Em 1964, o secretário-geral do PCP, Álvaro Cunhal, apresentava um longo relatório sobre as tarefas dos comunistas portugueses, que se transformaria no programa do partido durante a década seguinte. O documento, conhecido como Rumo à vitória, colocava o objetivo da revolução “democrática e nacional”, em aliança com as classes “não-monopolistas” da sociedade portuguesa, incluindo um setor da burguesia. Essa política guiaria o partido durante os acontecimentos de 1974-1975, quando se bateu não pelo socialismo, mas sim por uma democracia burguesa “avançada”, contribuindo a atrelar e travar a revolução. Os comunistas que hoje lutam pelo socialismo em Portugal devem olhar criticamente para a política do PCP no PREC e estudar as suas raízes teóricas, cujo máximo expoente é Rumo à vitória de Álvaro Cunhal.
Um barril de mel e uma colher de alcatrão
Cunhal faz uma denúncia muito eloquente do Estado Novo, cuja leitura ainda hoje comove e enche de raiva. Ele lança luz sobre a brutalidade, a corrupção e o obscurantismo do regime, tanto em Portugal como nas colónias. Afastando-se das abordagens moralistas ou subjetivistas, Cunhal procura compreender a natureza do salazarismo indo à sua base económica, nomeadamente o domínio dos monopólios. O alicerce do Estado Novo eram os grandes conglomerados capitalistas, coligados por sua vez aos latifundiários e ao capital imperialista internacional. A CUF, a Sociedade Comercial Ultramarina, o Banco Nacional Ultramarino e outras grandes empresas, propriedade de um punhado de famílias ricas, dominavam toda a economia, explorando a classe operária e os povos colonizados, mas abafando também amplas camadas da pequena burguesia. A política do regime, através de inúmeras borlas ficais, subsídios e privilégios, mas também da repressão brutal, favorecia os monopólios, fornecendo-lhes mercados e mão de obra barata e ajudando-os a estender os seus tentáculos por todos os poros da sociedade portuguesa. Por sua vez, a política internacional de Salazar, de subordinação aos imperialistas europeus e norte-americanos, solidificava a união entre os monopólios portugueses e o capitalismo internacional. Os problemas prementes da sociedade portuguesa, o despotismo do regime, o atraso económico e a pobreza, a sobrevivência dos latifúndios, a guerras colonial, etc., eram consequência do domínio dos grandes capitalistas. “O governo fascista”, resume Cunhal, “é o governo terrorista dos monopólios associados ao imperialismo estrangeiro e dos latifundiários” (p. 24). Esta política, porém, ia estreitando a base de apoio do regime, isolando-o socialmente e preparando a sua crise e o seu derrube revolucionário.
Até aqui, Cunhal apresenta uma radiografia precisa e acertada da natureza do regime, que no geral compartilhamos. No entanto, como Lenine costumava dizer, um barril de mel pode ser estragado por uma colher de alcatrão. Partindo de uma análise correta do regime, Cunhal tira conclusões políticas totalmente erradas. Para o então secretário-geral do PCP, “nas presentes condições nacionais, a revolução por que lutamos é uma revolução democrática e uma revolução nacional” (p. 25). Portanto, Cunhal apresenta uma política de alianças com as camadas “não-monopolistas”, incluindo “sectores da média burguesia” (p. 145). O secretário-geral do PCP ridiculariza aqueles que “afirmam que estão criadas as condições em Portugal para passar diretamente do fascismo para o socialismo” (p. 293). Só num futuro incerto, após uma etapa indeterminada de desenvolvimento capitalista democrático, colocar-se-ia a luta pelo socialismo. Como explicaremos, esta visão de uma revolução por etapas, onde primeiro se realizaria a revolução “democrática” (quer dizer, burguesa, no quadro do capitalismo) e só depois, num futuro indeterminado, a socialista, ecoa a política dos mencheviques russos que Lenine tão duramente combateu.
O capitalismo monopolista
A formação de grandes corporações faz parte do desenvolvimento natural do capitalismo. Os avanços na tecnologia, nos transportes, na divisão do trabalho e nas comunicações geram economias de escala, que fazem com que seja mais eficiente concentrar e centralizar a produção. Deste modo, a grande empresa vai deslocando o pequeno negócio, a fábrica moderna engole a oficina, a franquia esmaga a loja familiar. A concorrência acelera este processo de concentração, já que as empresas mais produtivas empurram as menos eficientes à falência. Vão gerando-se oligopólios e até monopólios. Como diz o próprio Cunhal, “as leis do desenvolvimento do capitalismo, particularmente a livre concorrência, conduzem à centralização, à concentração, ao monopólio” (p. 25). A concentração capitalista acarreta outros fenómenos, nomeadamente a fusão do capital industrial e bancário no capital financeiro, e a saturação do mercado nacional, que empurra as diferentes burguesias à conquista do mercado mundial. Coletivamente, esta fase do capitalismo é conhecida como o imperialismo, que Lenine definiu no seu famoso livro de 1916 como a “etapa superior do capitalismo”. A centralização da produção é a expressão distorcida de um processo que, embora sob o capitalismo assuma formas grotescas, tem um âmago progressista, que reflete, em palavras de Engels, que “os meios de produção e a produção foram convertidos essencialmente em fatores sociais”, o que permitiu um aumento enorme da produtividade e, potencialmente, do bem-estar da humanidade, se o caráter capitalista destas grandes forças produtivas for abolido, se, como diz Engels, “a sociedade, abertamente e sem rodeios, tom[ar] posse dessas forças produtivas, que já não admitem outra direção a não ser a sua”.
