A aparente paz social que se vive em Portugal nos anos recentes esconde uma realidade bem mais complexa e repleta de amarguras debaixo da sua superfície frágil. Apesar da comunicação social ter tentado criar a perceção entre o público de que tinha havido uma recuperação económica no país após a crise da dívida pública, as cicatrizes que uma década de austeridade deixou na sociedade, agravadas pela pandemia da COVID-19, e o consequente ressentimento criaram o potencial para desenvolvimentos revolucionários no futuro. A crescente instabilidade no seio do sistema político, particularmente com o crescimento da extrema-direita, é um indício de instabilidade social.
Uma alienação crescente
Embora Marcelo Rebelo de Sousa tenha sido reeleito Presidente no passado dia 24 de janeiro com um resultado esmagador de 60.7%, o verdadeiro vencedor foi a opção “nenhum dos anteriores”, com uma abstenção histórica de 60.76%. O facto desta eleição ter acontecido durante a terceira vaga da COVID-19, que foi particularmente nefasta, foi uma desculpa conveniente para alguns jornalistas e comentadores tentarem justificar esta participação tão baixa. Mas tal apenas aparenta ser plausível se ignorarmos os dados de todas as outras eleições das últimas décadas, que mostram que abstenções altas são um problema crónico no sistema eleitoral português.
É possível observar claramente uma tendência preocupante: a abstenção tem aumentado em todo o tipo de eleições ao longo das últimas décadas. Os dados demográficos mostram que a abstenção é maior entre pessoas no nível de rendimento mais baixo e particularmente entre os jovens. Os políticos não admitem qualquer tipo de responsabilidade pelo estado atual da participação eleitoral e não reconhecem que a abstenção é uma rejeição da política como a esfera de uma elite corrupta e privilegiada cujos interesses são contrários aos do povo. Neste sentido, a classe trabalhadora portuguesa, particularmente os jovens, encontra-se num estado favorável à radicalização e à promoção de ideias revolucionárias.
O crescimento dos populismos de direita
Os portugueses têm exprimido o seu descontentamento de outras formas para além de se absterem da política. Muitos estão a procurar respostas fora do sistema tradicional, o que proporciona um terreno fértil para oportunistas de direita. De facto, paralelamente ao aumento da abstenção, Portugal tem visto um crescimento da extrema-direita, nomeadamente do Chega, que se posiciona como um canal para expressão da insatisfação em relação ao status quo. Após o seu líder, o demagogo André Ventura, ter obtido o terceiro lugar nas presidenciais com 11.9% dos votos, uma sondagem recente coloca o Chega em terceiro lugar em futuras legislativas com 7.3%. Outra sondagem coloca o partido em quarto lugar com a mesma percentagem de votos, uma subida em relação aos 1.29% que o Chega obteve nas legislativas de 2019, quando Ventura foi eleito como o seu primeiro deputado.
De modo semelhante a outros charlatães da chamada alt-right, Ventura apresenta-se a si e ao Chega como estando fora do sistema, apesar dele próprio ser um político completamente comprometido com o status quo. No PSD até 2018, com o qual concorreu como candidato à câmara municipal de Loures em 2017, acumulou o cargo de deputado com o de consultor financeiro até julho de 2020. Não obstante, a retórica anti-ssistema tem dado frutos e o Chega veio desestabilizar muito o panorama político, deixando o PSD e o CDS em estado de desalinhamento à medida que o seu apoio nas sondagens desce perante o crescimento do Chega e da IL.
O Chega e a IL estão a tentar preencher vazios diferentes na política portuguesa, mas complementam-se. Enquanto que os radicais do Chega tentam apelar a um eleitorado mais velho e com menos formação, a IL tenta alimentar-se do descontentamento que sobretudo o eleitorado mais jovem, com formação e cosmopolita sente em relação à falta de oportunidades e aos impostos punitivamente altos. As propostas do Chega e da IL para a economia são idênticas, o que é prova de que esta “nova” direita se apresenta com várias faces para tentar chegar a uma secção mais alargada do eleitorado, com diferenças estéticas mas fundamentalmente com a mesma agenda.
