: criaram um Movimento Para a Paz logo batizado, pela hierarquia como “Movimento Pira-te à Pressa”. A força deste grupo acabaria por conduzir o MFA à integração de todos os escalões (sargentos e soldados) das Forças Armadas na sua estrutura, coisa que só aconteceria em Portugal após o 11 de março. O ambiente pró-independência era tão forte entre as tropas portuguesas que Carlos Fabião – nomeado por Spínola novo governador e, nessa altura, seu homem de confiança – fez precisamente o contrário do que lhe tinha sido incumbido, acelerando o processo para a independência da Guiné. Também no Ultramar, o ímpeto vindo de baixo era determinante.

Spínola contra o MFA

Spínola sempre fora um homem do regime, porém, mais lúcido que os chamados “ultras”, percebeu que era necessário encontrar uma solução política para uma guerra impossível de ganhar no terreno militar. Após o golpe, assumiu a Presidência da República com o assentimento do MFA e o júbilo dos grandes capitalistas: ali estava o novo “De Gaulle” que salvaria a situação, não deixando cair o poder na rua – não fora isso que lhe pedira Marcelo Caetano aquando da rendição no dia 25? Não estava nos seus planos (nos planos da burguesia portuguesa) simplesmente deixar a “África portuguesa” entregue aos africanos… Tinham planos neo-colonialistas de formação duma “federação lusíada”, espécie de Comonwealth à portuguesa, na qual os grandes grupos económicos continuariam, incólumes, com as suas posições e interesses em África… e em Portugal! Todavia, essas quimeras estavam sendo frustradas pela indisciplina no exército, pela luta dos povos africanos e pelo “caos social” – como a burguesia designava a luta dos trabalhadores.

Tentando evitar o inevitável, Spínola lançou-se num périplo pelo país e por várias unidades militares em busca de apoio. Receando a dinâmica de agitação social descontrolada e o triunfo da opinião favorável à independência das colónias ultramarinas exigiu, no início de Julho, um voto de confiança, um reforço dos poderes presidenciais e, com o apoio de Palma Carlos (o Primeiro-ministro que designara), levar o Conselho de Estado a decidir um referendo constitucional e a simultânea eleição por sufrágio universal do Presidente da República a decorrer num curto prazo ao contrário das eleições para a Constituinte que seriam adiadas por mais de 2 anos. Na prática, pretendia legitimar-se e que lhe fossem concedidos plenos poderes para conduzir o processo político na metrópole e nas colónias – no que era apoiada pela burguesia “liberal” do PPD de Sá Carneiro. O que ficou conhecido como “golpe Palma Carlos”, combatido pelo MFA, pela esquerda e rechaçado no Conselho de Estado, conduziu à renúncia do Primeiro-ministro e à remodelação do governo onde entravam agora em força os homens do MFA: Vasco Gonçalves (pela antiguidade e graduação) era o novo Primeiro-ministro, acompanhado por Melo Antunes, Vítor Alves e Vasco Gonçalves. No total, incluindo os spinolistas, eram oito os militares à frente das dezassete pastas ministeriais. Significativo!

Tinham passado apenas três meses desde o golpe, mas estava aberta a porta para o reconhecimento do direito à autodeterminação dos povos africanos, o que precipitava o fim de um império colonial com 500 anos. Spínola pretendeu ainda “salvar” Angola tentando conduzir pessoalmente a descolonização do território uma vez que, no início de setembro, já a Guiné tinha sido formalmente reconhecida como Estado independente e em Moçambique iniciara-se o processo de transferência de soberania com os acordos de Lusaka.

Falhado o golpe palaciano, procurou apelar à mobilização das reservas sociais da reacção: O 28 de Setembro nasceu, portanto, como tentativa de “segurar” Angola, ou pelo menos de entregá-la aos movimentos de libertação pró-capitalistas (UNITA e FNLA), mas também como meio de estancar a agitação social interna.

Durante o mês de agosto, Spínola visitara, numa óbvia tentativa de aliciamento, três unidades de força: o Regimento de Pára-quedistas de Tancos, os Comandos da Amadora e a Escola Prática de Infantaria de Mafra. Depois, através de homens da sua confiança induziu a difusão pelas Unidades Militares do chamado Documento Engrácia Antunes procurando a recolha de assinaturas para um manifesto que punha em causa a representatividade da Comissão Coordenadora do MFA ao mesmo tempo que defendia o respeito pela hierarquia – pois o MFA era um movimento minoritário de militares, não era o conjunto da instituição castrense…

Já no mês de setembro, respondendo ao apelo do general para que se manifestasse a “maioria silenciosa” do povo português, é convocada uma manifestação nacional para o dia 28. Financiada pela oligarquia empresarial, contando com apoios que iam desde grupúsculos de extrema-direita até ao PPD, a intentona tinha como objectivo provocar uma gigantesca provocação na Lisboa vermelha, permitindo a Spínola o pretexto para que, no meio da “anarquia”, pudesse proclamar o “Estado de Sítio” e assumir plenos poderes.

A manifestação foi detida na véspera quando, em resposta aos apelos lançados nas estações de Rádio, comunistas, socialistas e militantes de outras organizações de esquerda ergueram barricadas nos acessos a Lisboa e montaram postos de vigilância um pouco por todo o país. Nessas barragens foram sendo descobertas nas viaturas dos manifestantes mocas, caçadeiras e todo o tipo de armas com as quais a “maioria silenciosa” pretendia ruidosamente mostrar o seu protesto. De igual modo foram também descobertos verdadeiros arsenais nas sedes dos vários grupúsculos de extrema-direita – seriam por isso ilegalizados.

A mobilização operária e popular voltara a ser determinante, tal como a 25 de Abril. Com efeito, se a maior parte das unidades militares resistiu à sedição spinolista, o MFA não deixou por isso de viver horas de indefinição quando Otelo (já então chefe do COPCON) e Vasco Gonçalves se encontravam detidos no Palácio de Belém, enquanto as forças da PSP e da GNR tomavam posições. Privado nessas horas de uma efectiva direcção político-militar, o MFA foi a reboque do movimento popular que salvou o dia! O braço de ferro do 28 de setembro acabaria por saldar-se pela resignação do general Spínola do cargo de presidente da República e demissão dos seus seguidores da Junta de Salvação Nacional. Como efeito colateral, a política de saneamentos seria incrementada até ao final do ano envolvendo (finalmente!) algumas centenas de oficiais.

O MFA era agora chamado a dirigir o processo revolucionário sem os constrangimentos de Spínola e dos seus apoiantes civis e militares. Como o faria? Para responder é, antes demais, necessário recordar a caracterização marxista do Estado: O Estado é um instrumento de opressão duma classe por outra. Isto é o abc! Todavia, há outras letras no alfabeto: em certos períodos, quando a luta de classes se encontra num ponto de equilíbrio tal que, a classe dominante já não é capaz de continuar a governar com os velhos métodos, mas a classe historicamente ascendente ainda não está em condições de derrubá-la, a tendência do Estado de separar-se da sociedade e adquirir cada vez mais independência, agudiza-se. Dá-se um fenómeno que temos visto muitas vezes ao longo da história: o “cesarismo” no período de decadência da república romana, o regime da monarquia absoluta na última etapa do feudalismo e o “bonapartismo” na época contemporânea.

Em todas estas variantes, o Estado – o “executivo”- eleva-se acima da sociedade, emancipando-se de todo o tipo de controle, inclusive da classe dominante. O MFA tinha surgido como um movimento clandestino dentro dumas forças armadas do fascismo, que combatera uma guerra colonial durante 13 anos. Derrubaram o regime, mas não tinham regressado placidamente aos quartéis. Pelo contrário, faziam questão de assegurar-se que as razões profundas da sua rebelião –o fim da guerra e a descolonização – eram asseguradas pelo novo poder.

Porém, como protagonistas políticos, os militares eram não apenas chamados a influenciar o curso da revolução, mas eram eles próprios radicalizados pelo processo político, pela confraternização com as massas, não apenas nas grandes jornadas, mas também nas pequenas lutas do dia-a-dia. Após décadas de repressão sobre os trabalhadores, a polícia simplesmente “desapareceu”. Desde o os primeiros dias que nas ocupações, nas greves e nos protestos eram chamados não a PSP ou a GNR, mas os militares, fosse para “acalmar os ânimos” e manter a ordem, fosse para arbitrar os conflitos. Isto teve um efeito enorme sobre soldados e oficiais que, muitas vezes e ao longo dos 18 meses de revolução, contra a legalidade burguesa e contra a vontade da hierarquia militar ou as ordens do governo, se colocaram ao lado dos trabalhadores e das suas lutas.

Os militares do MFA, corpo de oficiais militares pequeno-burguês, radicalizado pela dinâmica da revolução, fora chamado pelas circunstâncias a ter uma intervenção política. Agiam por reação aos acontecimentos, não dispunham duma visão ideológica consistente, nem sequer duma grande coesão interna. Aspiravam a ter um papel próprio, independente, como o árbitro da revolução, acima das classes e dos conflitos. Seriam capazes?

A acção do IIIº Governo Provisório (pós 28 de setembro e já fruto do pleno domínio do MFA) foi caracterizada, precisamente, pelo ensejo de se equilibrar entre as classes em conflito: proletariado e burguesia. Por um lado, quis moralizar as relações económicas, salvar as empresas, garantir os níveis de emprego e o substancial das reformas sociais da revolução, o que significou um cada vez maior intervencionismo estatal; por outro, foi igualmente marcante a preocupação de não ultrapassar os limites do sistema capitalista.