Por tanto, os monopólios não são uma invenção de Salazar, mas a consequência das leis objetivas do capitalismo. A formação do grande capital financeiro começou antes da ditadura, já na Primeira República, sobretudo durante a Primeira Guerra Mundial. Salazar, ao dizer de Cunhal, teve a missão de “apressar” (p. 145) um processo que já estava em curso. As leis do capitalismo que o levam espontaneamente à centralização operam em todos os países capitalistas, independentemente do seu sistema político ou da vontade dos seus governantes: nos regimes fascistas e bonapartistas, mas também nas repúblicas burguesas mais democráticas. No elenco de Lenine de potências imperialistas encontramos Estados autoritários como a Rússia czarista ou o Império alemão e japonês, mas também democracias burguesas como França, Estados Unidos e Inglaterra. Na obra de Cunhal, ele fala do capital imperialista norte-americano, francês, italiano, sueco ou britânico (pp. 81-94), ou seja, das democracias burguesas mais avançadas da época. No caso de Itália e França, trata-se de duas democracias capitalistas nascidas do derrube violento do fascismo, onde os comunistas participaram dos governos provisórios do pós-guerra e na elaboração das suas constituições. Mas, mantendo-se intacto o capitalismo, isso não impediu que os monopólios continuassem a desenvolver-se em França e Itália, em plena harmonia com as leis do capitalismo. Não só isso, eles mantiveram e aprofundaram o seu controlo sobre o Estado, ditando as políticas dos diferentes governos.
Sob o capitalismo, todos os países mais ou menos avançados economicamente tenderão à formação de monopólios imperialistas que inevitavelmente dominarão o Estado, quer através de governos bonapartistas ou fascistas, quer através da democracia burguesa, até do tipo mais “avançado”. Como explica Engels:
“Como o Estado nasceu da necessidade de conter o antagonismo das classes, e como, ao mesmo tempo, nasceu em meio ao conflito delas, é, por regra geral, o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante, classe que, por intermédio dele, se converte também em classe politicamente dominante e adquire novos meios para a repressão e exploração da classe oprimida.”
O regime político predileto dos capitalistas, de facto, não é a ditadura bonapartista, que introduz elementos de arbitrariedade, mas a democracia burguesa, muito mais fiável e previsível. Os cinquenta anos de salazarismo português foram uma anomalia histórica, fruto do atraso do nosso país.
Lenine explica no seu O Estado e a Revolução:
“A omnipotência da «riqueza» também está mais segura numa república democrática porque não depende de determinados defeitos do mecanismo político, do mau invólucro político do capitalismo. A república democrática é o melhor invólucro político possível para o capitalismo, e por isso o capital, depois de se ter apoderado (…) deste invólucro, que é o melhor, alicerça o seu poder tão solidamente, tão seguramente, que nenhuma substituição, nem de pessoas, nem de instituições, nem de partidos na república democrática burguesa abala este poder.”
Naturalmente, para o proletariado a democracia burguesa é preferível ao fascismo, não por quaisquer considerações morais, mas porque nela tem maior liberdade para organizar-se e para lutar pelo socialismo.
Tudo isto refuta o argumento de Cunhal. Uma revolução “democrática e nacional”, no quadro do capitalismo, em aliança com um setor da burguesia, não “libertaria” Portugal do domínio dos monopólios. Ela só os obrigaria a operar sob um sistema político diferente, a democracia burguesa, que no longo prazo, de facto, lhes seria mais favorável. Enquanto o capitalismo se mantiver, manter-se-ão os monopólios e o seu domínio sobre a vida política. A própria experiência de Portugal demonstra isso. Após o 25 de novembro de 1975 consolidou-se, com o apoio do PCP, uma democracia burguesa muito “avançada”, com uma constituição progressista, uma reforma agrária ambiciosa e a nacionalização de empresas importantes (tudo isso consequência das lutas dos trabalhadores em 1974-1975). Mas Portugal não deixou de ser capitalista, mantendo-se a propriedade privada e os mecanismos gerais da economia de mercado. Os monopólios restabeleceram-se e foram impondo a sua política, eliminando gradualmente os entraves ao seu desenvolvimento que tinham surgido no PREC. Isso não foi fruto de quaisquer conspirações, mas do funcionamento natural do capitalismo. Hoje, como o próprio PCP admite, Portugal é dominado pelo grande capital imperialista (os “grupos económicos”, como costuma hoje a caraterizá-los).
