Aonde vai a China?

Publicamos aqui a introdução de Fred Weston à nova edição do livro “China: da revolução permamente à contrarrevolução” (Wellred 2025). Esta introdução resume as tendências principais da economia e da política China no último século, com especial destaque nos desenvolvimentos da última década. Após ter expropriado a burguesia e ter estabelecido uma economia planificada (embora altamente burocratizada), o Partido Comunista Chinês (PCC) sob Deng Xiaoping acabou por restaurar o capitalismo, tornando a China num importante palco para os investimentos ocidentais nos anos 1990. Porém, o capitalismo chinês foi desenvolvendo-se até tornar-se num poderoso concorrente para os EUA e a Europa; tornando-se, com efeito, numa grande potência imperialista. Mas ao restaurar o capitalismo, a burocracia do PCC também se expôs a todas as suas contradições e criou o seu coveiro, um jovem e poderoso proletariado, preparando o terreno para a luta de classes. A política de Xi Jingping, de ataques à corrupção e de adopção de uma estética maoista, enquanto intensifica a repressão, reflete o seu medo às tensões sociais que estão a acumular-se. Na esquerda portuguesa existe uma forte corrente apologista ou até entusiasta pelo “socialismo” chinês. É importante estudarmos a trajetória da China, abandonando o impressionismo e a propaganda do PCC e adoptando o método de análise marxista.

Artigo de Fred Weston

A presente obra foi publicada pela primeira vez em fevereiro de 2016. Apresenta uma descrição marxista da história da China na era moderna, que se tornou atualmente um dos países mais importantes do ponto de vista da revolução mundial. O âmbito da obra original é vasto, começando no final da dinastia Ǫing, no início do século XX, e continuando até ao primeiro mandato de Xi Jinping como líder supremo do país.

Ao longo desta panorâmica histórica, o livro explica como a China conseguiu finalmente libertar-se dos grilhões do atraso, do latifúndio e da dominação imperialista através da Revolução Chinesa de 1949, que não foi conseguida por iniciativa burguesia nacional, mas através de um processo sinuoso e contraditório que produziu o Estado da República Popular da China, dirigido por um Partido Comunista que expropriou o capitalismo e estabeleceu uma economia planificada nacionalizada.

O processo através do qual isso foi conseguido confirma a teoria marxista e, acima de tudo – embora de forma distorcida -, a teoria da Revolução Permanente de Leon Trotsky, que afirmava que os problemas dos povos coloniais não podiam ser resolvidos dentro dos estreitos limites do capitalismo. A Revolução Chinesa libertou milhões de trabalhadores da exploração e subjugação do latifúndio, do capitalismo e do imperialismo a uma escala histórica. É por isso que os marxistas consideram esta revolução como o segundo acontecimento mais importante da história da humanidade, depois da Revolução Russa de 1917.

No entanto, os marxistas também compreendem que o Estado que foi produzido por esta revolução foi modelado não segundo a democracia operária observada nos primórdios da Rússia Soviética sob a liderança de Vladimir Lenine e Leon Trotsky, mas segundo o regime profundamente burocratizado de Joseph Estaline, em que a classe operária foi despojada do seu poder político por uma casta de burocratas estatais egoístas que comandavam a economia planificada.

Este livro descreve como, apesar das intenções originais dos líderes da revolução, sobretudo de Mao Zedong, que previam um governo de coligação com os elementos “patrióticos e progressistas” da burguesia nacional chinesa, os acontecimentos rapidamente obrigaram o novo regime a derrubar o capitalismo e a instituir medidas que puseram em prática uma economia planificada, para garantir a sobrevivência da revolução. Esta foi a prova concreta de que a revolução chinesa não podia limitar-se à “fase” democrático-burguesa. Se o regime não tivesse avançado na direção da expropriação do capitalismo, então a alternativa teria sido o regresso a um regime semelhante ao de Chiang Kai-shek, em vez do desenvolvimento da democracia burguesa.

No processo, porém, por várias razões subjectivas e objectivas que este livro detalha, a República Popular da China seguiu o caminho da URSS sob Estaline, com todos os seus pontos fortes e deficiências importantes. Mas a realização de uma economia planificada nacionalizada, uma tarefa fundamental para a transição para o socialismo, em defesa de um regime revolucionário, validou por si só a teoria da Revolução Permanente de Trotsky, daí o título do livro.

