Artigo de Rui Faustino
No dia 25 de Abril de 1974 a ditadura caiu sem que ninguém estivesse na disposição de lutar por ela. Onde estava, então sequer, essa grande “ameaça” fascista? A reação não possuía, nesse momento, qualquer reserva social de apoio e até os partidos burgueses como o PPD e o CDS, criados após o golpe “em cima do joelho”, viam-se forçados a falar em “socialismo”, para melhor iludir as massas!
Contudo, ao invés de organizar a tomada do poder pelos trabalhadores o Partido Comunista Português (tal como o Partido Socialista) entrou no governo provisório a convite de Spínola para que, de mãos dadas aos políticos e militares burgueses, unissem todos esforços para a “construção da democracia”, isto é: promoverem uma política de colaboração de classes, a verdadeira razão por detrás de tal convite. Que as classes perseguiam fins diferentes foi percetível logo nas primeiras semanas da revolução, quando a primeira vaga de greves lançara o pânico entre os círculos dirigentes do país. Desde a primeira hora que Spínola apelou à ordem e à disciplina. Mas de que serviriam os apelos dum general? Era dos partidos de esquerda que a burguesia poderia esperar algum tipo de autoridade e ascendente sobre os trabalhadores, tudo – claro – a bem da salvação da nação!
Ora, sendo o PCP o único partido com uma real influência junto da classe nas primeiras semanas e meses, foi este partido (muito mais que o PS) que teve de arregaçar mangas para pôr a funcionar a aliança da classe operária com os sectores “democráticos” da burguesia. Essa aliança só poderia funcionar, diluindo e moderando as exigências da classe trabalhadora, senão como se sentariam no mesmo governo ministros militares, ministros liberais e ministros comunistas, sem a “concertação social” necessária? Esta é a razão pela qual, naquela primeira vaga grevista de maio e junho de 74, se sucederam os comunicados do PCP denunciando as greves como “selvagens”, quando não fomentadas pelos patrões, fossem elas dos padeiros, da CARRIS ou dos CTT e que – afirmava o PCP – “faziam o jogo da reação”, ameaçando lançar a democracia no caos. Ao fim de 48 anos de ditadura, aos trabalhadores em luta, pedia o PCP “disciplina” e “paciência” … Escandalosamente, no início de junho, o PCP e a Intersindical chegariam até a convocar uma manifestação contra as greves, que contou com a presença do ministro do trabalho, também ele militante comunista!
Tantos os dirigentes comunistas como os socialistas, justificavam a sua política de aliança com os sectores “moderados” e “liberais” da burguesia, com o argumento de que, no momento atual dever-se-ia derrotar o fascismo e assegurar a democratização do país: consolidando primeiro a revolução democrática, para só depois se passar á etapa da revolução socialista. Com isto – diziam – seria possível assegurar o apoio das classes médias, isolando os fascistas e a reação. Essencialmente foram estas as ideias e estratégias dos documentos programáticos para o momento atual, que seriam aprovados nos primeiros congressos na legalidade destes dois partidos no final desse ano de 1974.
Assim, quer o PS, quer o PCP, dividiam o seu programa político entre o que poderíamos chamar de “propostas mínimas” e “propostas máximas”. As primeiras, “pragmáticas”, eram aquelas que os seus dirigentes entendiam ser realisticamente aplicáveis à situação portuguesa como forma de vencer a crise; as segundas, eram aquele conjunto de propostas como a expropriação dos grandes capitalistas, a implantação do socialismo, rumo ao sonho de um mundo sem classes, sem exploradores e explorados, etc. que eram belas ideias, mas que ficavam, invariavelmente, sem hora nem dia marcados. Os programas e os discursos políticos de ambos os partidos deixavam claro que só gradualmente, após um longo caminho, se poderia lá chegar.