Ora a situação era crítica! A crise económica mundial que principiara em 1973, combinando – pela primeira vez inflação e recessão – afectara duramente a economia portuguesa que, para mais, sentia o choque a descolonização e da consequente interrupção dos laços económicos e financeiros com as colónias. Como se não bastasse, as perturbações revolucionárias davam o seu contributo. Não eram apenas os conflitos laborais, a agitação e indisciplina laboral que afectavam a produtividade e produção de grande parte das empresas. Muitas delas entraram em ruptura, apanhadas no fogo cruzado da subida vertiginosa dos custos laborais (tinham-se habituado durante a ditadura a pagar baixíssimo salários a uma mão-de-obra sem direitos, evitando assim o investimento em tecnologias e modernização de métodos), perda dos mercados coloniais e, em alguns casos, nos controles administrativos impostos pelo Estado que não lhes permitiam subir os preços – embora a inflação fosse explosiva. Numerosos turistas, bem como investidores externos afastaram-se receosos da instabilidade interna, tal como caíram as exportações, dado que os compradores externos temiam dificuldades de entregas devido à instabilidade do país. E a tudo isto somava-se ainda a diminuição do envio das remessas dos emigrantes e a fuga de capitais para o estrangeiro,

Sobretudo e fundamentalmente, muitos empresários deixaram de investir ou permitiram até que se esgotasse a existência de mercadorias necessárias à laboração. As acusações da esquerda sobre a sabotagem económica dos proprietários não eram providas de fundamento: eram um meio que os capitalistas tinham para destabilizar o processo revolucionário. A situação económica do país estava à beira da rutura.

Com o afastamento de Spínola, cujos governos que tutelara se limitaram a navegar ao sabor dos acontecimentos, cabia agora ao MFA traçar uma rota para sair da crise e projectar o desenvolvimento. Mas que política económica poderia aplicar o MFA, movimento revolucionário militar pequeno-burguês (que viria mais tarde a partir-se em linhas de classe) e que tentava encontrar um ponto de equilíbrio?

Melo Antunes ficou encarregue de gizar um plano que quadrasse o ciclo e que, após muitas discussões e adiamentos, foi finalmente tornado público em finais de fevereiro de 75. Do Plano Melo Antunes constavam setenta medidas a curto prazo de carácter global e sectorial que iam desde a criação de um Conselho Nacional de Custo de Vida à instituição de um subsídio de desemprego. O plano também previa a nacionalização dos bancos emissores e a participação do Estado em 51% do capital das empresas dos principais sectores industriais (muitas delas em sérias dificuldades a necessitar de resgate…). O Plano previa um modelo de economia mista, com alguma intervenção estatal à semelhança com o que então existia na Europa Ocidental, estando muito longe de se assemelhar com qualquer coisa vagamente parecida a uma rutura com o capitalismo. Aliás, a CIP – Confederação da Indústria Portuguesa – prontamente concedeu o seu apoio ao Plano desde que o acesso ao financiamento por parte das empresas viesse a ser executado tal como era prometido.

Não obstante, num par de semanas, o Plano ter passado a letra-morta pela ação revolucionária das massas no 11 de março, aquando da sua apresentação, não apenas os patrões, mas também os partidos de esquerda saudaram o “Plano Melo Antunes”! Estranho consenso?

A teoria das “duas etapas”

Originalmente uma teoria “menchevique”, viria a ser mais tarde reciclada por Estaline e Dimitrov com grande sucesso para a burguesia. Segundo esta teoria, a tarefa central do movimento dos trabalhadores, numa revolução, é assegurar a democracia e, só depois desta se encontrar consolidada, lutar pelo socialismo.  Porém, a democracia não é um vago conceito que possa pairar acima das classes: o Estado e os regimes servem os interesses de uma determinada classe.

Que não restem dúvidas: é dever de qualquer revolucionário lutar pelos direitos de expressão e opinião, pela liberdade política e sindical da nossa classe. Mesmo falacioso (pois todos temos o direito de expressão, enquanto os grandes capitalistas têm o poder de decisão…), o regime democrático burguês é muito mais favorável ao desenvolvimento da luta dos trabalhadores do que o fascismo e a ditadura. Todavia, qual será a melhor forma de lutar contra o fascismo e contra as ameaças aos direitos democráticos dos trabalhadores? Aliarmo-nos àqueles burgueses que se proclamam democratas e liberais ou expropriarmos a burguesia financiadora e inspiradora das ditaduras e do fascismo? Refrear a luta dos trabalhadores em nome da “unidade democrática” ou impulsionar o movimento da única classe verdadeiramente democrática até ao fim? Conservar a propriedade privada sobre os grandes meios de produção ou lutar pela sua nacionalização sob controle operário, transferindo as alavancas do poder económico da burguesia para os trabalhadores?

Em Espanha em 1936, por exemplo, disseram-nos que primeiro havia que ganhar a guerra e só depois pensar na Revolução… Infelizmente, em Espanha, como em tantos outros sítios, a teoria das “duas etapas” resultou num desastre para a classe trabalhadora! E o que fizeram os partidos de esquerda na revolução portuguesa?

O papel dos partidos de esquerda

No dia 25 de Abril o regime fascista caiu sem que ninguém (à excepção de uma dezena de pides encurralados) estivesse na disposição de lutar por ele. Onde estava, sequer, essa grande “ameaça” fascista? A reacção não possuía, então, qualquer reserva social de apoio e até os partidos burgueses como o PPD e o CDS, constituídos “em cima do joelho”, viam-se obrigados a falar em “socialismo”!  

Contudo, ao invés de organizarem a tomada do poder pelos trabalhadores, quer o PS, quer o PCP a convite de Spínola entraram no governo provisório para, a par dos políticos burgueses e militares, contribuírem para a “construção da democracia”, isto é: foram convidados a abraçar uma política de colaboração de classes. Que as classes perseguiam fins diferentes tinha sido perceptível logo nas primeiras semanas da revolução, quando a primeira vaga de greves lançara o pânico entre os círculos dirigentes do país. Spínola apelava à ordem e à disciplina, mas, como isso não bastou, foi necessário recorrer aos partidos operários para disciplinarem a classe – tudo, claro, a bem da reconstrução e salvação da nação!

Ora, como o PS e o PCP estavam no governo e já não na oposição… tiveram (mais o PCP com uma maior e real influência junto da classe que o PS) de arregaçar mangas para pôr a funcionar esta aliança com os sectores “democráticos” da burguesia: e para não os hostilizar haveria que tentar diluir e moderar as exigências da classe trabalhadora, se não como se sentariam no mesmo gabinete ministerial partidos burgueses e proletários, sem a “concertação social” necessária? É por isso que naquela primeira vaga grevista de maio de 74 se sucederam as denúncias e comunicados dos dirigentes comunistas contra as greves que consideravam “selvagens” e que (afirmavam) faziam o jogo da reação, e pretendiam lançar a revolução no caos, apelando à moderação, à disciplina e à concertação.

Mas tantos os dirigentes comunistas como os socialistas, justificavam a sua política de aliança com os sectores “moderados” e “liberais” da burguesia, com o argumento de que, no momento actual dever-se-ia derrotar o fascismo e assegurar a democratização do país: primeiro a revolução democrática e só depois da revolução socialista. Com isto – diziam – seria possível assegurar o apoio das classes médias, isolando os fascistas. Só depois de consolidada a revolução “democrático-nacional” (na linguagem do PCP), se poderia avançar para uma política socialista – e isso era bem visível nos documentos programáticos para o momento actual que seriam aprovados nos primeiros congressos na legalidade destes dois partidos

Quer o PS, quer o PCP, dividiam o seu programa político entre o que poderíamos chamar de “propostas mínimas” e “propostas máximas”. As primeiras, “pragmáticas”, eram aquelas que os seus dirigentes entendiam ser realisticamente aplicáveis à situação portuguesa como forma de vencer a crise; as segundas, eram aquele conjunto de propostas como a expropriação dos grandes capitalistas, a socialização da sociedade portuguesa, rumo ao sonho de um mundo sem classes, sem exploradores e explorados, etc. que eram belas ideias, mas que ficavam, invariavelmente, sem hora nem dia marcados.

A retórica oficial de ambos os partidos, deixava implícito que só depois de um longo caminho se poderia lá chegar. A plataforma que o PCP aprovou no seu congresso para o momento actual, por exemplo, era disso espelho ao afirmar pretender “o controlo pelo Estado da actividade da banca privada” – mas não a sua nacionalização -; o “apoio e ajuda em crédito e outros estímulos às empresas, pequenas e grandes”; “fiscalização e controlo pelo Estado de empresas que se mostrem incapazes de cumprir a sua função”, o “reforço das empresas públicas”; a “requisição pelo Estado das terras incultas” e “forte tributação aos grandes proprietários e rendeiros absentistas” – mas não a reforma agrária. Estas, entre outras propostas avulso, eram os objetivos pelos quais se deveriam bater os militantes comunistas “no momento actual” – e em quase nada se diferenciavam das propostas de Melo Antunes, major do exército português.