A economia planificada libertou milhões de pessoas dos grilhões de séculos de servidão dos proprietários. Levou à industrialização a uma escala nunca vista antes da revolução e eliminou drasticamente o desemprego, o analfabetismo e o atraso num país de dimensão continental. Quebrou todas as correntes que estavam a impedir a China de entrar na era moderna. A revolução pôs fim a décadas de humilhação e de dominação imperialista e permitiu que o país, que sempre tinha estado repleto de enormes potencialidades, se erguesse como uma força importante na cena mundial.

Os resultados da Revolução Chinesa de 1949 foram, por sua vez, um estímulo importante para vaga de revoluções que se verificou em todo o mundo após o fim da Segunda Guerra Mundial e inspiraram gerações de revolucionários que também viviam sob o domínio imperialista a lançarem-se na luta para libertar as suas nações do capitalismo.

No entanto, a liderança em torno de Mao e do PCC herdou duas grandes fraquezas teóricas da URSS estalinista. Uma era a perspetiva do “socialismo num só país”, que na prática negligenciava a tarefa de preparar ativamente um partido mundial para a revolução socialista

– uma verdadeira internacional comunista – para espalhar a revolução internacional nos países capitalistas avançados, para acabar com o capitalismo à escala mundial. A outra – que decorreu da ascensão de uma burocracia acima da classe trabalhadora – foi a falta de democracia operária e a subsequente submissão do Estado operário ao domínio de um partido único.

Na sua obra seminal A Revolução Traída, escrita em 1936, Trotsky explicou que a transformação socialista da sociedade, embora possa começar num país, só pode ser verdadeiramente consolidada quando o socialismo substituir o capitalismo como sistema mundial dominante. Se a direção política de um Estado operário continuasse a limitar a revolução dentro das suas fronteiras nacionais, sujeitaria a revolução a constantes pressões contra-revolucionárias do capitalismo. E se o Estado operário continuasse a impedir que os trabalhadores dirigissem democraticamente a sociedade de baixo para cima, então as ineficiências, a corrupção e as falhas subjectivas de um pequeno punhado de burocratas tornar-se-iam, a dada altura, um obstáculo absoluto ao desenvolvimento da economia planificada, e nesse momento arriscariam o enfraquecimento e a destruição da revolução.

É importante ressaltar que Trotsky ofereceu três resultados potenciais para a URSS. Um deles era que os trabalhadores organizariam uma revolução política para derrubar a ditadura burocrática, acabando assim com a contradição entre o planeamento nacionalista e burocrático e revitalizando a economia planificada e renovando a revolução mundial. A segunda era a de que essa revolução política poderia não acontecer, e o Estado – sob o peso dos defeitos burocráticos – acabaria por sucumbir a uma contrarrevolução que restauraria o capitalismo. A terceira perspetiva era que, dentro da própria burocracia, uma camada crescente viria a ver a restauração do capitalismo como um meio de escapar às contradições de uma economia planificada burocratizada, mantendo os seus próprios interesses e privilégios.

Décadas mais tarde, o prognóstico marxista de Trotsky seria confirmado pela história. Os regimes da URSS e da Europa de Leste começaram por assistir a um drástico abrandamento do crescimento económico e acabaram por sofrer um colapso atrás do outro. Até hoje, as massas continuam a sofrer as consequências da restauração do capitalismo.

A China, também atormentada pelos problemas da burocracia na sua economia planificada, que são delineados neste livro, seguiu o terceiro prognóstico de Trotsky, onde o regime do PCC sob a liderança de Deng Xiaoping inaugurou a política de “Reforma e ” que acabou por levar ao desmantelamento da economia planificada e de todos os seus ganhos, enquanto o PCC continuou a manter um controlo firme sobre o aparelho de Estado.

Embora o partido-estado continue a controlar muitas das principais empresas e bancos estatais, a economia já não é conduzida por um plano económico, mas pelas caraterísticas fundamentais do capitalismo: o mercado anárquico, a procura do lucro e propriedade privada dos meios de produção.

O presente texto analisa em pormenor o processo acima referido, que inclui os principais acontecimentos ocorridos durante o período de liderança de Mao Zedong, como a Guerra da Coreia, o Grande Salto em Frente, a Cisão Sino-Soviética e a Grande Revolução Cultural Proletária. Aborda também a forma como, posteriormente, a tentativa de Deng Xiaoping de resolver as contradições internas do tempo de Mao acabou por restaurar o capitalismo. O facto de a contrarrevolução não ter ocorrido como um ato único, com o derrube da burocracia, mas ter sido alcançada sob o controlo da própria burocracia, gradualmente, através de uma série de passos sucessivos, confundiu alguns na esquerda. No entanto, foi isso que aconteceu. Os marxistas devem ter sempre em conta o processo vivo real e não tentar sobrepor à realidade a sua própria visão preconcebida de como “as coisas deviam ser”.

