Há uns dias, para comemorar o aniversário do nascimento de Lenine, o Avante publicou um artigo do companheiro Rui Mota lembrando o contributo do revolucionário russo e exortando aos comunistas portugueses a estudarem a sua obra. Celebramos este apelo para voltarmos a Lenine, que partilhamos plenamente. Rui Mota explica os principais contributos teóricos de Lenine ao marxismo: os seus estudos sobre o imperialismo, sobre a dialética, e, sobretudo, sobre a organização revolucionária. Como assinala o camarada, foi sobre a base destas ideias que Lenine construiu o Partido Bolchevique e interveio nos acontecimentos de 1917 na Rússia, que levaram à revolução de Outubro. Rui Mota, porém, não se limita a celebrar o legado de Lenine, mas o liga à história da luta de classes em Portugal e à experiência da revolução de Abril. Implicitamente, ele conecta o papel de Lenine e do Partido Bolchevique em 1917 ao do PCP e do seu líder, Álvaro Cunhal, em 1974-1975. Explica Rui Mota:
Organizar a vanguarda, identificar na crise as fissuras do poder da classe dominante e nelas abrir caminho para a revolução. Foi isso que tornou possível Outubro. E, diga-se, foi isso que tornou possível Abril. Basta observar algumas das mais importantes matérias de um processo para encontrarmos as semelhanças com o outro: o Estado como a questão central da revolução, o papel de vanguarda do Partido, nomeadamente a sua ligação às massas, a importância da luta de massas e em particular o trabalho do movimento sindical e de outras organizações representativas, a correlação entre a luta política e a luta económica, a questão da unidade social e política, a questão agrária, o problema da guerra e do colonialismo, o internacionalismo.
Dá-nos, assim, um ensejo para discutir a relevância de Lenine em Portugal e o papel do PCP na nossa revolução.
Lenine em 1917
Na verdade, estas semelhanças entre 1917 e 1974 são superficiais. A política de Lenine em 1917 foi dialetralmente oposta à de Cunhal em 1974. Quando Lenine voltou à Rússia do seu exílio em abril de 1917, a sua palavra de ordem foi: “Nenhum apoio ao governo provisório; explicar a completa falsidade de todas as suas promessas… Desmascarar este governo, que é um governo de capitalistas.”
Lenine e os bolcheviques dedicaram-se no ano 1917 a combater o governo provisório de Kerensky, que era uma coligação entre os partidos operários reformistas e o setor “liberal” da burguesia. Os bolcheviques combateram-no primeiro através da propaganda e da agitação, explicando pacientemente que para cumprir as reivindicações das massas, de pão, terra e paz, era preciso que os trabalhadores tomassem o poder através dos seus órgãos democráticos, os conselhos de operários e soldados, os sovietes. Em agosto de 1917 aconteceu a intentona contrarrevolucionária do general reacionário Kornílov, travada pelas organizações operárias. Kornílov organizou o seu golpe sob a proteção de Kerensky e do governo provisório, ou seja, da burguesia liberal e dos reformistas. Aquele acontecimento colocou a tarefa da tomada do poder em termos práticos. Para travar o perigo da reação, os trabalhadores tinham de varrer a burguesia liberal e tomar o poder. Explicava Lenine:
Seria errado pensar que nos afastámos mais da tarefa da conquista do poder pelo proletariado [após a intentona de Kornílov]. Não. Aproximámo-nos extraordinariamente dela, não de forma directa mas lateral. E é necessário, neste mesmo instante, fazer campanha não tanto directamente contra Kérenski, como indirectamente contra ele, indirectamente, a saber: exigindo uma guerra activa, muito activa, e verdadeiramente revolucionária, contra Kornílov. […] O momento agora é de acção, a guerra contra Kornílov deve ser feita revolucionariamente, arrastando as massas, levantado-as, inflamando-as (e Kérenski tem medo das massas, tem medo do povo).
À tentativa da esquerda pequeno-burguesa de paralisar a revolução com o espantalho das forças reacionárias, Lenine respondia assinalando a facilidade com que a intentona foi travada e a ligação entre o general reacionário Kornílov e o governo provisório:
“Não nos tentem assustar, senhores, não vão conseguir. Vimos estas forças hostis no kornilovismo (do qual o regime de Kerensky não difere em nada). Todos viram, e o povo recorda, como o proletariado e os camponeses pobres varreram Kornilov.”
No outono de 1917, tendo conquistado maiorias nos principais sovietes, e perante a impotência da reação após o falhanço de Kornílov e a desagregação do governo provisório, Lenine organizou a revolução socialista de Outubro, que deu o poder aos operários e camponeses.
Cunhal em 1974-1975
Em abril de 1974, quando Cunhal volta a Portugal, ele afirmou: “no entender do Partido Comunista Português, a melhor garantia para a realização de eleições livres seria a constituição de um governo provisório com a representação de todas as forças e sectores politicos democráticos e liberais.”
