A queda de Montenegro

Ninguém queria eleições. Nem os partidos políticos, nem a burguesia, nem os aliados europeus, nem os próprios cidadãos. Falava-se de um “contexto internacional difícil”, quer dizer, de crise do capitalismo e de tensões entre as potências imperialistas, que requer governos fortes e estáveis. Mas as eleições hão-de vir, quer queiram quer não, pela força inevitável dos acontecimentos. Precipitou-as a bizarra moção de confiança de ontem, dia 11. E elas só trarão mais instabilidade. Por trás do teatro de sombras da Assembleia da República, o pano de fundo destes singulares acontecimentos é a enorme raiva que está a acumular-se na sociedade e a fraqueza dos partidos burgueses.

Dos casos e casinhos às casas e casinos

No final de 2023, o governo do PS caiu por conta da proliferação dos casos de corrupção. Apesar da sua maioria absoluta, o governo Costa viveu numa crise constante, cambaleando de um a outro escândalo. Porém, a corrupção tem sido persistente na história da Terceira República portuguesa. Ela faz parte da democracia burguesa, sobretudo em países atrasados como Portugal, onde os capitalistas tentam constantemente aliciar os políticos para obter todo o tipo de vantagens. Os luxos e privilégios dos políticos burgueses asseguram que eles defenderão os interesses da classe que lhos garante.

Esta corrupção persistente, que existirá enquanto exista o capitalismo, não foi impedimento para o país ter governos estáveis. Lembremos só os longos anos de governo de Cavaco Silva, marcados por inúmeros escândalos. Mas aqueles eram anos de relativa prosperidade para o capitalismo português, onde a tolerância para com a corrupção era maior. A queda súbita de Costa explica-se, como analisamos naquela altura, pelo clima de frustração e irritação que existe na sociedade portuguesa, mergulhada numa profunda crise. Aconteceu-lhe agora o mesmo a Luís Montenegro. Enquanto se torna impossível pagar as rendas, enquanto milhares de famílias trabalhadoras são empurradas cada vez mais longe dos centros das cidades, enquanto a juventude não consegue se emancipar pelo custo abusivo da habitação, e enquanto os especuladores fazem fortunas com o desespero dos arrendatários aproveitando as leis do governo AD, enquanto os salários reais se desmoronam, enquanto o governo fala em austeridade para aumentar o gasto militar, enquanto o SNS está a ruir, revelou-se-nos que o Luís Montenegro andava envolvido em lucrativos negócios de tráfico de influências, no imobiliário e não só, vindo à tona informações escandalosas sobre as suas propriedades e o seu estilo de vida, que nada tem de austero. Evidenciou-se o que muitas pessoas já intuíam: que o Montenegro não serve os “interesses do povo português”, mas os grandes capitalistas em geral e os seus amigos do imobiliário e dos casinos em particular. Se os casos e casinhos do PS fizeram cair o governo de maioria absoluta de Costa, as casas e casinos haviam, portanto, de fazer cair o governo minoritário e instável de Montenegro.

A resposta espasmódica dos diferentes partidos e atores políticos, que levou às eleições antecipadas que ninguém queria, refletem, de forma distorcida, a consciência da enorme frustração sobre a que governam. Luís Montenegro não queria eleições, mas também não queria passar mais três anos como um cadáver político, a governar com enorme dificuldade, ao sabor dos desígnios do PS, e a desgastar-se a lume brando. Com a moção de confiança, quis atrelar os socialistas. Pedro Nuno Santos, por sua parte, não queria eleições, mas também não podia apresentar-se como a muleta deste governo cambaleante, que pode cair em qualquer momento, e a quem o PS já garantiu o seu primeiro orçamento. Marcelo Rebelo de Sousa, encarregado de defender a estabilidade desta democracia burguesa, já tinha largado António Costa há pouco mais de um ano, e agora não podia fazer muita coisa por resgatar Montenegro, ao risco de desacreditar as instituições ainda mais.