Todavia, acossados pela crise, em risco de perder os postos de trabalho ou os ganhos sociais recém-conquistados, sem se poderem dar ao luxo de assistir à falência, quando não à destruição da empresa pelas mãos do próprio patrão, os trabalhadores tinham, face à crise e necessariamente, de procurar outras alternativas para o momento atual, pois não se podiam dar ao luxo de aguardar com “disciplina” e “sentido de Estado” o socialismo prometido para uma “manhã de nevoeiro”, algures no futuro.

Soluções diferentes eram, por isso, já ensaiadas por largos sectores das classes laboriosas. Com o passar dos meses, com o agravar da crise, também sob influência da propaganda (ainda que retórica) dos partidos de esquerda, cada vez mais vastos sectores das classes trabalhadoras abraçavam, de facto, as ideias socialistas e começavam a exigir uma transformação radical na ordem social até então vigente – só não podiam era esperar uma geração…

Forçados pelos despedimentos e pelo possível encerramento das empresas, os trabalhadores assumiam a sua gestão. Mais de 1000 entrarão em autogestão ao longo de 75. Sobretudo, era o apelo das nacionalizações ou outras formas de intervenção estatal que mais simpatias iam colhendo como remédio para a crise nas grandes empresas. De igual modo, as ocupações das herdades no Alentejo tornavam-se a resposta possível dos jornaleiros ao constante desrespeito dos empregadores pelos acordos assinados meses antes, como o demonstrava o percurso do Monte de Outeiro, a primeira herdade ocupada já em dezembro de 1974.

A ideia de medidas socializantes ganhava adeptos inclusive naqueles estratos que, pela sua posição privilegiada, estariam mais imunes ao vírus da revolução social: a 2 de janeiro de 75, a Assembleia-Geral do Sindicato dos Bancários em Lisboa exigia ao governo a nacionalização do sector de forma a “defender os interesses do povo português contra o imperialismo e os latifundiários”.

Desta forma, o novo surto grevista que precedeu o 11 de março foi marcado por características bem diferentes das que determinaram as lutas de maio/junho de 74. Não se tratava de obter mais ganhos, não tinham as lutas um carácter ofensivo, pois a grande preocupação dos trabalhadores era manter as conquistas que tinham alcançado, mas, e trata-se de um grande, mas, batalhões inteiros das classes trabalhadoras tinham chegado a essa formidável conclusão de que, para conseguirem manter os avanços sociais da revolução, esta tinha de ir até ao seu natural corolário, isto é: até à expropriação dos expropriadores! Não havia sequer um ano de experiência revolucionária, mas os trabalhadores portugueses aprendiam rapidamente…

É neste quadro, agravado pela polémica aprovação da Lei da Unicidade Sindical e o crescente temor da burguesia pela “sovietização” do país que se deve enquadrar o último golpe do general Spínola, em vésperas das eleições para a Assembleia Constituinte, que seguramente iria conceder uma expressiva vitória à esquerda: em Dezembro de 1974 tinha-se iniciado o recenseamento que conferiu o direito a voto a mais de 6 200 000 portugueses, o que constituía um salto enorme em relação aos 1 800 000 que um ano antes, em 1973, detinham esse direito!

Intentona para a esquerda, inventona para a direita. Na verdade o 11 de março foi uma pueril e desastrada tentativa de golpe de Estado. Informado por serviços secretos de países terceiros que se preparava a liquidação ou detenção de cerca de quinhentos militares e mil civis numa operação designada por “Matança da Páscoa”, a cargo do COPCON e da LUAR (organização política de inspiração guevarista), o general Spínola e seus acólitos, aliando-se aos sectores da extrema-direita na Força Aérea e ao grupo terrorista do ELP, decidiram antecipar-se ao suposto golpe. Suposto, pois, a dita lista da Matança da Páscoa nunca veio a público. É possível que tenha sido uma operação de contra-informação, uma forma dos concorrentes de Spínola na área da direita militar se virem livres do general ou puro e simples desnorte. A verdade é que os apoiantes do general estavam preparados para actuar desde finais de janeiro de 1975, mas agiram de forma totalmente incompetente.

Os golpistas nem sequer contavam com o apoio de unidades que poderiam ser decisivas. Limitaram-se a cercar e bombardear o Regimento de Artilharia Ligeira nº1, a tomar conta da GNR do Carmo e a neutralizar os emissores do Rádio Clube Português em Porto Alto. Algum tempo depois do início do ataque ao RAL1, os para-quedistas que o cercavam reconheciam ter caído num logro, uma vez que a sua ação carecia de cobertura do Estado-maior. Pressionados e cercados pelos populares que, à semelhança do 28 de setembro, saíram à rua em defesa da revolução – igualmente presentes no cerco ao Carmo, ocupando o aeródromo de Coimbra, etc. – acabaram os sitiantes por confraternizar com os sitiados esfumando-se o golpe. Uma vez mais, a acção popular e operária constituía um factor de peso para tombar a vitória para o campo da esquerda militar.

Boa parte dos oficiais das Forças Armadas via, desde há algum tempo com crescente preocupação, o rumo das coisas tal como ficara demonstrado, poucos dias antes do golpe, nas eleições para os Conselhos de Armas no Exército ganhas pelos conservadores, não se elegendo oficiais do MFA como Melo Antunes, Otelo ou Charais.

Todavia, chegada a hora da verdade, sentindo a força da classe trabalhadora, não se atreveu o oficialato (para frustração de Spínola) a lançar-se num Coup d’Etat. Do terceiro malogro spinolista resultou um morto (o soldado Luís do RAL 1 imortalizado por José Afonso), o afastamento dos spinolistas, a definitiva institucionalização do MFA, a viragem à esquerda do novo governo provisório (IV) e a adoção de medidas socializantes como as nacionalizações – empiricamente os sectores mais radicalizados da revolução portuguesa chegavam à conclusão de que a expropriação da burguesia era a melhor arma para defender as liberdades e os direitos da classe trabalhadora

Qual cereja no topo do bolo, a estrutura militar conhecia um novo abanão. É certo que a generalidade dos quadros permanentes continuava a ser conservadora, mas era bem expressivo o facto de que, o antigo corpo de oficiais do Estado-Maior do fascismo (com exceção do general Costa Gomes – o agora presidente da República), ter sido saneado a par da prisão e alguns dos mais importantes oligarcas do antigo regime.

As consequências do 11 de Março

Marx costumava dizer que, por vezes, a revolução necessita do “chicote” da contra-revolução, isto é: que numa situação de impasse, por vezes, em certas situações, as tentativas da burguesia em estancar a revolução e recuperar a iniciativa política apenas redundam numa maior radicalização do processo. Foi o que sucedeu em Portugal!

A revolução, após o 11 de março, acelerou o passo. Ao contrário do que os líderes de esquerda julgavam, os seus militantes e activistas, os trabalhadores, enfim, provaram que não era necessário esperar anos ou gerações, mas apenas algumas horas para tomar medidas sérias que estancassem a crise e desarmassem o grande capital que insistia em aventuras golpistas contra a revolução e o povo.

É verdade que, ao contrário do que habitualmente se papagueia, o país não foi estatizado em consequência do 11 de março. Primeiro, porque não se tocou no capital externo de modo a evitar represálias internacionais; depois, porque muitas empresas nacionais de dimensões consideráveis não foram expropriadas, sobretudo no Norte do país. Como resultado, embora Portugal ficasse com um dos sectores públicos de maior envergadura na Europa Ocidental, não se diferenciava muito de países como a França, a Itália, a Grã-Bretanha ou a Alemanha Federal no que respeita à participação do sector público no total da participação do Produto Interno Bruto, emprego ou formação bruta de capital. De resto, não existiu em momento nenhum uma planificação da atividade económica democraticamente decidida. As empresas públicas continuaram e funcionar num sistema de “livre concorrência”, segundo as regras da economia capitalista, sem coordenarem esforços, sem serem, sequer, geridas pelos próprios trabalhadores, mas por gestores nomeados.

No entanto, essas nacionalizações tinham sido tomadas em condições muito particulares. Eram resultado não de estudos e debates parlamentares, mas pelo contrário, o resultado óbvio da acção revolucionária das massas. Basta consultar os jornais da época, ver fotografias desse 11 de março de 75, para perceber que espontaneamente, sem um plano ou uma palavra de ordem central, os bancários decidiram no dia do golpe entrar em greve, ocupar os bancos, congelar a movimentação de capitais e afixar na fachada das dependências bancárias grandes cartazes proclamando “Banco do Povo” ao mesmo tempo que exigiam a nacionalização dos mesmos ou… simplesmente não os reabririam!

Eles sabiam bem, através da movimentação de capitais, quem sabotava, quem conspirava, quem tentava destruir a revolução… Não houve clemência ou indemnizações. Depois dos bancos foi a vez dos seguros e uma vez que a banca e os seguros possuíam ou tinham participação numa série de empresas básicas do país, a sua total expropriação tornou-se não só mais simples, como absolutamente lógica. Simultaneamente, a autogestão operária alastrava entre muitas pequenas e médias empresas; nos campos do Sul, num terço do país, a Reforma Agrária avançava pela pressão vinda de baixo, dos jornaleiros que, para salvarem empregos, alfaias agrícolas, gado e colheitas, não tinham outro remédio senão a ocupação das terras para travar a criminosa sabotagem dos latifundiários. Um pouco por todo o país, sobretudo na Lisboa Vermelha e no Sul do país, existiam centenas, milhares de comissões de trabalhadores e moradores e até de soldados sendo criadas para coordenar as lutas! Eram os embriões dos sovietes que não chegámos a ter pois nenhum partido (e Partido não significa grupúsculo extremista…) levantou como bandeira a unificação dos mesmos a nível local, regional e nacional, como órgãos não apenas de luta, mas de gestão dos quotidianos do trabalho e das atividades da classe trabalhadora; órgãos cuja direção estaria permanentemente sob jurisdição e controle da classe trabalhadora.