A plataforma que o PCP aprovou no seu congresso para o momento atual (outubro de 74), por exemplo, era disso espelho ao afirmar pretender “o controlo pelo Estado da atividade da banca privada” ou o “apoio e ajuda em crédito e outros estímulos às empresas, pequenas e grandes” (mas não a sua nacionalização!), a “fiscalização e controlo pelo Estado de empresas que se mostrem incapazes de cumprir a sua função” (o seu resgate, mas não a sua nacionalização!), a “requisição pelo Estado das terras incultas” e “forte tributação aos grandes proprietários e rendeiros absentistas” – mas não a sua expropriação sob a forma duma reforma agrária. Estas, entre outras propostas avulso, eram os objetivos pelos quais se deveriam bater os militantes comunistas “no momento atual”.
Todavia, fustigados pela crise (estávamos em plena crise mundial iniciada com o choque petrolífero de 73), em risco de perder os ganhos sociais recém-conquistados ou até os postos de trabalho pela falência das empresas, quando não enfrentado até a sabotagem consciente dos patrões, tinham os trabalhadores de procurar outras alternativas para o momento atual, pois não podiam permitir-se aguardar com “disciplina” e “paciência” o socialismo prometido para uma qualquer futura manhã de nevoeiro…
Soluções diferentes eram, por isso, ensaiadas por largos sectores da classe trabalhadora. Com o passar dos meses, com o agravar da crise, também sob influência da propaganda (ainda que retórica) dos partidos de esquerda, cada vez mais trabalhadores abraçavam, de facto, as ideias socialistas e começavam a exigir uma transformação radical na ordem social até então vigente – só não podiam era esperar uma geração ou duas…
Forçados pelos despedimentos e pelo possível encerramento das empresas, os trabalhadores assumiam a sua gestão. Mais de 1000 entrariam em autogestão ao longo de 75. Sobretudo, era o apelo das nacionalizações e à intervenção estatal que mais simpatias iam colhendo como solução para a crise nas empresas e no país. De igual modo, as ocupações das herdades no Alentejo tornaram-se na resposta possível dos jornaleiros ao constante desrespeito dos latifundiários pelos acordos de trabalho assinados meses antes, como o demonstrava o percurso do Monte de Outeiro, a primeira herdade ocupada já em dezembro de 1974.
A ideia de medidas socializantes ganhava terreno até entre aqueles sectores da classe trabalhadora que, pela sua posição privilegiada como “aristocracia operária”, poderiam quiçá, estar mais imunes ao vírus da revolução social. Mas não! A 2 de janeiro de 75, por exemplo, a Assembleia-Geral do Sindicato dos Bancários em Lisboa exigia ao governo a nacionalização do setor de forma a “defender os interesses do povo português contra o imperialismo, os capitalistas e os latifundiários”.
Desta forma, o novo surto de lutas operárias que precedeu o 11 de março foi marcado por reivindicações e propósitos bem diferentes dos que determinaram as lutas de maio/junho de 74. Não se tratava de obter mais regalias, não tinham as lutas um carácter ofensivo, pois a grande preocupação dos trabalhadores era manter as conquistas que tinham alcançado, mas (e tratava-se de um grande “mas”) batalhões inteiros da classe trabalhadora tinham chegado a essa formidável conclusão de que, para conseguirem manter os avanços sociais da revolução, esta tinha de ir até ao seu natural corolário, isto é: até à expropriação dos capitalistas! Sob a experiência da revolução os trabalhadores portugueses aprendiam depressa…
É neste quadro de radicalização operária, agravado pela polémica aprovação da Lei da Unicidade Sindical e o crescente temor da burguesia pela “sovietização” do país, que se deve entender o último golpe do general Spínola, em vésperas das eleições para a Assembleia Constituinte que, seguramente, iria conceder uma expressiva vitória à esquerda. Em Dezembro de 1974 tinha-se iniciado o recenseamento eleitoral que conferiu o direito a voto a mais de 6 200 000 portugueses, o que constituía um salto enorme em relação aos 1 800 000 que um ano antes (em 1973) detinham o “direito” formal de participar nas eleições viciadas pela ditadura!