Face a estes novos desenvolvimentos, a esquerda – o BE e o PCP – arrisca perder ainda mais deputados nas próximas eleições legislativas, seguindo a tendência de 2019. Até ao momento, estes dois partidos têm sido uma oposição meramente vocal à extrema-direita, envolvendo-se em trocas de galhardetes mas sem apresentarem uma verdadeira alternativa para a classe trabalhadora. O que explica este recente aumento do apoio da direita populista em Portugal? Porque é que tal está a acontecer agora, no seguimento de desenvolvimentos semelhantes por todo o mundo ocidental?
Este país não é para a direita
No rescaldo da revolução do 25 de Abril de 1974, apos 4 décadas de uma ditadura de direita, as massas portuguesas tinham conquistado uma posição forte para os partidos de esquerda. Um partido que fosse considerado contrarrevolucionário ou que tivesse ligações explícitas ao antigo regime não teria qualquer base de apoio. Os nomes dos principais partidos com representação parlamentar ainda hoje demonstram a vontade inicial dos representantes do sistema de se fingirem mais à esquerda do que eram e são na realidade e a relutância da direita em se assumir como tal. O “centrismo” era o máximo socialmente aceitável à direita no espectro político. Contudo, a normalização da direita na comunicação social ao longo das décadas e o surgimento de movimentos de direita populista por todo o mundo em anos recentes abriram caminho à direita radical em Portugal. Para além disso, a crise nos partidos de direita do sistema desde a coligação pouco popular entre o PSD e o CDS de 2011-15 precipitou a reinvenção da direita nos dois novos partidos, o Chega e a IL.
Açúcar e chicote sem o açúcar
Durante décadas, a classe capitalista portuguesa governou com um torrão de açúcar e um chicote através dos seus representantes políticos, respetivamente o PS e o PSD, o último frequentemente em coligações com o CDS. Esta estratégia para manter a classe trabalhadora subjugada é observada em democracias liberais por todo o mundo. No entanto, como em todo o lado, o capitalismo já não é capaz de oferecer qualquer tipo de concessões ou reformas aos trabalhadores portugueses.
No seguimento do resgate de 2011, os 4 anos de intervenção da troika resultaram numa cruel combinação de austeridade, impostos altos e desregulação do mercado de trabalho, com ataques aos direitos dos trabalhadores, aplicada pela coligação de direita entre o PSD e o CDS. Estas políticas danosas provocaram o disparo do desemprego para o nível recorde de 16.2% em 2013, com os mais jovens a serem os mais castigados por esta realidade deplorável. De modo semelhante, durante a década de 2010 a emigração atingiu níveis que não tinham sido vistos desde o êxodo dos anos 60, de novo afetando mais os mais jovens.
Quando o PS, com o apoio parlamentar da esquerda reformista, o BE e o PCP, substituíram a coligação PSD/CDS em 2015, houve a promessa de “virar a página” da austeridade. Contudo, nada do género aconteceu, com o governo a gabar-se de défices historicamente baixos antes da pandemia, como se a falta de investimento público fosse algo positivo quando serviços públicos essenciais estão ainda a sofrer de desinvestimento crónico. De facto, desde 2015 que o governo tem tentado convencer a classe trabalhadora portuguesa que o chicote com o qual é açoitada é na realidade um torrão de açúcar para comer.
Uma dívida pública alta, a terceira mais alta na UE, significa que o encargo dos impostos sobre os rendimentos é mais alto do que a média da OCDE, sem qualquer benefício visível para a classe trabalhadora. O salário médio ajustado ao custo de vida é o mais baixo na Europa Ocidental. Apesar do desemprego ter diminuído, tal tem sido à custa de um aumento do trabalho precário, com empregos sazonais, contratos a termo e a recibos verdes a serem mais comuns, principalmente entre os jovens. A especulação imobiliária desde a crise de 2008 fez com que os encargos com a habitação se tenham tornado cada vez mais incomportáveis para a classe trabalhadora, resultando num aumento do número de pessoas sem-abrigo ainda antes da pandemia. Com um crescimento económico miserável, em média cerca de apenas 2% desde 2015 e graças sobretudo ao turismo, tudo isto tem causado perspetivas de futuro deprimentes para os trabalhadores e principalmente para os jovens.