Mas se não existia um Estado operário que tipo de Estado existia? Uma vez mais, recapitulemos: apesar da multiplicidade de órgãos de decisão e de pressão, as decisões revolucionárias tinham sido tomadas na noite de 11 para 12 de março pelo órgão máximo do MFA: a sua Assembleia. O Estado burguês não chegara a ser derrubado para dar lugar à organização do proletariado enquanto classe e Portugal vivia um regime de transição (não se sabia na altura ainda muito bem para quê e para onde…) tutelado pelos militares que tinham dado um golpe de Estado em 25 de Abril

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E vejamos: foram militares os dois Presidentes da República que funcionavam como árbitros supremos, presidindo à Junta de Salvação Nacional (apenas composta por militares) e ao Conselho de Estado cujo um terço dos membros nomeava, sendo os outros dois terços ocupados por militares também. No Iº Governo Provisório apenas um militar se sentou nas reuniões do executivo, mas depois do IIº Governo nunca mais deixaram de estar lá em força. Para além disso, cedo se evidenciou o controle militar na área governativa através da nomeação de oficiais como delegados nos diversos ministérios. Foram os agentes da descolonização, tutelaram indirectamente a imprensa através de uma comissão ad hoc por eles criada, tal como definiram políticas sociais e económicas. Também no sistema judicial os militares intervieram através da invasão e usurpação de competências aos tribunais civis. Estavam em toda a parte, até no Festival da Canção que ganharam em 1975!

Todavia, todo esse poder era bastante precário porque balançando entre as classes, equilibrando-se entre os grupos e correntes de opinião, os militares do MFA tentavam encontrar um ponto de apoio em que se apoiar. Daí que Mário Soares afirmasse que eram “as movimentações de rua e as pressões sociais sobre os militares o que mais contava”. O MFA era tributário das massas porque eram seu aliado em relação ao conjunto da instituição militar, na qual não podiam agir de mãos livres. Porquê? Como confessaria Rosa Coutinho, “o MFA nas suas épocas mais áureas não foi mais que 15 ou 20% dos oficiais profissionais”.

Os militares, mesmo os mais radicais, julgavam que o socialismo era um objectivo a ser atingido dali a muitos anos. Com o 11 de março, mudaram logo as agulhas. Tinha sido a carreira, para não dizer a vida, deles que estivera em jogo e, mais uma vez, era evidente a cumplicidade dos grandes capitalistas com os golpistas. Fartos de arriscarem a cabeça no cepo, vendo a reacção e as exigências da classe trabalhadora no momento da verdade, o MFA – cuja legitimidade lhe era conferida pelo seu papel libertador no 25 de Abril e na sua capacidade de entender as aspirações do povo – tomou, então, as medidas socializantes na célebre “assembleia selvagem” do MFA. Porém, não foram só os oficiais radicais, mas também os moderados que estiveram na tomada dessas decisões, tal como durante a Revolução Francesa, não foi apenas a Montanha a votar o terror e o tabelamento do pão na Convenção…

Contudo, os oficiais não estavam na disposição de simplesmente abdicar do mando em favor da classe trabalhadora. Afinal (lembremo-nos) eles tinham feito 0 25 de Abril e era, portanto, consideravam de elementar justiça que tivessem uma palavra a dizer sobre o seu futuro. Ora as eleições para a Constituinte constituiriam sempre, independentemente do resultado, uma ameaça ao predomínio militar pois passaria a existir um órgão de legitimidade alternativa ao prestígio dos Capitães. Isto seria tanto mais verdadeiro se as eleições revelassem um quadro político diferente da composição ideológica do movimento.

Precisamente porque essa retaguarda não estava segura é que os oficiais (sobretudo os mais radicais) forçaram a aprovação do Pacto MFA-Partido. Este pacto assegurava que a futura Constituição ratificasse as políticas revolucionárias e garantisse a permanência da Assembleia do MFA e do Conselho da Revolução como órgãos de soberania por um período de transição de três a cinco anos. O Presidente da República seria ainda eleito por um colégio eleitoral a ser constituído pela Assembleia do MFA e a futura Assembleia legislativa. A discussão deste Pacto tinha sido iniciada em finais de fevereiro, o 11 de março acabaria por impô-lo como moeda de troca para as eleições. Mesmo depois dos saneamentos à esquerda no pós-25 de novembro, a revisão do Pacto continuou a garantir à instituição militar a autonomia legislativa e administrativa através do Conselho da Revolução e do Conselho de Chefes de Estado-Maior, cabendo ainda ao primeiro dos órgãos ser a sede de garantia e fiscalização constitucional.

No seio das Forças Armadas, o MFA cuja existência inicialmente era puramente informal, começara a cristalizar uma orgânica interna após o 28 de setembro, mas depois do 11 de março a institucionalização do Movimento tornou-se completa: na cúpula o Conselho da Revolução, órgão executivo político-militar eleito pela Assembleia do MFA, agora com 240 membros dos três ramos que incluíam, de forma minoritária, sargentos e praças. Esta Assembleia não apenas deliberava sobre assuntos militares como podia ter uma palavra a dizer sobre assuntos do foro civil, assentava na eleição de delegados provenientes das comissões que emergiram das Unidades e Quartéis por todo o país. Na prática, nenhuma decisão importante era tomava sem o aval dos militares. Numa revolução, todavia, os acontecimentos não seguem, propriamente, os planos discutidos em gabinetes ministeriais ou traçados em quartéis-generais: têm uma dinâmica própria.

A surpresa eleitoral

As eleições à Assembleia Constituinte decorreram um ano depois da revolução: 25 de Abril de 75. Não obstante o apelo ao voto em branco pelos radicais do MFA e a comparação (pela 5ª Divisão) das eleições à lotaria, o escrutínio foi esmagador: 91,2% dos votantes tinha depositado o seu boletim nas urnas. Os resultados eleitorais confirmaram também o que estes mais temiam: o PS foi o grande vencedor com 37,9% dos votos, seguido pelo PPD com 26,4% e só depois vinha o PCP com 12,5% ocupando o CDS o quarto lugar com 7,6%, seguido pelo MDP com 4,5%. A extrema-esquerda, no seu conjunto não somava 4% dos votos.

Os resultados mostravam que mesmo na “Lisboa vermelha” os socialistas venciam nos dois distritos adjacentes ao Tejo (Lisboa e Setúbal). Simultaneamente mostravam uma profunda clivagem entre um Norte conservador e um Sul revolucionário, mas a esquerda (PS + PCP + MDP + extrema-esquerda) vencia por ampla margem: cerca de dois terços dos votos se somarmos os votos em branco no MFA.

A esquerda era, pois, a grande beneficiada pelo escrutínio eleitoral. Até aqui nenhuma surpresa, pois a direita tinha sido derrubada no 25 de Abril após 48 anos de poder. No dia 26 de abril, de resto, nem sequer existiam partidos de direita. A burguesia, à pressa, reuniu os cacos e tentou construir os seus apêndices políticos de novo, mas este “novo” cheirava bastante a mofo, do velho que era. Na extrema-direita surgiram nos meses seguintes uma constelação de grupúsculos constituídos por antigos legionários e fascistas de sempre, financiados pelo grande capital e interesses colonialistas. Após o 28 de setembro foram todos dissolvidos pelo MFA e postos fora da lei. Apenas um se salvou temporariamente: o Partido Democrata Cristão que seria impedido de concorrer às eleições constituintes pelo facto do seu líder – o Major Sanches Osório – ter sido implicado no 11 de março.

As organizações políticas, mais consistente na área da direita eram, sem dúvida, o CDS e o PPD. O primeiro desses partidos era o mais conservador, reunia algum pessoal político que tinha servido o fascismo, assumia-se como democrata cristão, mas era o elemento aglutinador da reacção na sua actuação dentro dos limites legais.

Já o PPD constituía o clássico partido da burguesia liberal, tendo sido fundado pelos membros da chamada “ala liberal”, isto é, um grupo de deputados eleitos nas listas do partido fascista – União Nacional – nas eleições de 1969 e que mais tarde se demitiram por concluírem que era impossível reformar o regime por dentro. Eram os líderes do PPD advogados, empresários, profissionais liberais e constituíam o escol político da burguesia. Inteligentemente defendiam a democracia e, até – pasme-se – afirmavam lutar por um “socialismo humanista”, tentando apresentar-se como uma formação interclassista. As dificuldades de afirmação da direita, realmente, eram enormes e facilmente perceptíveis pela linguagem “esquerdista” que eram obrigados a utilizar.

Todavia, isso não era suficiente para iludir as massas trabalhadoras. Como o demonstravam os resultados eleitorais, os partidos burgueses conseguiam apoios sobretudo entre os estratos sociais intermédios da população, com destaque para os camponeses do Centro e Norte do país, populações politicamente atrasadas, ainda sujeitas a um sistema de caciques e coações.