Intentona para a esquerda, inventona para a direita. Na verdade, o 11 de março foi uma pueril e desastrada tentativa de golpe de Estado. Informado por serviços secretos de países “amigos” que se preparava a liquidação ou detenção de cerca de quinhentos militares e mil civis numa operação designada por “Matança da Páscoa”, a cargo da esquerda do MFA e da LUAR (organização política de inspiração guevarista), o general Spínola e seus acólitos, reunidos aos sectores da extrema-direita na Força Aérea e ao grupo terrorista do ELP, decidiram antecipar-se ao suposto golpe. Suposto, pois, a dita lista da “Matança da Páscoa” nunca passou de um rumor. É possível que tenha sido tanto um pretexto invocado pelos golpistas como uma operação de contrainformação dos opositores de Spínola. Factual é que os apoiantes do general estavam preparados para atuar desde finais de janeiro de 1975, mas na hora decisiva ou não agiram ou atuaram de modo totalmente incompetente.
Os golpistas nem sequer contavam com o apoio de unidades que poderiam ser decisivas. Limitaram-se a cercar e bombardear o Regimento de Artilharia Ligeira nº1, a tomar conta da GNR do Carmo e a neutralizar os emissores do Rádio Clube Português em Porto Alto. Algum tempo depois do início do ataque ao RAL1, os paraquedistas que o cercavam reconheciam ter caído num logro, uma vez que a sua ação carecia de cobertura do Estado-maior. Pressionados e cercados pelos populares que, à semelhança do 28 de setembro, saíram à rua em defesa da revolução – igualmente presentes no cerco ao Carmo, ocupando o aeródromo de Coimbra, etc. – acabaram os sitiantes por confraternizar com os sitiados esfumando-se o golpe. Uma vez mais, a ação popular e operária constituía um fator de peso para tombar a vitória para o campo da esquerda militar.
Boa parte dos oficiais das Forças Armadas via, desde há algum tempo, com crescente preocupação, o rumo que tomava a revolução tal como ficara demonstrado, poucos dias antes do golpe, nas eleições para os Conselhos de Armas no Exército ganhas pelos conservadores, não se elegendo sequer oficiais do núcleo duro do MFA como Melo Antunes, Otelo ou Charais.
Todavia, chegada a hora da verdade, sentindo a força da classe trabalhadora, não se atreveu o oficialato (para frustração de Spínola) a lançar-se num golpe. Do terceiro malogro spinolista resultou um morto (o soldado Luís do RAL 1 imortalizado em música de José Afonso), a fuga de Spínola e dos seus mais próximos oficiais para a Espanha franquista, a efetiva institucionalização do MFA, a viragem à esquerda do novo governo provisório (IV) e a adoção de medidas socializantes como as nacionalizações, impostas pelos setores mais radicalizados da classe trabalhadora e do oficialato do MFA.
As consequências do 11 de Março
Marx costumava dizer que, por vezes, a revolução necessita do “chicote” da contrarrevolução, isto é: que numa situação de impasse, em certas situações, as tentativas da burguesia em travar o curso da revolução e recuperar a iniciativa política apenas redundam numa maior radicalização do processo. Foi o que sucedeu em Portugal!
A revolução, após o 11 de março, acelerou o passo. Ao contrário do que os líderes dos partidos de esquerda julgavam (ou faziam crer…), foram os seus próprios militantes e ativistas, os trabalhadores, enfim, quem provou que não era necessário esperar anos ou gerações, mas apenas algumas horas para tomar medidas sérias que respondessem à crise e desarmassem o grande capital que insistia em aventuras golpistas contra a revolução.