O livro traça então o desenvolvimento do capitalismo na República Popular da China até quase ao final do primeiro mandato de Xi Jinping, que assumiu a liderança em 2012. O atual regime do PCC gosta de apontar o dramático desenvolvimento económico após a sua viragem para o capitalismo (ou aquilo que chamam “economia socialista de mercado” ou “socialismo com caraterísticas chinesas”) como prova do seu sucesso.

No entanto, a verdade é concreta e este livro explica como esse desenvolvimento foi alimentado principalmente pela integração da China na economia capitalista mundial, o que deu aos capitalistas ocidentais, que necessitavam urgentemente de novas oportunidades de investimento, um novo e lucrativo campo de investimento, prolongando assim a vida do capitalismo como sistema mundial durante algum tempo.

Este livro mostra também que, embora um período de rápido crescimento económico parecesse encobrir as contradições da sociedade, as contradições típicas do capitalismo, como a desigualdade, o desemprego, a supressão dos interesses dos trabalhadores e, acima de tudo, a superprodução, estavam, no entanto, a crescer em segundo plano, o que, por sua vez, levou ao surgimento da luta de classes sob um regime capitalista totalitário de partido único.

Desde a sua publicação, há oito anos, ocorreram algumas mudanças qualitativas no desenvolvimento da China que devem ser destacadas e que têm um significado decisivo para as perspectivas da revolução mundial atual. Embora muitos destes processos estivessem numa fase incipiente na altura em que este livro foi publicado, desenvolveram-se desde então em elementos importantes que alteraram a posição da China. É sobre estas mudanças que este novo avanço pretende debruçar-se.

Um elemento-chave é o facto de a China ter evoluído economicamente, deixando de ter uma relação profundamente simbiótica com os investimentos ocidentais, para se tornar um concorrente primordial do Ocidente em termos de quota de mercado mundial e de influência. Embora a sua economia continue a depender fortemente da exportação de produtos de base, a China deixou de ser essencialmente um importador de investimento direto estrangeiro (IDE) para se tornar o terceiro maior exportador de IDE do mundo.

De acordo com a fDi Markets, uma subsidiária do Financial Times, em 2023, o investimento externo da China atingiu um novo máximo de 162,7 mil milhões de dólares e o rácio entre o investimento externo e o investimento interno é de 82,1 por cento para 17,8 por cento. Embora uma parte significativa dos investimentos chineses se destine ao Sudeste Asiático, estes ultrapassaram largamente as suas fronteiras e chegaram a todos os continentes do mundo, com os investimentos no Médio Oriente e na América Latina a crescerem particularmente depressa em 2023.

Esta evolução é determinada pela força crescente do capital nacional da China, bem como pela saída do capital ocidental da China. A FDI Intelligence resumiu a mudança da seguinte forma:

“O perfil do IDE da China parece estar a sofrer uma mudança significativa, de importador de capitais para exportador de capitais. Durante décadas, a estratégia de crescimento económico da China baseou-se fortemente na atração de IDE para alavancar o capital e a tecnologia estrangeiros. À medida que a economia chinesa evolui e desenvolve os seus próprios campeões nacionais, a sua necessidade de IDE – especialmente na indústria transformadora – . Entretanto, atrair IDE para serviços de elevado valor acrescentado, a que o governo deu prioridade, está a revelar-se mais difícil do que o esperado.”

Ao mesmo tempo, o Estado chinês coordenou com as empresas privadas chinesas e os governos beneficiários dos seus investimentos a construção de enormes projectos de infra- estruturas. É o que se designa por programa “Uma Faixa, Uma Rota”.

Muitos destes investimentos forneceram infra-estruturas internas aos países beneficiários em troca da abertura destes últimos aos investimentos chineses noutras áreas da economia.

O Laos, por exemplo, foi presenteado pelos chineses com um caminho de ferro de alta velocidade que o ligaria à China e ao resto do Sudeste Asiático. Em troca, o Laos permitiria que Boten, uma pequena cidade perto da fronteira com a China e uma das paragens do caminho de ferro de alta velocidade, fosse incorporada numa “zona de cooperação especial”, onde os investidores chineses são autorizados a deter 100% das empresas e propriedades.