A esquerda vencera as eleições, mas dentro da esquerda, as diferenças políticas eram tão grandes como as distâncias eleitorais. Antes de mais, saltava à vista o fraco resultado do PCP (12,5%). No início da revolução, o Partido Comunista possuía todos os trunfos: o justo prestígio da luta antifascista, uma organização com alguns milhares de militantes, quadros experientes e uma estrutura nacional. Com efeito, era a única força que, com propriedade, se podia considerar um partido organizado. O PCP hegemonizava o movimento sindical, contava com sólidos apoios nos órgãos de comunicação social, cumplicidades várias no seio das Forças Armadas (possuía uma organização militar clandestina) e, através da CDE, exercia uma grande influência nos municípios entretanto saneados dos seus antigos gerentes fascistas. O fraco resultado obtido não se podia explicar por uma eventual insuficiente maturidade política das massas – os trabalhadores portugueses já tinham então derrotado dois golpes fascistas e amplamente começado a expropriação dos expropriadores. Que mais se poderia pedir à classe trabalhadora? Erros próprios – analisados mais à frente – e a perda da autoridade e prestígio políticos do estalinismo condenaram o PCP a uma situação de subalternidade, precisamente na situação inversa em que os PCs da Itália e da França tinham ficado após a libertação dos seus respetivos países, isto é: como as forças hegemónicas da esquerda.

Quanto ao Partido Socialista, fora fundado apenas um ano antes, num congresso realizado na Alemanha Federal. Contava, de início, com apenas escassas centenas de militantes. Era um partido sem estrutura, sem quadros e sem experiência e tinha apenas alguns prestigiados militantes, notabilizados na resistência à ditadura, como Mário Soares. No início da revolução, sem “responsabilidades” no plano sindical e procurando ganhar apoio junto dos trabalhadores, aparecia amiúde à esquerda do PCP, agitando um programa bastante radical e, em palavras… defendiam a autogestão operária, as nacionalizações e a planificação económica como os grandes pilares do socialismo a par da defesa do pluralismo político, isto é, a das liberdades políticas.

Finalmente, a extrema-esquerda era numericamente fraca e bastante fragmentada, destacando-se pelo radicalismo das suas ações e táticas, sobretudo pelo seu sectarismo tenaz. O grande óbice destas organizações – se excluirmos um crónico triunfalismo…. – Era, precisamente, o sectarismo para com os grandes partidos operários: PS e PCP. Neles, estas pequenas forças apenas viam joguetes da burguesia ou do social-fascismo, sem perceberem que estes dois partidos hegemonizavam o movimento operário e que a maioria do proletariado sentia serem essas as duas grandes alternativas políticas que tinha à sua disposição. De modo bastante eloquente, refira-se que nos finais de 1975 o PCP e o PS possuíam, respetivamente, 100.000 e 60.000 militantes.

O confronto entre o Partido Socialista e o Partido Comunista

No início da revolução PS e PCP foram chamados ao governo provisório em coligação com o PPD, sob a “asa protetora” de Spínola que apelara às boas vontades de todos os partidos “democráticos” para assumirem o seu papel “responsável” na construção dum “governo de salvação nacional”

Este governo viu-se imediatamente a braços com uma insubordinação generalizada entre a tropa estacionada nas colónias e o “caos social” da metrópole provocado pelos trabalhadores em luta sem “paciência ou disciplina revolucionárias” para, após 48 anos de opressão fascista, aspirar apenas a reivindicações realistas. Mas “realistas” para quem? Para a burguesia e para o governo de “união sagrada” ungido pelo general Spínola!

Ora nem o PS nem o PCP tinham sido chamados ao governo provisório por “amor à democracia”. Estavam lá (em ampla minoria…) para serem responsabilizados pelas políticas do governo provisório, para controlarem o “caos social” e controlarem o “irrealismo” do proletariado.

Ora, tendo apenas o PCP uma real influência junto da classe no início da revolução, foi sobretudo este partido a ter de arcar com a tarefa de explicar aos trabalhadores que tinham de moderar as reivindicações, para não afundar a economia e assustar os burgueses liberais que se passariam, de armas e bagagens, para os braços da reação fascista. Já a direção do PS, sem vínculos orgânicos à classe trabalhadora no início do processo revolucionário, estava com mãos livres para, com oportunismo, ultrapassar pela esquerda o PCP (ao menos a nível da retórica).

Um exemplo desta dinâmica, foi a greve dos CTT (junho de 74) à qual o PCP se opôs e que a direcção do PS apoiou para cair em boas graças dos trabalhadores – ainda que bastante criticado pelos seus parceiros de governo. Na Estação Central do Terreiro do Paço estaria afixado durante meses um cartaz dos trabalhadores que afirmava “CTT: 70 mil votos para o PS”.

Poderíamos citar bastantes exemplos como este. Porém, o caso mais flagrante terá sido a proposta da Lei da Greve apresentada pelo IIº governo provisório (já liderado por Vasco Gonçalves) em agosto de 74. Como não diminuíssem a crise económica e o “caos social”, foi aprovada pelo governo uma Lei da greve que proibia as greves políticas, de solidariedade e interprofissionais, que impunha um pré-aviso de 37 (!) dias e permitia, na prática, o lock-out dos patrões. Para mais, manifestações só se poderiam realizar aos dias úteis depois das 19 horas e aos sábados depois das 13 horas.

Essa proposta era uma óbvia provocação à classe trabalhadora, um ataque aos seus direitos mais elementares, mas as organizações dos trabalhadores que participavam no governo provisório foram chamadas à sua defesa… afinal era por isso que tinham sido convidadas a fazer parte do executivo… Assim fez o PCP apenas para descobrir que os socialistas criticavam publicamente a proposta que deveriam defender, vendo-se, por isso, o PCP sozinho, diante da classe trabalhadora, a defender a Lei da Greve mais restritiva da Europa Ocidental (com as óbvias excepções da Espanha franquista e da Grécia dos Coronéis…).

O 28 de Setembro acabaria por atirar essa lei para o caixote do lixo da história, tal como meses mais tarde, o 11 de março faria o mesmo com o já citado Plano Melo Antunes.

As polémicas e divergências entre PS e PCP continuariam seguindo-se a que envolveu a legalização do MDP como partido político. Durante a ditadura, o MDP tinha sido uma estrutura unitária que permitira à oposição – às várias correntes da oposição – uma actuação unitária dentro dos limites legais que a própria ditadura estabelecia, sendo que a ditadura desrespeitava as suas próprias regras. Com a legalização dos partidos, após o 25 de Abril, muita gente esperou que o MDP se diluísse uma vez que parte muito considerável dos seus membros militava, simultaneamente, em organizações até então clandestinas. Não foi isso que aconteceu e, no meio de uma chuva de acusações do PS ao PCP por “estar a instrumentalizar uma estrutura que pertencera a toda a oposição”, o MDP transformou-se num partido político em pé de igualdade com os outros. No mar de críticas subjacente, apenas o PCP saudou fraternalmente o novo partido que seria nos anos seguintes o seu mais fiel aliado.

Tudo isto foram, ainda assim, apenas nuvens mais carregadas antecedendo a borrasca que cairia de seguida. Essa tempestade dividiu o país em dois, entre os que defendiam e se opunham à Lei da Unicidade Sindical que consagrava a obrigatoriedade de uma Central Sindical única. Enquanto o PCP e os diversos grupos de extrema-esquerda defendiam o princípio da “unicidade”, isto é, a existência de uma única Central Sindical consagrada legalmente, o PS protestou contra lei argumentando que “se por via de um decreto se impõe um sindicato único e uma confederação sindical única, pela mesma lógica amanhã se poderá impor um partido único, uma imprensa única, uma lista única de candidatos à Assembleia Legislativa, etc., etc.” Por entre manifestações e contra-manifestações, o MFA, em janeiro de 1975, aprovaria a polémica lei que levou o PS a ponderar seriamente a saída do governo.

Mas só depois das eleições é que a ruptura se consumaria. Até ao acto eleitoral vigorava uma legitimidade revolucionária, legitimidade revolucionária do MFA, dos bancários que ocupavam as dependências, dos jornaleiros que ocupavam as terras ou das populações dos bairros de lata que ocupavam bairros construídos para GNRs aposentados. Depois das eleições à Constituinte, já não era bem assim, a par da legitimidade revolucionária, da acção directa das massas construindo e defendendo a revolução, emergia uma legitimidade eleitoral que colocava em cima da mesa a necessidade de se respeitar a vontade expressa da maioria.

Para o Conselho da Revolução os resultados eleitorais expressavam, “a firme determinação do povo português em caminhar para o socialismo”, mas isso pressupunha a disponibilidade de comunistas e socialistas se aliarem nesse propósito.

Ora nem a vontade de unidade na ação, nem a determinação de lutar pelo socialismo existiam verdadeiramente nas lideranças destes dois partidos. Na verdade, a divisão, crispação e sectarismo alastravam paulatinamente das direções para as bases dos dois partidos:  logo após as eleições para a Constituinte, no 1º de Maio de 75, militantes socialistas e comunistas chegaram a confrontar-se fisicamente, no que contrastava vivamente com o clima de unidade e festa vivido um ano antes.

O conflito já não se resumia a diferenças sobre a pertinência ou justiça desta ou daquela greve, desta ou daquela lei proposta. Resultava já do facto do PS – como partido mais votado – entender que deveria ter uma influência nos órgãos de poder equivalente à sua expressão eleitoral, enquanto o PCP via essa pretensão como uma séria ameaça aos seus propósitos: pois afinal… apenas obtivera 12,5 % da votação!