É verdade que, ao contrário do que habitualmente se diz, o país não foi estatizado em consequência do 11 de março. Primeiro, porque não se tocou no capital externo de modo a evitar represálias internacionais; depois, porque muitas empresas nacionais de dimensões consideráveis não foram expropriadas, sobretudo no Norte do país. Como resultado, embora Portugal ficasse com um dos sectores públicos de maior envergadura na Europa Ocidental, não se diferenciava muito de países como a França, a Itália, a Grã-Bretanha ou a Alemanha Federal no que respeitava à contribuição do sector público empresarial no total da participação do PIB, emprego ou formação bruta de capital. De resto e sobretudo, não existiu em momento algum uma planificação da atividade económica democraticamente decidida pelos trabalhadores. As empresas públicas continuaram a funcionar num sistema de “livre concorrência”, segundo as regras da economia capitalista, sem coordenarem esforços, sem serem geridas pelos seus trabalhadores, mas por gestores nomeados no âmbito do Estado burguês – gestores, eles próprios, quantas vezes não hostis até às próprias nacionalizações!
No entanto, essas nacionalizações tinham sido tomadas em condições muito particulares. Eram resultado não de estudos e debates parlamentares, mas pelo contrário, o resultado óbvio da ação revolucionária das massas. Basta consultar os jornais da época, ver as fotografias desse 11 de março de 75, para perceber como espontaneamente, sem um prévio plano ou uma palavra de ordem central, os bancários decidiram no dia do golpe entrar em greve, ocupar os bancos, congelar a movimentação de capitais e afixar na fachada das dependências bancárias grandes cartazes proclamando “Banco do Povo”, ao mesmo tempo que exigiam a nacionalização dos mesmos sob pena destes não serem reabertos!
Eles sabiam bem, através da movimentação de capitais, quem sabotava, quem conspirava, quem tentava destruir a revolução… Não houve clemência ou indemnizações. Depois dos bancos foi a vez dos seguros e uma vez que a banca e os seguros possuíam ou tinham participação numa série de empresas básicas do país, a expropriação destas tornou-se não só simples, como absolutamente lógica e em sintonia com o que era já exigido pelos trabalhadores dessas empresas. Simultaneamente, a autogestão operária alastrava entre muitas pequenas e médias empresas; nos campos do Sul, num terço do país, a Reforma Agrária avançava pela pressão vinda de baixo, dos jornaleiros que, para salvarem empregos, alfaias agrícolas, gado e colheitas, não tinham outro caminho senão a ocupação das terras para travar a criminosa sabotagem dos latifundiários. Um pouco por todo o país, sobretudo em torno da Lisboa Vermelha e no Sul, existiam centenas, se não milhares de comissões de trabalhadores, moradores, estudante e até de soldados e de marinheiros sendo criadas para conduzir as lutas! Eram os embriões dos sovietes que não chegámos a ter pois nenhum partido levantou como bandeira a sua unificação a nível local, regional e nacional, como órgãos não apenas de luta, mas também de autodefesa, de gestão dos quotidianos do trabalho e das atividades da classe trabalhadora; órgãos cuja direção estaria permanentemente sob jurisdição e controle da classe, órgãos destinados quebrar e a substituir a maquinaria estatal burguesa.
A 11 de Março de 1975 (e nos meses seguintes) a classe trabalhadora portuguesa teve a chance de erradicar o capitalismo e levar a cabo as tarefas socialistas da revolução, o que, por sua vez, iria inspirar e galvanizar a classe operária que em Espanha lutava no estertor do franquismo e os trabalhadores de toda a Europa. Infelizmente, tínhamos todas as condições reunidas, menos uma: a existência dum partido revolucionário de massas, dum partido de com um programa e uma ação independentes da burguesia, dos seus governos provisórios e das alianças subordinadas aos militares “progressistas” do MFA, capaz de unir a classe trabalhadora para lutar não pela “revolução democrática”, mas pela transformação socialista da sociedade.
Construir essa organização revolucionária de massas, com implantação no seio da classe, forjada na teoria e na luta, com tradições, método e programa é a tarefa mais urgente dos nossos dias, para que não tenhamos que esperar outros cinquenta anos e para que na próxima oportunidade revolucionária possamos vencer. A ti que nos lês, convidamos-te a juntar-te a nós nesse desígnio: junta-te ao Coletivo Comunista Revolucionário!