Outros projectos têm um carácter transnacional e visam agilizar a exportação de mercadorias do interior da China para o resto do mercado mundial. No Paquistão, no Sri Lanka, em Myanmar e no Peru, a China assinou acordos para financiar a construção de megaportos que se tornariam alternativas às rotas comerciais marítimas existentes, com a condição de estes portos e as suas áreas adjacentes serem colocados sob gestão chinesa direta. O caminho de ferro de alta velocidade no Laos, acima mencionado, fazia parte de um plano mais vasto para o Sudeste Asiático que ligaria Kunming, na China, a Singapura, um importante porto regional. Estes projectos fazem parte de um plano para criar uma forte pressão concorrencial em rotas comerciais como o Estreito de Malaca, que está sob maior influência ocidental.

Paralelamente, assistiu-se a uma evolução para as indústrias de alta tecnologia e à criação de gigantescas empresas privadas de tecnologia que rivalizam atualmente com as do Ocidente. Este fenómeno, inédito até à segunda metade da década de 2010, significou um avanço significativo no sentido da independência em relação à tecnologia do Ocidente.

A China tornou-se o maior produtor de veículos eléctricos (VE) do mundo em 2022, quando produziu 64% dos VE do mundo. Fez progressos significativos nas tecnologias de drones produzidos internamente, na inteligência artificial, no fabrico de microchips, nos sistemas operativos de smartphones e muito mais. Todos estes esforços são incentivados pela política estatal com subsídios às empresas privadas, com o objetivo de acabar com a dependência da China dos componentes fornecidos pelo Ocidente e de competir com eles mercado mundial.

Todos estes desenvolvimentos na economia capitalista chinesa – o surgimento de enormes monopólios, o domínio do capital financeiro e a intensificação da exportação de capitais para conquistar uma maior quota do mercado mundial – apontam para a definição clássica de

imperialismo que Lenine delineou na sua obra Imperialismo: a fase mais elevada do capitalismo.

Um confronto com o imperialismo norte-americano, a potência imperialista dominante e envelhecida no mundo, estava inevitavelmente a ser preparado. De facto, este confronto veio ao de cima com a eleição de Donald Trump em 2016. Embora os EUA já tivessem usado anteriormente manobras dissimuladas contra a China, a administração Trump rapidamente escalou esta situação para uma guerra comercial aberta. As relações superficiais, cordiais e de colaboração entre as duas potências deixaram de existir. Em vez disso, surgiu uma nova e intensa rivalidade entre os EUA e a China.

Esta rivalidade, por sua vez, tornou-se um eixo definidor em torno do qual estava a nascer uma nova época das relações mundiais. À medida que o imperialismo americano entrava em declínio relativo mas notável, as suas tentativas desesperadas de se agarrar ao seu domínio obrigaram- no a adotar políticas aventureiras para dissuadir todos os seus adversários, sobretudo a China.

A administração Biden, que sucedeu à primeira presidência Trump, não só não facilitou as relações, como, em muitos aspectos, escalou o conflito para além do domínio económico, com cada vez mais tentativas de pressionar a China na frente militar, utilizando cinicamente a questão de Taiwan. A guerra na Ucrânia, que foi em grande parte provocada pelos EUA e pela NATO, foi também uma tentativa de dissuadir a China através da derrota do seu aliado Rússia, uma mensagem que não passou despercebida a Pequim.

No entanto, o projeto da administração Biden saiu decisivamente pela culatra. O comportamento dos Estados Unidos não só não conseguiu derrotar a Rússia, como a fortaleceu enquanto potência militar. Também enfraqueceu economicamente os seus aliados tradicionais na Europa – especialmente a Alemanha – e contribuiu para uma fratura crescente no seio da UE. Além disso, aproximou todos os seus adversários em diferentes regiões, especialmente a China, a Rússia, o Irão e a Coreia do Norte. Entre estes, a China é o candidato natural a líder de um novo bloco. De facto, os BRICS, com a China à cabeça, começam a alargar o seu número de membros, numa tentativa de desafiar a ordem capitalista mundial até agora dominada pelos países imperialistas ocidentais. Continua a ser uma coligação de países com interesses diferentes – alguns deles ainda aliados ao imperialismo norte-americano, como a Índia, por exemplo – mas, apesar disso, reflecte a alteração do equilíbrio de forças entre as grandes potências