Quando a 19 de maio a comissão de trabalhadores do República expulsava a direcção do jornal afecta ao PS, sob acusação de prestarem um mau serviço à revolução, a crise precipitou-se. Os trabalhadores do República eram não do PCP, mas da extrema-esquerda maoista. Todavia, para os líderes do PS, não seria um pormenor que iria estragar uma boa narrativa para poder combater os comunistas.

Os órgãos de comunicação social eram fundamentais para a mobilização popular tal como tinha ficado claro nas jornadas revolucionárias do 25 de Abril, 28 de setembro e 11 de março. Naquela altura, os jornalistas eram sociologicamente uma classe profissional à esquerda e num Média após outro, colectivos de jornalistas flectiram as linhas editoriais para a esquerda. Nesse processo, o PCP tinha saído bastante beneficiado conseguindo sólidas posições em importantes jornais diários, na Emissora Nacional e na RTP. Verdade seja dita que havia um maior pluralismo informativo na altura do que nos dias de hoje, na medida em que todas as importantes correntes de opinião tinham, pelo menos, um nicho informativo importante.

O argumento do PS era bastante simples: se era o partido mais votado, não deveria ter mais ministros, mais jornais, mais peso no seio dos sindicatos, do MFA? No caso do República, os socialistas simplesmente argumentavam que, sendo o partido mais votado pela classe trabalhadora não podia ser silenciado, ou ter acesso vedado à imprensa! O PCP, acusado de ter “roubado” o jornal e estando completamente inocente desse acontecimento não tinha como refutar os argumentos socialistas, porque tinha feito no passado – de forma muito mais subtil e eficaz – o mesmo que a extrema-esquerda maoista agora fazia canhestramente: ganhar uma maioria colegial em determinado órgão de imprensa e em seguida mudar-lhe a linha editorial!

O problema é que, se os trabalhadores deveriam ser apoiados na sua luta pelo controle dos órgãos de comunicação social em que trabalhavam, não podiam, esses mesmos trabalhadores, censurar aquele que as eleições tinham demonstrado ser o principal partido da classe trabalhadora. Mesmo que as eleições sejam uma fotografia estática e distorcida da realidade num determinado momento perante o filme dinâmico e movimentado da realidade. O acesso à imprensa por parte dos trabalhadores e das suas organizações deveria ser livre e de acordo com a sua representatividade. Mas perdendo o República, o PS ganhava a “Fonte Luminosa” – a mais famosa manifestação do PS.

Longe de calarem “as mentiras do PS”, os trabalhadores do República davam-lhes uma projeção muito maior. Contra a retórica esquerdista, os socialistas respondiam nas páginas do seu jornal oficial citando Karl Marx e um seu artigo sobre censura e liberdade de imprensa na Prússia!

O que o sectarismo não permitia dar a entender é que, para além do círculo social-democrata dos dirigentes do PS, para lá do reformismo político das cúpulas, das amizades íntimas com personalidades políticas do exterior que forneciam apoio moral e sobretudo material – são hoje por demais conhecidas as ligações ao embaixador americano Carlucci, futuro diretor da CIA… existia também todo um PS proletário e popular – senão como pudera o PS ganhar as eleições? – e que era convocado pelo partido para o 1º de Maio de 1975 através das palavras de ordem como “controlo operário” e “autogestão”… E note-se (facto muito pouco citado e conhecido) que a oposição de esquerda, à então direção de Mário Soares, recolhera cerca de 40% dos votos dos delegados ao congresso do partido socialista em dezembro de 1974!

A crise do República arrastou-se durante semanas, conduzindo à saída do PS do governo em julho de 1975, logo seguido do PPD. O IVº Governo caía, mas consenso sobre a formação do Vº é que não havia! Tanto o PS como o PPD pretendiam ver a distribuição de pastas mais de acordo com o score eleitoral de cada partido. O impasse estava instalado.

A divisão dos trabalhadores e a contraofensiva da burguesia

Até então, a classe trabalhadora tinha-se mantido unida nos mais importantes momentos da revolução: basta lembrar as jornadas do 28 de setembro e 11 de março. Agora, porém, a classe surgia politicamente dividida: a crescente hostilidade entre socialistas e comunistas condenava a classe trabalhadora à desorientação e inacção e, por sua vez, o campo adversário – a burguesia – passava a ter condições para retomar a iniciativa.

Essa divisão foi como um sinal de alerta para toda a reacção. Com o movimento operário partido em dois blocos, todos os que se opunham à revolução, mas não tinham tido coragem e força para se manifestar contra o processo revolucionário começaram a emergir.

Os líderes socialistas, ancoraram-se na defesa das liberdades políticas. Afinal era necessário para vencer o perigo da “ditadura” comunista, que exemplificavam não apenas com os vários episódios de tentativa de controlo burocrático do movimento operário, mas também e sobretudo pelo total seguidismo acrítico e apologia do PCP em relação à União Soviética – fora até o único partido comunista da Europa Ocidental a apoiar inequivocamente a invasão soviética da Checoslováquia meia dúzia de anos antes…

Os líderes socialistas não tiverem rebuço de estabelecer qualquer tipo de aliança na sua luta contra o PCP, podendo-se ver nos seus comícios desde a extrema-esquerda maoista (em luta contra o perigo “social-fascista”) até a direita mais revanchista. O PS anatemizava os comunistas e estes respondiam na mesma moeda acusando-os de golpistas, comparando o famoso comício socialista da Fonte Luminosa no verão de 75 a um novo 28 de setembro, ao tempo que apelaram ao levantamento de barricadas às portas de Lisboa nas vésperas desse comício socialista.

O isolamento do PCP deu alento à reacção: em julho, iniciou-se uma vaga de assaltos às sedes comunistas e da Intersindical no Centro e, sobretudo, no Norte do país. Durante os meses seguintes, o terrorismo da extrema-direita, auxiliado pela Igreja Católica e com ramificações aos “partidos democráticos”, colocou o país a ferro e fogo, eliminando, na prática, a liberdade de se ser comunista em várias zonas do país. Nesse mesmo mês, o PS agitando a bandeira da liberdade e pregando a defesa da democracia, com os seus comícios no Porto e em Lisboa demonstrava que o PCP perdera o controlo da rua, ao tempo que ignorava os ataques antidemocráticos contra um partido cujas sedes estavam a ser atacadas, invadidas, pilhadas e incendiadas.

Ora, foi nesta atmosfera carregada de terrível sectarismo, que a burguesia recuperou o fôlego e lançou-se na contra-ofensiva ao mesmo tempo que o MFA dava mostras da mais completa incapacidade para controlar os acontecimentos. Ficava claro que a tropa não podia – não queria – defender o PCP quando as suas sedes eram atacadas. E logo o PCP sempre apoiara o MFA, sempre defendera a “Aliança Povo-MFA” que outra coisa não significava senão sacrificar a independência política do proletariado aos acordos firmados com os oficiais do MFA – corpo de oficiais pequeno-burgueses das Forças Armadas! Mas como pequeno-burgueses que eram, não podiam, enquanto corpo de oficiais, conduzir a revolução, mesmo se muitos deles a título individual se considerassem genuinamente revolucionários!

 Quando se chegou, na revolução, ao movimento decisivo da luta de classes, o MFA naturalmente partiu-se em linhas de classe: uns tombaram titubeantes para o lado do proletariado, mas a maioria tombou decididamente para o lado da grande burguesia!

Até aqui, o MFA tinha-se apoiado no movimento popular para resistir às golpadas reaccionárias e para adoptar as medidas progressistas que tinham mudado o país: descolonização, reformas sociais, eleições e até nacionalizações. Mas o MFA não podia ficar imune aos conflitos que estavam a dividir o país.

Alguns setores pequeno-burgueses tinham ficado a perder com o início do processo revolucionário, ou pelo menos temiam seriamente ver-se prejudicados. Quinze meses depois, com a sabotagem e fuga de capitais, apertando-se um cerco económico e financeiro, durante a mais grave recessão económica mundial do pós-guerra e, necessariamente, com a desorganização e instabilidade provocadas pela agitação social, pela descolonização e pelas mudanças revolucionárias, a situação económica do país tinha de estar (não obstante os ganhos sociais) necessariamente, pior do que no dia 24 de Abril de 1974, pois apesar das nacionalizações e da retórica socialista, a economia portuguesa continuava a ter uma natureza capitalista. E o capitalismo português estava numa crise profunda.

A situação económica não melhorara para os pequenos agricultores do Centro e do Norte do país, para os pequenos homens de negócios ou para os profissionais liberais… pior, muito pior, estavam as centenas de milhares que, entretanto, regressavam das colónias, agora tornadas independentes. Para muitos, os últimos quinze meses de revolução apenas tinham sido um enorme cortejo de caos e confusão que ameaçara ou mesmo destruíra os seus modos de vida e expectativas. A contrarrevolução tinha finalmente uma base de apoio.

Todos estavam contra todos e quase todos estavam contra o MFA! Esta ruptura política não podia deixar de romper a unidade formal que, todavia, continuava a existir no seio do Movimento dos Capitães. Os sectores próximos do PCP tinham mantido desde o 11 de março, o controle das estruturas do MFA com a anuência dos moderados.