O “descrédito das instituições”

A burguesia está aterrorizada pelas novas perspetivas eleitorais, que só anunciam mais instabilidade. O novo governo, seja do PS ou, novamente, do PSD, será minoritário e extremamente fraco, e terá de gerir uma aritmética parlamentar complexa e fragmentária. Estará condicionado pelas forças à esquerda, numa hipotética reedição da geringonça, ou pela direita, com o Chega a crescer. Um possível novo governo do PSD dificilmente poderá prescindir do Chega desta vez (se excluirmos um muito improvável acordo entre o PSD e o PS, que os acrimoniosos episódios dos últimos dias só tem afastado ainda mais). Os grotescos casos que tem envolvido o Chega ultimamente (pedofilia, roubo de malas, negócios imobiliários, etc.) não o colocam na melhor das posições neste cenário. Todavia, a tendência geral é para o crescimento do Chega, que se tem posicionado, demagogicamente, como a oposição mais radical ao sistema, aproveitando o esgotamento da esquerda do PCP e do BE, mergulhados na sua rotina reformista. Mas a ilusão de que o Chega quer mesmo “mudar Portugal” irá se dissipando enquanto se aproximarem ao poder. Em qualquer caso, o principal beneficiário das eleições será, sem dúvida, a abstenção.

A perspetiva de um governo ainda mais fraco e um parlamento ainda mais fragmentado é um pesadelo para a burguesia. O capitalismo está em crise no mundo todo, mas esta é uma crise que afeta com especial virulência a Europa, onde Portugal é um elo fraco. Os capitalistas precisam de austeridade e de atacar a classe trabalhadora para compensar a estrepitosa perda de competitividade do capitalismo europeu, e também para financiar o aumento do gasto militar. Para isso são necessários governos fortes. O governo de Montenegro não o era, e o que se seguirá ainda menos. Isso garante paralisia e instabilidade. Em palavras de Marcelo Rebelo de Sousa, as eleições antecipadas “dão incerteza política, e é fundamental garantirmos que, naquilo que depende de nós, seja reduzida ao mínimo e que, económica e socialmente, os portugueses conseguem enfrentar com tranquilidade.

E ainda mais: estas reviravoltas políticas constantes contribuem para o mal-afamado “descrédito das instituições”. A classe trabalhadora está a questionar todos os fundamentos da sociedade capitalista, começando pelo sistema político. Os preconceitos que o alicerçam, sobre a “democracia”, “o interesse nacional”, a “soberania do povo”, a “divisão de poderes”, desmoronam-se. Evidencia-se que o Estado não é neutro e que não governa para a maioria, mas que serve os interesses dos ricos e dos poderosos através dos seus bem-pagos representantes políticos, engalfinhados para manter-se no poder. Nas palavras de Ramiro Brito, presidente Associação Empresarial do Minho, que refletem bem o ânimo da burguesia portuguesa:

“Não vai demorar muito tempo para que, se persistimos em denegrir, em escamotear tudo aquilo que é o património positivo do sistema democrático, as pessoas comecem a não acreditar no sistema. E não há nada pior na política e na democracia do que o descrédito popular em relação ao sistema em si.”

Um vulcão de fogo

As convulsões políticas são uma consequência das enormes tensões que estão a acumular-se na sociedade, com a radicalização, ainda incompleta e confusa, das massas, chicoteadas pela crise e que aos poucos vão tirando conclusões sobre os acontecimentos. O que se deduz disto é a correlação de forças favorável à classe trabalhadora. A burguesia e os seus partidos, esgotados e desacreditados, não têm uma base social minimamente sólida. Pelo contrário, caminham sobre um vulcão de fogo. São cientes da sua extrema fraqueza e profunda impopularidade, o que explica o seu nervosismo, insegurança e pessimismo. Se conseguem impor, parcialmente, o seu programa de ataques, é só devido à falta de uma direção à altura da classe operária.

Com efeito, a raiva e radicalização de amplas camadas da população contrasta com a política reformista, legalista e cinzenta da esquerda, preocupada, nesta tormenta política, pelo “prestígio das instituições”. Ainda ouvimos o Paulo Raimundo do PCP lamentar o governo ter-se tornado “num foco de descredibilização da vida política nacional” e a Mariana Mortagua a denunciar, como faria qualquer advogada respeitável, que “receber avenças não é permitido por lei, seja de quem for, enquanto se é primeiro ministro, porque há um dever de exclusividade”. Não é de admirar que muitos votantes indignados não peguem no boletim eleitoral destes partidos. A classe trabalhadora pode varrer os capitalistas, os seus representantes e o seu sistema político corruto e apodrecido. Mas para isso faz falta uma organização revolucionária de massas, com raízes na classe trabalhadora, que lhe ofereça um programa de transformação social. Parafraseando Arquimedes, o proletariado pode levantar o mundo, mas para isso necessita uma alavanca e um ponto de apoio: uma organização revolucionária adequada. É isso que temos de construir.

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