Para além , a nova época de guerras comerciais abertas, inaugurada pelo primeiro mandato de Trump, também cedeu à China o papel dos EUA como principal defensor mundial do comércio livre. Isso se encaixa nas condições do desenvolvimento capitalista de cada parte. Os EUA são uma força senil desesperada por tentar qualquer coisa para travar o seu inevitável declínio relativo no mundo. A China é ainda um recém-chegado ao imperialismo que está a procurar desesperadamente formas de exportar as suas mercadorias e capitais sobreproduzidos.

Assim, ao contrário do que os apologistas de “esquerda” da China em todo o mundo tendem a afirmar, o carácter do atual conflito entre os EUA e a China não é um conflito entre dois sistemas sociais diferentes. Os EUA confrontam a China não como um campeão do capitalismo desesperado por eliminar uma nova sociedade socialista emergente que o poderia derrubar, com todo o seu progressismo e vitalidade históricos, mas como um rival no mesmo jogo de póquer.

Ambos estão a tentar ganhar , com os EUA a perder e a China a ganhar, mas ambos estão empenhados em permanecer no jogo. Mas o casino está a arder. Enquanto o capitalismo mundial se afunda num declínio terminal, o destino do capitalismo chinês está ligado a ele.

O relato apresentado neste livro, que cobre os desenvolvimentos até 2015, permite ver claramente que os desenvolvimentos furiosos na China, alimentados por investimentos estrangeiros, já mostravam sinais clássicos de uma crise de sobreprodução iminente. Esta, por sua vez, produziu todos os mesmos sintomas observados no Ocidente: o abismo entre ricos e pobres, o aumento do custo de vida que os salários parecem nunca conseguir acompanhar, o ciclo cada vez mais selvagem que oscila entre booms e busts, o crescimento acelerado da dívida pública e privada e a mãe de todos os enigmas capitalistas – o abrandamento económico. Este é agora um refrão doloroso de todos os comentadores económicos chineses: “procura interna insuficiente”.

Paralelamente a isso, inúmeras contradições sociais se manifestaram na sociedade chinesa. A responsabilidade por elas recaiu sobre os ombros do único ator na esfera política que poderia tentar mitigá-las: o partido-estado PCC. Ao contrário das democracias burguesas, que podem confundir e aliviar temporariamente a raiva de classe vinda de baixo através da eleição de diferentes partidos ou coligações – todos eles defendendo fundamentalmente o capitalismo – a raiva de classe só pode ser canalizada numa direção na China, e essa direção é para o próprio Partido Comunista da China.

A tentativa da geração Deng de alcançar o melhor de todos os mundos, ou seja, restaurar o capitalismo sem acabar com a ditadura política do partido, deixou de ser uma solução para a burocracia para se tornar um problema sério para eles. O PCC restaurou o capitalismo prometendo que, enquanto o partido mantivesse o poder político, haveria um crescimento eterno na economia e no padrão de vida. O regime está agora confrontado com o contrário, experimentado por centenas de milhões de trabalhadores.

Esta contradição e a crescente fermentação no seio da sociedade explicam, por sua vez, a evolução do regime de Xi Jinping.

Quando tomou posse como sucessor da liderança de Hu Jintao, Xi era uma figura pouco conhecida no país e no estrangeiro. Sendo um dos filhos dos grandes da era revolucionária, o percurso de Xi até ao topo foi mais apoiado pelo seu pedigree do que pelas suas realizações efectivas em vários níveis de cargos.

Xi é diferente de Jiang Zemin, que falava confortavelmente inglês e russo com os intrusos da imprensa estrangeira, a fim de apresentar a China sob uma determinada luz para os seus próprios interesses. Xi é também diferente de Hu Jintao, que se sentia à vontade para aparecer entre as massas, especialmente em tempos de catástrofes naturais, com uma fachada cândida e compassiva. Xi não é dotado de competência, nem de carisma, nem de afabilidade. Como é que, portanto, se tornou o homem amplamente considerado como o líder mais poderoso do PCC desde Mao Zedong?

A resposta reside na sua capacidade específica de ver antecipadamente os perigos que toda a burocracia enfrenta. Ao observar as mobilizações de massas da primavera Árabe, em 2011, conseguiu ver como as coisas se poderiam passar na China num momento de crise grave.