Porém, estes últimos, verificando mudanças na correlação de forças entre as classes e a divisão política que brotara no seio do proletariado – que o condenava à inação -, rapidamente se opuseram ao papel vanguardista assumido pelos “gonçalvistas” (sector próximo do primeiro-ministro Vasco Gonçalves), defendendo também eles (tal como o PS e o PPD…) uma democracia pluralista ao mesmo tempo que consideravam imprescindível uma base social de apoio mais ampla do que aquela proporcionada pelo PCP, para que o MFA não fosse levado na torrente incontrolável da revolução. Apelavam ainda à disciplina e à hierarquia, preocupados como estavam com a contínua insubordinação que ameaçava a sua posição de “oficiais revolucionários”.

Não pode, pois, surpreender a aprovação duma primeira moção exigindo a demissão de Vasco Gonçalves (próximo do PCP) numa reunião dos delegados da Arma de Infantaria do Exército, em finais de julho. Poucos dias depois, já em agosto, os moderados expuseram os seus pontos de vista no célebre “Documento dos Nove”, sendo que este foi assinado por 80% dos oficiais do Exército cansados de tanto “anarco-populismo”. A aliança táctica dos moderados com o grupo de Otelo, oficiais esquerdistas muito críticos das manobras táticas do PCP e favorável a uma democracia “basista”, favoreceu a contra-ofensiva pois o campo radical surgia agora dividido – para mais!

Neste cenário, o Vº Governo que o Presidente Costa Gomes ainda encarregou Vasco Gonçalves de formar, só podia ser de transição para um outro executivo que contasse com mais apoios, para lá do PCP. De facto, tão grande isolamento não deu um mês de vida ao mais provisório dos governos pós-25 de Abril.

Já depois da saída de Vasco Gonçalves do cargo de Primeiro-ministro, assistiu-se, nos primeiros dias de setembro de 1975, a uma profunda recomposição dos órgãos do MFA, na sequência das Assembleias do Exército e da Força Aérea. No dia 5, em Tancos, A Assembleia do MFA ratificou as decisões tomadas nas Assembleias dos dois ramos, isolando a Armada e conferindo ao Conselho da Revolução uma maioria clara de moderados. Esta foi a última reunião da Assembleia do MFA e, de certa maneira, marcou o fim do Movimento.

O 25 de Novembro e o fim da revolução

Uma enorme viragem tinha ocorrido no seio das Forças Armadas. A conquista de uma maioria colegial no seio do MFA por parte dos moderados agrupados em torno de Melo Antunes e dos Nove era importante, mas, todavia, insuficiente. Os radicais estavam agora em +minoria, mas persistiam ativos e tinham os seus bastiões: a Armada e o COPCON com as suas unidades Operacionais de Lisboa.

O VIº governo que se formou como consequência de uma nova correlação de forças, voltava a ser um gabinete de coligação com a presença das três principais forças políticas repartindo, desta vez, as pastas consoante proporção da influência eleitoral de cada partido. O PS e o PPD eram dominantes e o PCP fazia-se representar com um ministro, tendo um pé dentro do governo e outro em cada manifestação contra a sua política. A tática dos comunistas era utilizar a luta de massas para provocar uma nova remodelação governamental na qual saísse mais favorecido: tal como acontecera em anteriores remodelações!

Desde o início de funções do novo governo, ficou claro que esse executivo iria levar a cabo uma política de retrocesso da revolução. Contra a crise pregava a disciplina e a austeridade. O socialismo era ainda a “meta” oficialmente perseguida, mas não salvaria (na sua óptica) o país: seriam receitas capitalistas a fazê-lo. Ora isso iria encontrar – e encontrou – uma grande resistência por parte dos trabalhadores.

Para tanto, para poder quebrar a resistência operária, popular e militar, era prioritário para o governo a eliminação de centros autónomos de poder de modo a reforçar a sua própria autoridade. Com esse objectivo criou uma nova Unidade militar: o Agrupamento Misto de Intervenção para fazer sombra às forças de Otelo – o COPCON. Mas desde o início, contou com uma oposição aguerrida. A indisciplina militar não podia ser travada por decreto e à criação do AMI responderam os radicais com o surgimento dos Soldados Unidos Vencerão (SUV) exigindo a expulsão dos oficiais reaccionários dos quartéis e a destruição do exército burguês para a criar o braço armado dos trabalhadores, o que constituía um novo desafio à disciplina das Forças Armadas reclamada pelos moderados.

Essa dualidade de poder no seio das Forças Armadas, retirava à burguesia um instrumento seguro para poder reprimir o movimento operário e popular e sob o guarda-chuva protector das unidades militares de esquerda, a contestação às políticas pró-capitalistas do VIº Governo Provisório podia ter uma radicalidade que punha em xeque a “normalidade democrático-burguesa” pretendida.

Precisamente, este período foi marcado pela terceira grande vaga de greves do movimento operário. As grandes batalhas giravam agora em torno das negociações dos contratos coletivos de trabalho, contra a crise e a austeridade que o governo pretendia aplicar. Cada greve era uma pequena guerra e o governo, quando podia, mostrava mão dura: se os deficientes das Forças Armadas protestavam, a resposta do governo era mandar os comandos bater e dispersar os manifestantes; se não bastava mandar os operários à merda [textual], encerrava-se a Rádio Renascença cujos trabalhadores em Lisboa estavam em autogestão, dando um apoio total ao movimento operário; se por pressão dos populares, a Renascença era reaberta, rebentava-se então com os emissores à bomba.

Numa acção inaudita, o próprio governo chegou a entrar em greve protestando contra as greves e contra o clima de agitação que se vivia no país: as demonstrações de força do executivo eram sabotadas pela indisciplina de várias unidades militares e pela audácia da classe trabalhadora. Assim, quando os operários da construção civil cercaram e sequestraram os deputados da Constituinte (11 de novembro) para que o governo cedesse e assinasse o acordo colectivo de trabalho, este mais nada pôde fazer senão… ceder! Tinha mandado a tropa “libertar” o parlamento, mas os soldados, quando lá chegaram, confraternizaram com os operários partilhando, todos em conjunto, sardinhas e vinho tinto…

Esta vertigem de acontecimentos era ainda animada pelas acções espectaculares da extrema-esquerda apostada em eletrizar as massas. O desvio de 1500 metralhadoras por parte de um oficial subordinado a Otelo e, sobretudo, o assalto, pilhagem e incêndio à embaixada de Espanha como protesto pela condenação à morte de nacionalistas bascos pelo regime franquista foram, sem dúvida, episódios marcantes.

Estávamos num clássico dilema: nem a burguesia conseguia dominar, nem o proletariado tinha força para criar uma ordem, apenas porque não existiu nenhuma força política de massas que na época que erguesse uma bandeira sem mácula, capaz de apresentar uma alternativa socialista, capaz de unir os trabalhadores e insuflar-lhes uma renovada confiança nas suas forças e na revolução.

Para tanto era necessário um programa anticapitalista que salvaguardasse as liberdades democráticas recém-conquistas no 25 de Abril, um programa capaz de superar o sectarismo e divisão que existiam na classe, um programa que apontasse a multiplicação das comissões de trabalhadores e de moradores, de soldados e marinheiros, dos comités estudantis e das cooperativas (que já existiam) e, sobretudo a sua unificação e coordenação a nível nacional como órgãos de luta, como os órgãos emergentes do poder operário e popular, capazes de potenciar os elementos de dualidade de poder existente e de derrubar o Estado burguês.

Podia-se viver assim algum tempo, não se podia viver assim para sempre. Que consenso poderia ser formado entre a burguesia e o proletariado? Uma das duas classes teria de vencer: Não havia – não há, na história! – lugar a empates. Na ausência dum plano de luta por parte dos trabalhadores a confrontação decisiva foi sendo organizada, naquele Outono de 75, no plano estritamente militar.

Sobre o 25 de novembro já muito se escreveu. Há versões para todos os gostos, mas o essencial a compreender é que o 25 de novembro não foi a causa da derrota da revolução, antes surgindo como consequência dos equívocos, hesitações, erros e traições conscientes que abateram o movimento operário e popular para que se chegasse a tal derrota.

Muitos ainda hoje responsabilizam Otelo – o mais graduado dos militares radicais – pela derrota do 25 de novembro, pela derrota da revolução. Como se toda a revolução pudesse depender da vontade ou acção de um único homem! É verdade que na hora da verdade – hora meticulosamente escolhida pelos militares moderados – os militares radicais falharam. Contudo, se a burguesia pôde fazer o 25 de novembro, apenas foi pelo resultado de consecutivos falhanços e traições das direções político-militares do movimento revolucionário – e não da ação dolosa dum único homem. Nessa noite fatídica, depois de ter sido exonerado de chefe do COPCON numa reunião do Conselho da Revolução na qual os representantes da Armada – controlada ainda pelos militares próximos do PCP – lavaram as mãos, Otelo abdicou de dirigir tropas sediciosas.

Porém, não foi apenas o resultado da ausência dum comando militar uno e resoluto, mas SOBRETUDO a inexistência dum apoio popular massivo (que tão importante fora quando dos anteriores golpes) que levaram à rápida rendição dos radicais, acabando a revolução às mãos de escassas duas centenas de comandos da Amadora – a única tropa segura que o Grupo dos Nove podia utilizar em Lisboa…

É por isso pouco relevante saber porque realmente saíram e às ordens de quem o fizeram, os paraquedistas que ocuparam bases aéreas na véspera do 25 de novembro e que precipitaria os acontecimentos. Os paraquedistas foram a tropa mais enganada durante a revolução. Foram enganados no 11 de março, foram enganados no rebentamento dos emissores da Rádio Renascença e é provável que também o tenham sido no 25 de novembro. O certo é que alguma coisa tinha de acontecer para que se depurassem as Forças Armadas e se não fossem os Paras no 25 de novembro, outro pretexto qualquer se tinha arranjado.