A pandemia apenas veio agravar as contradições que já existiam na sociedade portuguesa. O desemprego subiu outra vez e o custo de vida vai com certeza aumentar, já que a classe trabalhadora vai ter mais uma vez de pagar a conta para equilibrar os números do sistema capitalista após ser disparada a “bazuca” europeia de €1.8 biliões. A austeridade vai prolongar-se durante esta década e mais além, degradando ainda mais os serviços públicos, removendo proteções sociais e impedindo o crescimento económico. A economia será cada vez mais assente em salários baixos e trabalho precário, com menos oportunidades para os jovens. Os padrões de vida estarão novamente sob ataque.
Uma crise de liderança à esquerda
O principal problema para os partidos da esquerda é o facto de seguirem uma linha reformista tépida e a consequente falta de apoio por parte das massas. A taxa de sindicalização em Portugal é de apenas 16.1%, uma das mais baixas na OCDE. Os partidos de esquerda têm falhado na construção e consolidação de bases dentro do movimento operário. O PCP, apesar das suas origens no movimento operário, foi mesmo acusado de prejudicar sindicatos independentes, enquanto que a CGTP, a maior confederação sindical no país, com ligações fortes ao PCP, respondeu de forma muito mansa aos sucessivos ataques às condições de trabalho durante a última década. O BE sempre seguiu uma linha reformista desde a sua criação em 1999 e tem apenas uma presença tímida em alguns movimentos, tais como o movimento feminista e o movimento ambientalista.
Razões para estar otimista
Tudo isto proporcionou os ingredientes para o crescimento da direita populista que se finge anti-ssistema. A desconfiança em relação ao sistema que caracteriza uma grande proporção do eleitorado português desencantado com a política significa que estas pessoas podem estar já a desenvolver alguma consciência de classe e a procurar por alternativas que respondam de forma clara e eficaz às preocupações que daí resultam. É por isso necessário que os marxistas em Portugal apresentem à classe trabalhadora uma alternativa genuína.
Apenas um programa determinadamente socialista pode responder aos problemas com que os trabalhadores e os jovens portugueses se deparam: por uma economia socialista planeada democraticamente e sob o controlo dos trabalhadores; pela nacionalização sem compensação do setor privado da saúde para aumentar os recursos ao dispor do SNS e assim melhorar a sua capacidade de resposta à atual pandemia; o mesmo para o setor privado da educação, permitindo melhores estratégias para acabar com a desigualdade de oportunidades; pela apropriação e controlo das grandes empresas pelos seus trabalhadores, como no caso da TAP e da Groundforce; pela criação de comités de trabalhadores por toda a economia, dando-lhes poder sobre todas as decisões que afetem o seu local de trabalho, incluindo se, quando e como voltar ao trabalho de forma segura durante esta pandemia, prevenindo abusos como os que foram denunciados na construção civil, onde os trabalhadores sofrem pressões para não comunicarem sintomas da COVID-19 ou contactos com infetados; pela expropriação das propriedades dos grandes senhorios para que a atual crise da habitação possa ser resolvida com um plano democrático que satisfaça as necessidades de todos, incluindo um limite máximo para as rendas que dependa do rendimento do agregado familiar; pelo financiamento de programas sociais e ambientais urgentes e outros investimentos estruturais necessários através da expropriação das fortunas dos ricos e de todo o setor financeiro e bancário.
Estas exigências vão certamente encontrar apoio entre os trabalhadores de Portugal, fustigados por vários anos de austeridade e ataques por parte da classe governativa. Com uma organização capaz de liderar os movimentos de trabalhadores e estudantes no país, existirá um verdadeiro potencial para testemunharmos socialismo durante as nossas vidas.
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