Concluiu, portanto, que era necessário um reforço preventivo do controlo para que todo o regime .

Xi foi um dos primeiros responsáveis notáveis a fazer soar o alarme de que o destino dos ditadores do Médio Oriente poderia ser replicado na China se não fossem tomadas medidas para alterar a imagem do PCC como um regime profundamente corroído pela corrupção. Esta campanha anti-corrupção tornou-se a sua política de assinatura, ao ponto de ter quebrado uma regra há muito estabelecida ao prender Zhou Yongkang, um antigo dirigente de topo até então considerado intocável.

Isto não foi feito para acabar genuinamente com a corrupção, uma vez que todas as camadas da burocracia retiram agora os seus privilégios não de uma economia planeada, mas do capitalismo. Foi feito para enganar a classe trabalhadora, cuja raiva estava a aproximar-se de um perigoso pico febril.

Depois, havia o problema da quadratura do círculo de uma economia que já estava completamente dominada pelas forças do mercado anárquico, bem como pela poderosa burguesia que dele emergia. Estes elementos burgueses tinham sido essencialmente alimentados pela burocracia, mas como é da natureza da classe burguesa procurar naturalmente maiores lucros, isso levou alguns deles a adotar medidas que poderiam desestabilizar a situação social no país.

Ninguém exemplificou melhor este facto do que Jack Ma, que era um aliado próximo de Xi quando este último era governador da província de Zhejiang. Jack Ma era um burguês que passou de professor de inglês a bilionário, proprietário do conglomerado Alibaba e membro do PCC.

Quando o império empresarial de Ma se expandiu para o sector financeiro, tentou introduzir um esquema que concedia empréstimos baratos a milhões de pessoas a uma velocidade sem precedentes no Ocidente, o que corria o risco de produzir uma grave bolha que poderia ameaçar a estabilidade da economia. Foi o que aconteceu com o Ant Group. O Estado tentou intervir para travar os planos de Ma e, mais tarde, este queixou-se publicamente da “excessiva intervenção do Estado”, pelo que acabou por ser afastado do controlo da empresa pelo Estado, tendo a empresa sido colocada sob forte controlo estatal.

O que aconteceu com Ma foi um exemplo típico do Estado do PCC sob a liderança de Xi. A sua estratégia consiste em aumentar a supervisão das maiores empresas, impedindo-as de se envolverem nos excessos observados no Ocidente, que poderiam desencadear crises económicas e provocar a ira social. Ao mesmo tempo, Xi pretende abster-se de controlar totalmente a economia e defender a economia de mercado capitalista a todo o custo. Para o efeito, é necessário reforçar a burocracia do partido-estado. Foi isso que Xi pediu, o que lhe valeu o apoio de uma parte decisiva da burocracia, o que lhe permitiu concentrar mais poder nas suas próprias mãos.

A burocracia sob Xi acredita que, através da administração sábia e poderosa do Estado, um sistema capitalista pode ser afastado de todas as suas contradições fundamentais. Acreditam que as revoltas dos trabalhadores podem ser reprimidas com medidas repressivas pesadas, enquanto os capitalistas individuais que correm o risco de desestabilizar o sistema como um todo podem ser mantidos sob controlo pelo Estado. A ideia é manter uma forma de capitalismo sem crises.

Mas isso não passa de um sonho. Não se pode ter capitalismo sem as suas crises cíclicas, que, por sua vez, preparam uma grave recessão a dada altura. As leis do capitalismo não mudam pelo simples facto de se ter uma burocracia poderosa e enraizada no poder.

O que a China produz tem de ser vendido no mercado mundial. O desenvolvimento pela China de um aparelho produtivo avançado e competitivo conduz inevitavelmente a conflitos cada vez maiores e mais acentuados com as outras grandes potências capitalistas, em particular com os Estados Unidos.

A China precisa de conquistar maiores quotas de novos mercados a nível mundial se quiser manter um elevado ritmo de desenvolvimento económico. O desenvolvimento do país produziu uma migração constante para as cidades, algo a que assistimos em todos os países que passam pelo processo de industrialização e urbanização. Isto exige a criação de dezenas de milhões de postos de trabalho por ano, a fim de manter a estabilidade social. O abrandamento da

economia mundial, combinada com a tendência crescente para o protecionismo à escala global, significa que a China enfrentará uma instabilidade interna crescente.