E com o 25 de novembro, a burguesia conseguiu o saneamento dos oficiais radicais das forças armadas, acabando com os elementos de dualidade de poder existentes até aí.

Epílogo: o passado e o futuro da revolução portuguesa

A derrota foi a consequência de, durante a revolução portuguesa, não ter existido um partido revolucionário de massas capaz… ou querendo conduzir o proletariado à vitória

Durante todo o período revolucionário, existiram as forças capazes de mudar o país e o mundo, mas faltou a direção política. Os trabalhadores e soldados revolucionários derrotaram várias tentativas de golpes de estado, ocuparam terras, fábricas, casas, forçaram as nacionalizações, forjaram poderosos sindicatos e partidos. A certa altura em 1975, a revista Times escrevia: “Capitalism is dead in Portugal”. Infelizmente não estava. Não foi por falta de mobilização ou de “consciência”, de participação ou de espírito de sacrifício que a revolução se perdeu. Que mais se poderia ter pedido aos trabalhadores naquela época? O que perdeu o movimento foi que a direção deste não esteve à altura dos acontecimentos!

Os trabalhadores portugueses não lutaram por um capitalismo de “rosto humano”: foram empurrados pela crise económica e pelo desenrolar da revolução a procurar e lutar por soluções anticapitalistas. Por norma, analistas, politólogos e historiadores fazem contas muito simples: somam os votos do CDS, do PPD e do PS nas eleições à Constituinte em 1975 e concluem que, havendo uma enorme maioria “democrática”, todos os “excessos” da revolução foram obra das “pérfidas” manobras do PCP e demais “extremistas”.

Porém, pode-se contar a história doutro modo: a revolução avançou e radicalizou-se, porque foi a própria classe trabalhadora que se radicalizou, foi o povo português que girou para a esquerda, malgrado o carácter reformista das suas organizações.

Tomando o exemplo do PS: não é possível comparar o nível de consciência e radicalização da sua base social de apoio em 74/75 com a moderação política que hoje a caracteriza. E, do mesmo modo, se não pode haver dúvidas sobre o carácter contrarrevolucionário da direção socialista, também não se deve perder de vista que Mário Soares esteve à beira de ser derrotado pelas correntes de esquerda que existiam no PS, aquando do seu primeiro congresso legal em dezembro de 74.

Para nós é indiscutível que a aspiração do socialismo era comum não apenas aos comunistas, não apenas à extrema-esquerda, mas à grande maioria do bloco social de apoio do Partido Socialista. Muitos trabalhadores viam no PS um partido capaz de lutar pelo socialismo, sem se identificar com a burocracia soviética e sem o perigo de se cair numa nova ditadura. E nos anos 70 isso não era assim tão inusitado. Na Grã-Bretanha, por exemplo, a organização juvenil do Labour Party foi ganha pela corrente marxista do Militant.

Mas se tanto a direção social-democrata do PS como a liderança estalinista do PCP não estavam à altura dos acontecimentos e jogaram, mesmo, um papel pernicioso no seio do movimento dos trabalhadores, na prática não havia à esquerda, mais nenhuma alternativa válida: ou se estava com o PS ou com o PCP. Os trabalhadores, podendo até simpatizar com algumas ideias, tinham plena consciência que pequenos grupos não eram capazes de ter uma acção decisiva nos grandes acontecimentos. E achar que um trabalhador socialista que lutara pela nacionalização do seu banco não aspirava ao socialismo, é tão absurdo como caricaturar cada militante comunista como um “agente” de Moscovo. Na verdade, tanto uns como outros, pela base, obrigaram os seus partidos a irem muito mais longe que os seus dirigentes tinham alguma vez imaginado…

Estes partidos não tiveram, pois, dirigentes com vontade, entendimento ou capacidade para liderar a classe trabalhadora à vitória. Do lado do PS, os seus dirigentes bem cedo escolheram o campo da burguesia e da salvação do capitalismo, tratando de enganar o povo e os trabalhadores, como mais tarde o confessaria, sem pudor, Mário Soares ao revelar as suas ligações com a embaixada americana, ao afirmar que na época “discursava consoante o gosto da audiência”. Todavia, do lado do PCP, não apenas o seu seguidismo totalmente acrítico em relação à ex-URSS e demais Estados operários burocraticamente deformados o alienou de importantes sectores do proletariado, como a sua política de colaboração de classes o condenou a um papel subalterno, sacrificando a ação independente da classe às alianças a entendimentos e acordo pelo topo com os políticos liberais e militares democratas da burguesia democrática. Cingindo-se à aliança Povo-MFA (e o MFA partiu-se em linhas de classe), o PCP foi quase sempre a reboque dos acontecimentos, ao invés de ser o partido que em cada momento decisivo, explicasse as tarefas, apontasse as metas e liderasse o processo com um programa claro e uma perspetiva correta.

Quanto ao MFA, é deveras extraordinário o grau de radicalização a que chegaram alguns dos seus militares. Porém não cabia, (não cabe!) aos militares a condução dum processo revolucionário. Em primeiro lugar, pela sua natureza pequeno-burguesa iria a unidade dos Capitães sempre quebrar-se em linhas de classe (como sucedeu). Em segundo lugar, só seria possível aos militares revolucionários ganharem um ascendente sobre o MFA através do avanço da revolução, isto é: se a força do movimento operário, como efeito colateral, proporcionasse a esses militares a força e a base de apoio para tal. Finalmente, mesmo que os militares revolucionários tivessem sido capazes de tomar o controlo do MFA e que este tomasse o poder, tal significaria um triunfo revolucionário tutelado pelos militares ao invés de ser construído pela ação consciente da classe trabalhadora. Ora esse bonapartismo militar de esquerda teria invariavelmente conduzido a um Estado operário burocraticamente deformado à semelhança do que existia, na época, noutros países onde o capitalismo tinha sido abolido, mas nos quais a democracia operária era inexistente.

De tudo isto não se infira que a revolução não poderia ter triunfado ou que a classe trabalhadora não teria a consciência necessária; não se infira que a revolução não atraiu as simpatias de amplos sectores intermédios da sociedade: a existência de tantos e tantos oficiais radicais numas Forças Armadas moldadas pelo fascismo para oprimir o povo português e os povos das antigas colónias foi a mais eloquente expressão da radicalização à esquerda da sociedade portuguesa. O que não houve foi um partido bolchevique em Portugal pois, caso contrário, Lisboa teria sido uma nova Petrogrado.

A prova da força da classe trabalhadora, do seu elevado grau de consciência e combatividade é demonstrável no eloquente facto que, após o 25 de novembro, a burguesia teve de se contentar com uma contrarrevolução “democrática” que levou 20 anos a destruir as conquistas de Abril. Aliás, boa parte das ocupações da reforma agrária viram a ocorrer até após o golpe de novembro!

Nos anos de 74-75 os trabalhadores portugueses lançaram-se à conquista dos céus. Sem possuírem uma direcção política que vincasse o carácter de classe da revolução; que apresentasse um programa de transição combinando as reivindicações democráticas com os objectivos socialistas que o desenrolar dos acontecimentos, necessariamente, iria colocar diante da classe; que explicasse aos trabalhadores, com verdade, a situação e as formas de avançar; que unisse a classe; e que, com uma postura internacionalista fizesse da revolução portuguesa o primeiro elo da corrente revolucionária que abraçasse a Europa e o mundo; sem nada disto, os trabalhadores portugueses tocaram os céus e mostraram-nos que é possível aos pequenos, aos explorados e oprimidos, tomar o seu destino em mãos, expropriar os expropriadores e desafiar a ordem burguesa. Contudo, também nos ensinaram que não basta a vontade de lutar: é imperioso a existência de uma organização, de um partido revolucionário, que conscientemente aponte as tarefas e as soluções ao movimento.

Um partido assim não se improvisa no calor dos acontecimentos. Espanha em 1936, França em 1968, Chile em 1973… ou Portugal em 1974-1975 mostraram tragicamente isso!

Porém, hoje as condições são incomparavelmente mais favoráveis para a construção de uma corrente revolucionária no seio do movimento operário e popular, no seio da juventude. Ao contrário do passado, nos dias de hoje a social-democracia não consegue já proporcionar as reformas sociais que lhe trouxeram prestígio e que eram a sua própria justificação – o capitalismo, no seu actual estádio de desenvolvimento não o permite. Ao contrário do passado, o estalinismo (na sua versão soviética ou chinesa) já não é um pólo de atracção para boa parte dos jovens e trabalhadores mais conscientes, já não se pode apresentar como facto de progresso e avanço – com a desagregação da antiga URSS apresenta-se mesmo falido.

Hoje há espaço para a emergência de uma corrente marxista, revolucionária e democrática. É essa corrente que temos de construir e devemos fazê-lo conscientemente nas nossas empresas, fábricas, escolas, locais de trabalho, bairros, nos nossos sindicatos e partidos, construindo desde já uma corrente marxista de quadros experientes, formados quer no estudo da teoria revolucionária, quer na prática da luta. É essa corrente marxista que construímos hoje em Portugal e no mundo em torno da Tendência Marxista Internacional, porque a revolução não conhece fronteiras, porque não é possível contruir o socialismo num país isolado. Só assim poderemos vencer. E venceremos!

Andrea Rossi

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