Editorial do Revolução, Jornal do CCR
Um dos grandes temas do “debate” político nas últimas semanas de 2024 foram os alegados abusos no acesso ao SNS por estrangeiros que a ele não teriam direito. Milagrosamente, por um tempo, deixou de haver listas de espera, mortes pelos atrasos na resposta do INEM, ou serviços de obstetrícia ou pediatria encerrados em número recorde. Tudo se resumia a este empolado “escândalo” que, de acordo com as estimativas, poderia representar até 15 milhões, ou menos de 0,1% do Orçamento da Saúde!
Dez vezes esses 15 milhões foi o que Montenegro ofereceu a Zelensky quando este veio a Portugal. Porém, o que tinha importância para o governo não era a verba irrisória, mas o valor duma demagogia sem preço que centra a discussão na disputa da escassez, enquanto os capitalistas enriquecem, também no negócio da saúde. Enfim, toda a direita se uniu no parlamento e foi aprovada legislação que fará milhares de imigrantes ilegais (muitos nessa condição pelas novas regras impostas pelo governo) deixem de ser beneficiários do SNS, mesmo que para ele descontem.
O mesmo governo que cessou a “manifestação de interesse”, dificultando o acesso à legalização por quem já cá vive e trabalha, que recorrentemente critica a alegada “política de portas-abertas” à imigração do anterior executivo, fez anunciar depois que, afinal, serão necessários mais de 100 mil imigrantes para que o sector da construção possa dar resposta às empreitadas e não se desperdicem 3 mil milhões do PPR! Aproveitando a boleia, os patrões foram ainda mais longe: A Confederação Empresarial de Portugal exige mais mão-de-obra imigrante e quer ainda que estes trabalhadores sejam coagidos a um período de permanência obrigatório nas empresas (como se vivêssemos na servidão feudal) … ou serem estas ressarcidas pelo Estado!
A imigração em Portugal
Num dos cinco países mais envelhecidos do mundo, com mais de meio milhão de trabalhadores portugueses que permanentemente saíram do país nos últimos anos, o capitalismo português não pode sobreviver sem o recurso à mão-de-obra imigrante e os baixos salários que lhe paga. Neste momento, pelo menos 1 em cada 5 empresas emprega trabalhadores imigrantes.
Estes últimos correspondem já a 40% da mão-de-obra nos setores das pescas e agricultura, 30% no alojamento e restauração, cerca de 30% nas atividades administrativas ou 25% da construção. Isto de acordo com os dados do Banco de Portugal. É provável que na realidade ainda sejam mais. Sem surpresas, os imigrantes ganham menos que os trabalhadores portugueses e com remunerações médias próximas do salário mínimo. Mas o que as estatísticas oficiais não apuram é a vulnerabilidade destes trabalhadores que acumulam os baixos salários com as tarefas mais extenuantes e perigosas, os longos horários e os abusos constantes.
A tudo isto somam-se a discriminação e o racismo disseminados na sociedade e nas instituições do Estado burguês. Como quotidianamente o demonstra a intervenção da polícia nos bairros operários mais pobres e racializados na periferia de Lisboa ou Porto, essa discriminação não termina quando (eventualmente) estes trabalhadores alcançam a cidadania portuguesa, nem sequer para com os seus filhos já nascidos em Portugal.
Ora os patrões e o governo sabem de tudo isto: o seu objetivo não é acabar ou “moralizar” a imigração (muito menos combater o racismo), antes ajustá-la às estritas necessidades económicas dos patrões e, ao mesmo tempo, usar um bode expiatório para a crise do capitalismo, aterrorizando os trabalhadores imigrantes, precarizando-os e fragilizando-os, usando o racismo para dividir os trabalhadores no seu conjunto e assim explorar-nos mais intensamente a todos, enquanto esquivam o escrutínio do falhanço das suas políticas e do seu sistema.
É por isso que se fazem rusgas na Rua do Benformoso com resultados policiais patéticos, para o número de agentes e meios envolvidos, como o foram a apreensão duma faca, alguma droga ou roupa contrafeita. O primeiro-ministro, em jeito de balanço, teve ainda a audácia de afirmar que “não são precisos muitos crimes para que haja um sentimento de insegurança”. Pois não: basta uma sistemática campanha de desinformação nos media tradicionais e nas redes sociais, com a extrema-direita e a direita dita “democrática” de mãos dadas, ou não tivesse Passos Coelho, já na última campanha eleitoral, dado o tiro de partida, conscientemente mentindo ao associar imigração à criminalidade e às “sensações de insegurança”!