Cunhal participou dos diferentes governos provisórios desde o início, em coligação com os políticos da burguesia (até inicialmente sob a chefia do general reacionário e golpista Spínola!). A sua propaganda dedicava-se a conter as lutas operárias e camponesas, respeitando a propriedade privada e a economia de mercado. Ao fim e ao cabo, os governos provisórios eram, nas suas palavras, “de uma muito larga coligação de forças sociais e políticas cujo programa… não prevê reformas profundas da estrutura económica e social”. A greve, dizia Cunhal, “só deve ser utilizada depois de se ver se não haverá formas mais adequadas de luta e depois de considerar se a greve em causa não será susceptível de criar graves perturbações económicas e sociais favoráveis às forças reaccionárias.”
Após as intentonas de Spínola em julho e setembro de 1974 (uma pobre imitação de Kornílov), Cunhal denunciava as “provocações ruidosas de fascistas e esquerdistas a lançarem um ambiente de «desordem nas ruas» e de «caos»”. Ainda pedia aos trabalhadores terem “o cuidado de não apresentar reivindicações sopradas demagogicamente por reaccionários ou esquerdistas pseudo-revolucionários interessados em criar situações insolúveis e provocar choques e roturas entre os trabalhadores e o Governo Provisório.” Depois da nova tentativa de golpe de Spínola no dia 11 de março de 1975, travada sem grande esforço pelas massas, Cunhal reafirmava: “divisões entre forças democráticas e populares só à reacção podem aproveitar. O PCP continua a pronunciar-se firmemente por uma política de unidade de todas as forças que querem lutar por um Portugal democrático a caminho do socialismo”.
Ou seja, se Lenine usava o perigo da reação para preparar a revolução socialista, Cunhal usava-o como espantalho para assustar a classe trabalhadora e atrelá-la ainda mais à burguesia liberal.
Bolchevismo ou menchevismo?
As políticas divergentes de Lenine e de Cunhal emanam das suas concepções radicalmente diferentes da natureza da revolução. Para Lenine, a revolução russa era uma revolução socialista. Apesar do atraso da Rússia, semi-feudal e absolutista, a sua economia estava interligada por mil fios ao capitalismo imperialista internacional. A revolução na Rússia seria um elo no processo revolucionário mundial. Dizia Lenine: “A peculiaridade do momento actual na Rússia consiste na transição da primeira etapa da revolução, que deu o poder à burguesia por faltar ao proletariado o grau necessário de consciência e organização, para a sua segunda etapa, que deve colocar o poder nas mãos do proletariado e das camadas pobres do campesinato.”
A resolução das prementes tarefas democráticas na Rússia só podia levar-se a cabo atacando a propriedade privada no seu conjunto. Explica Lenine:
“As transformações democrático-burguesas —dissemo-lo e demonstrámo-lo com factos— são um produto acessório da revolução proletária, isto é, socialista. Digamos de passagem que [os mencheviques] não souberam compreender esta correlação entre a revolução democrático-burguesa e a revolução proletária socialista. A primeira transforma-se na segunda. A segunda resolve de passagem os problemas da primeira. A segunda consolida a obra da primeira.”
Aqui, a concepção internacionalista de Lenine é vital. Para ele, o Outubro russo seria o início de um processo prolongado de revoluções que só se completaria com o triunfo do proletariado a escala mundial. Explicava: “O proletariado revolucionário tomará o poder e iniciará uma revolução socialista; apesar de todas as dificuldades e possíveis ziguezagues do desenvolvimento, atrairá os trabalhadores de todos os países avançados para a revolução e derrotará tanto a guerra como o capitalismo.”
Para Cunhal, a revolução portuguesa era “uma revolução democrática e uma revolução nacional”, protagonizada por uma “frente antimonopolista”, abrangendo “o proletariado (operários industriais e assalariados rurais), o campesinato (pequenos e médios agricultores), a pequena burguesia urbana, sectores da média burguesia e a intelectualidade” (Rumo à vitória, p. 145). Ou seja, a revolução devia ser contida no quadro do capitalismo, relegando a luta pelo socialismo para um futuro longínquo e abstrato. Toda a sua análise desta revolução “nacional” é elaborada no quadro estreitamente português. Trata-se de uma repetição da teoria das duas etapas dos mencheviques russos, ou seja, dos adversários reformistas de Lenine e dos bolcheviques. Para os mencheviques primeiro era necessária a luta pela revolução democrática e nacional, em aliança com os “setores progressistas” da burguesia, e só depois, após uma fase prolongada de desenvolvimento capitalista liberal, avançar-se-ia para o socialismo.
Foi esta política de contenção da luta de classes de Cunhal que levou ao aborto da revolução portuguesa, descarrilada no 25 de Novembro. Na nossa opinião, era inteiramente possível uma revolução socialista em Portugal, que teria sido, de facto, muito mais fácil e rápida que na Rússia, devido ao maior peso e coesão da classe trabalhadora portuguesa. Essa revolução teria suposto um terramoto na Europa e no mundo, começando pela vizinha Espanha onde o regime franquista estava a cambalear. Foi precisamente o papel das direções da classe trabalhadora, nomeadamente de Cunhal e de Mário Soares, do PS, quem a travou. Ainda hoje, o PCP se aferra às mesmas fórmulas mencheviques daquela época: a luta pela “democracia avançada” (ou seja, por embelecer o atual regime burguês), através de uma “frente antimonopolista”. A revolução portuguesa de 1974-1975 fracasou porque não havia em Portugal um Partido Bolchevique com uma política verdadeiramente leninista. A nossa tarefa hoje é construir essa organização.