Enquanto o regime de Xi pudesse garantir o crescimento e a melhoria do nível de vida, a coesão social poderia ser mantida. Mas quando isso deixa de acontecer, o desemprego começa a aparecer, e isso já é evidente entre os jovens, onde a taxa de desemprego ultrapassou os 20% a partir de 2023. A inflação ainda é baixa em comparação com a maioria dos concorrentes da China, mas está a subir lentamente. Embora os salários continuem a aumentar, a taxa de crescimento começou a abrandar. Há também o importante fenómeno dos salários não pagos, que já deu origem a protestos dos trabalhadores. Os salários nominais podem , mas se os trabalhadores não são pagos, onde está o benefício material?

Podemos ver para onde isto está a . A dada altura, a pressão para manter os salários baixos irá aumentar, à medida que o capitalismo chinês tenta manter a sua vantagem competitiva. A disto, acabaremos por ver os efeitos da acumulação maciça de dívida economia chinesa. Em dezembro de 2023, a dívida nacional da China tinha atingido o valor de

4 230 mil milhões de dólares. De acordo com os números do FMI produzidos em 2025, o rácio da dívida pública da China em relação ao PIB situa-se agora em mais de 90%, um histórico, enquanto a média de 1995 a 2023 foi pouco menos de metade desse valor. Em três anos, prevê-se ultrapasse os 100 por cento. A dada altura, este nível de dívida conduzirá a um aumento da inflação.

Tudo o que aqui foi dito aponta para uma inevitável erupção da luta de classes, que irá desestabilizar o regime. O potencial de protestos e mobilizações em massa ficou expresso no enorme movimento que forçou o regime a pôr termo ao confinamento devido à COVID-19. A pressão vinda de baixo foi tal que o regime foi obrigado a afrouxar a pressão vinda de cima, com receio de desencadear uma onda ainda mais vasta e incontrolável de protestos de massas. Este facto permitiu vislumbrar aquilo de que os trabalhadores e a juventude da China são capazes e constituiu um aviso para as pessoas no topo do regime.

Isto explica o facto de Xi Jinping ter concentrado poderes nas suas mãos. É a ascensão clássica de um Bonapartista que está a tentar governar a China no interesse geral do sistema capitalista. Isto pode implicar fazer algumas concessões à classe trabalhadora, como obrigar as empresas a pagar os salários em atraso, e ao mesmo tempo desferir golpes contra capitalistas individuais cujas acções arriscam pôr em perigo os interesses do sistema como um todo, como exemplifica o caso de Jack Ma acima citado.

Isto também explica as tentativas do regime de dirigir a atenção das massas para o exterior, aumentando a ameaça de ataque de outras potências, em particular dos Estados Unidos. A entrada em cena de Trump facilitará, evidentemente, este processo para o regime. Trump tem sérios planos para espremer a China no mercado mundial. Isso começou há alguns anos, quando ele estava no cargo pela primeira vez, foi continuado durante o mandato de Biden, e podemos esperar que essa política seja intensificada durante o segundo mandato de Trump.

A China tornou-se uma potência imperialista em ascensão que tem vindo a espalhar a sua influência por todo o mundo com uma enorme exportação de capital, como explicámos acima. Mas com o poder económico, a um certo ponto, o poder militar torna-se necessário. De facto, a China, com uma despesa militar estimada em 296 mil milhões de dólares em 2023 – dez vezes mais do que há 25 anos -, fica atrás apenas dos Estados Unidos, com os seus 916 mil milhões de dólares.

A política expansionista da China é evidenciada pelas crescentes tensões em torno de Taiwan. Por um lado, isto reflecte o desejo real do regime de expandir e reforçar as suas esferas de influência, e Taiwan é vista pelo regime como parte integrante da China. Por outro lado,

é um desvio útil dos seus problemas internos. Quando uma classe dirigente se vê confrontada com crescentes problemas internos, económicos e sociais, que conduzem inevitavelmente a tensões entre as classes, poder centrar-se na “ameaça externa” é um meio de estimular o sentimento nacionalista.

O facto de Xi Jinping ter prestado alguma atenção à forma como as sanções ocidentais afectaram a economia russa após o início da guerra na Ucrânia é uma indicação da determinação da China em manter Taiwan na sua esfera de influência. A China possui mais de 3,3 biliões de dólares em reservas de divisas, as maiores do mundo. Os chineses viram como os EUA, juntamente com os seus aliados, conseguiram congelar os activos russos no estrangeiro. Para evitar este cenário no caso de uma crise grave em relação a Taiwan, o regime tem procurado diversificar as suas reservas no estrangeiro.