Mas não há imigrantes a mais em Portugal! Na verdade, ainda hoje o país mal recuperou o número da população ativa que existia antes da crise financeira de 2008. Os trabalhadores migrantes não vêm, como diz a extrema-direita, “roubar” os empregos ou as casas aos portugueses. Aliás, não faltam casas em Portugal: estima-se que existam cerca de 730 mil casas vazias casas vazias e abandonadas; e mais de 100 mil estão (oficialmente) destinadas ao Alojamento Local. O aumento do custo da habitação é consequência não da chegada de imigrantes, mas da especulação imobiliária e do turismo desenfreado num país que, na Europa, está entre aqueles que mais novos hotéis constrói e menos habitação pública tem. De resto, se não fossem os imigrantes que trabalham na construção, haveria até ainda menos casas construídas ou recuperadas.
Porém, nós comunistas recusamos os argumentos “economicistas” para defender os imigrantes, que são bem-vindos porque “contribuem para a segurança social” ou porque são “essenciais à economia”, ou seja: à exploração capitalista. Nós defendemos estes trabalhadores migrantes porque eles são os nossos irmãos de classe, que têm o mesmo direito que temos nós, de procurar uma vida melhor e com quem nos temos de nos unir para derrubarmos o capitalismo que nos explora a todos e que, devido às guerras pela dominação imperialista, à pilhagem neocolonial e à devastação ambiental, empurram inevitavelmente milhões de trabalhadores dos países dominados pelo imperialismo para a imigração na Europa e nos Estados Unidos. Por isso opomo-nos a todas as barreiras à imigração: não só não funcionam, como apenas servem para dividir os trabalhadores
Esta é uma questão central que em nenhuma circunstância deve ser perdida de vista pelos comunistas: o racismo e a xenofobia não são “questões morais”, “entre a decência e o discurso do ódio”; mas questões de classe. Quando os políticos burgueses (como Ventura ou Montenegro) falam em restrições à imigração nunca pensam em acabar com os vistos gold ou limitar a entrada de “nómadas digitais”. Os ricos e os capitalistas nunca são imigrantes: são empreendedores e investidores.
A solução é a alternativa de classe e a luta revolucionária
Para nós comunistas, tanto a propriedade privada dos meios de produção como o Estado nacional são entraves a um desenvolvimento harmonioso e justo da sociedade. E opomo-nos a tudo o que possa dividir a classe trabalhadora, lutando pela sua união por cima de diferenças linguísticas, religiosas, culturais ou outras, por cima também de todas as fronteiras e de todos os nacionalismos serôdios: o racismo e a xenofobia ao serem usados contra um sector da classe trabalhadora são, na realidade, um ataque ao conjunto da classe e, nas palavras da Internacional Comunista de Lenine, é preciso “explicar às massas proletárias destes países que elas também sofrerão danos por causa do ódio racial suscitado por estas leis.”
A luta contra o racismo e a xenofobia não deve ser feita a partir duma perspetiva moralista como o fazem amiúde o Bloco e o PCP, mas sim através duma posição e de métodos de classe. E tampouco é uma questão secundária: a luta contra o racismo, a xenofobia e a estigmatização dos trabalhadores racializados e dos imigrantes é um combate central da classe trabalhadora que deve merecer o mais amplo esforço por parte das suas organizações, tanto no plano das grandes questões políticas, como na defesa sindical dos seus direitos laborais, como até no acolhimento e integração quotidiana (desde o ensino de português à assistência legal, etc.).
Temos, por isso, de defender acordos coletivos de trabalho para todos, salário igual para trabalho igual, concessão aos migrantes dos mesmos direitos que gozam os trabalhadores não migrantes, incluindo habitação, cuidados de saúde, prestações sociais, bem como o direito a voto. Temos também de insistir na criação de laços entre sindicatos a nível internacional e no reforço da unidade na ação entre as organizações da classe trabalhadora em todo o mundo: enquanto houver capitalismo com o seu cortejo de horrores, haverá imigração em massa e racismo. Tal abordagem será a melhor defesa dos trabalhadores contra as investidas e a demagogia da burguesia, mas é também a melhor preparação para uma revolução comunista mundial que, em última instância, resolverá estas questões.