No entanto, independentemente do que o regime possa fazer para reforçar a sua posição e criar defesas contra essas sanções, não poderá evitar o impacto geral das mesmas na economia mundial no seu conjunto. O tipo de sanções que os EUA e os seus aliados ocidentais imporiam à China num tal cenário marcaria o início de uma guerra comercial generalizada, que empurraria toda a economia mundial para uma profunda depressão. Esta situação, por sua vez, teria um impacto maciço na economia chinesa. A China precisa de aumentar as suas exportações para manter o crescimento e a estabilidade. Um cenário deste tipo teria como resultado exatamente o contrário.

A razão pela qual a China está tão dependente das exportações é porque, como todas as economias capitalistas, iria inevitavelmente deparar-se com a crise de sobreprodução, que é visível em todo o lado. Juntamente com isto, temos os efeitos acumulados de todas as políticas que foram aplicadas para estimular a economia chinesa, nomeadamente as despesas estatais keynesianas. Isto produziu um outro efeito: a acumulação de dívidas.

Tudo isto está a conduzir a um inevitável abrandamento da economia chinesa. Oficialmente, o crescimento anual situa-se atualmente em cerca de 5 por cento, o que já é significativamente inferior aos dias de glória em que se assistia a um crescimento anual de 13 e 14 por cento.

Sempre foi aceite a ideia de que, se a China conseguisse manter pelo menos 7-8% de taxas de crescimento anuais, seria capaz de manter a estabilidade interna, criando cerca de 20 milhões de novos empregos por ano. Esse processo terminou, mas o crescimento está destinado a abrandar ainda mais, para menos de 4-5%, para 2-3%, e, a dada altura, poderemos assistir a uma verdadeira recessão económica.

Tudo isto está a contribuir para uma inevitável mudança de consciência, em que centenas de milhões de trabalhadores e jovens chineses começam a ver que, sob o capitalismo, não têm futuro. Isto explica as tentativas desesperadas do regime de Xi para manter a estabilidade. Fá-lo de duas maneiras. Por um lado, procura formas de expandir os seus mercados de exportação, mas vemos como isso está a esbarrar nos limites do mercado mundial. Por outro lado, o regime está a adotar medidas mais repressivas. A história, porém, mostra que não se pode governar apenas com a espada.

Tudo aponta para que, a dada altura, a economia entre numa crise grave. Isso reduzirá a margem de manobra do regime e daí resultará uma crise no seio do próprio regime.

Do atual regime, aparentemente estável, com o poder centrado topo, nas mãos de Xi, começaremos a ver fissuras a emergir, com diferentes facções dentro da burocracia a entrarem em conflito umas com as outras sobre a questão de como gerir o sistema. Quando isso acontecer, o caminho estará aberto para as massas entrarem em cena. A luta de classes irromperá numa escala nunca antes vista na história da China. E a

A beleza da situação é que as últimas décadas de rápido desenvolvimento da economia tiveram um efeito muito positivo: criaram um proletariado moderno e avançado. Os últimos dados disponíveis mostram que a grande maioria dos mais de 470 milhões de assalariados urbanos na China são trabalhadores, 30% dos quais são trabalhadores industriais.

Em termos objectivos, isso significa que o equilíbrio das forças de classe na China se tornou extremamente favorável à classe trabalhadora. Uma vez que essa classe se mova, nenhum poder na Terra a poderá deter. O que é necessário é um partido que possa conduzir essa classe a uma revolução socialista vitoriosa. Em 1921, um punhado de comunistas lançou o Partido Comunista Chinês como uma secção da Internacional Comunista. Nos seus primeiros anos, aderiu às ideias revolucionárias de Lenine. Em 1926, cresceu muito rapidamente à medida que a revolução se desenrolava. Esse momento deu-nos um vislumbre do que seria possível hoje.

O objetivo deste livro é trazer à luz a verdadeira história da luta de classes na China nos últimos cem anos. Agora a história completou o círculo, mas a um nível muito mais elevado. A sociedade chinesa está a caminhar para uma crise que libertará todo o potencial da classe trabalhadora chinesa. A tarefa dos marxistas é tirar todas as lições das experiências passadas para não repetir os erros do passado e traçar o caminho correto para a atual geração de comunistas revolucionários na China.

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