A única forma de “libertar Portugal do domínio dos monopólios” era, e ainda é, libertá-lo do capitalismo mediante a revolução socialista: a tomada do poder pela classe trabalhadora, a expropriação dos burgueses, a planificação da economia sob controlo operário, a escala nacional e internacional. Como afirma Lenine, escrevendo 50 anos antes de Rumo à vitória, durante a Primeira Guerra Mundial:
“O capitalismo já atingiu este estádio mais elevado. As forças produtivas da sociedade e as magnitudes do capital ultrapassaram os limites estreitos dos Estados nacionais individuais. Daí o esforço por parte das Grandes Potências para escravizar outras nações e tomar as colónias como fontes de matéria-prima e esferas de investimento de capital. O mundo inteiro está a fundir-se num único organismo económico; foi dividido entre um punhado de Grandes Potências. As condições objectivas para o socialismo amadureceram plenamente e a guerra actual é uma guerra dos capitalistas por privilégios e monopólios que poderá atrasar a queda do capitalismo.”
A “frente antimonopolista”
A revolução “democrática e nacional” que Cunhal almeja seria protagonizada por uma “frente antimonopolista”, abrangendo “o proletariado (operários industriais e assalariados rurais), o campesinato (pequenos e médios agricultores), a pequena burguesia urbana, sectores da média burguesia e a intelectualidade” (p. 145). Apesar das suas “diferenças”, estes grupos sociais devem elaborar uma “plataforma política suficientemente clara” para a “ação comum das forças democráticas” (p. 147). Essa tal frente manter-se-ia depois da revolução, onde se criaria um “Estado democrático [que] não será outra coisa que a classe operária e os seus aliados organizados como classes dominantes [sic]” (p. 140).
O diabo está nos detalhes. Uma tal aliança envolvendo a burguesia (nem que seja alguns “setores” dela) deverá aceitar as condições básicas da existência da burguesia: a propriedade privada dos meios de produção, o lucro individual, a livre concorrência e a produção de mercadorias, a exploração da classe trabalhadora; numa palavra, deverá aceitar o capitalismo. Ou seja, pede-se que o proletariado e as camadas camponesas e populares exploradas sacrifiquem os seus interesses no altar da aliança com a burguesia. A aliança com esses “setores” da burguesia supõe uma camisa-de-força ao desenvolvimento socialista da revolução.
Após a vitória da revolução “nacional”, o novo “Estado democrático” terá de aceitar, e defender, essas condições de existência da burguesia. Como afirma Cunhal, fala-se aqui de uma democracia que “não só não exclua como anime a iniciativa das empresas privadas” (p. 41), ou seja, de uma democracia burguesa. Se um industrial quiser, poderá fechar a sua empresa e levar o seu capital para outro lado, e o Estado o terá de aceitar. Se um arrendatário deixar de pagar o aluguer ao senhorio, o Estado terá de despejá-lo. Se os operários ocuparem uma fábrica propriedade de um burguês, o Estado terá de expulsá-los. Como diz a Bíblia, ninguém pode servir a dois senhores, pois odiará um e amará o outro. Ao aceitar o capitalismo, esse “Estado democrático” acabaria por servir o capital. Seria, portanto, uma democracia burguesa.
O “Estado democrático” terá de garantir as condições para a exploração da classe trabalhadora pelos capitalistas. Quaisquer possíveis reformas e regulamentações não mudariam fundamentalmente esta realidade. Pelo contrário, embora o “Estado democrático” colocasse limites à liberdade dos capitalistas num contexto de efervescência revolucionária, os burgueses acabariam por encontrar formas de contornar ou minar essas restrições. Para funcionar de forma eficaz, a economia capitalista precisa de condições favoráveis à exploração da classe trabalhadora. As leis de ferro do sistema acabariam por se impor. Toda a trajetória de Portugal após 1975, toda a desregulamentação, privatizações e ataques às conquistas que sobreviveram ao 25 de novembro, demonstram isto. Em definitivo, não pode haver várias “classes dominantes” com interesses antagónicos. Nesse “Estado democrático” perspetivado por Cunhal haveria uma só classe dominante: a burguesia.
Na sua listagem das classes “antimonopolistas”, Cunhal mistura várias coisas. É preciso separar os capitalistas das camadas empobrecidas da pequena burguesia e do campesinato, que no Portugal de 1964 representavam um setor importante da população, embora minguante. A pequena propriedade é uma herança pré-capitalista condenada a desaparecer, pois representa um lastro improdutivo à economia moderna. Porém, ela não pode ser suprimida por decreto. A expropriação imediata da pequena burguesia pela força só seria possível com uma dose brutal de violência que a empurraria à contrarrevolução e que requereria um enorme aparato burocrático.
O proletariado pode e deve conquistar a pequena burguesia e o campesinato, sobretudo em países atrasados onde ainda têm um peso considerável. As camadas mais empobrecidas destas classes são exploradas pelos capitalistas e podem transformar-se numa potencial força revolucionária. Mas o que significa conquistar a pequena burguesia? Decerto, não pode significar uma adaptação aos seus preconceitos, medos e vacilações, ou uma aceitação das suas obsoletas condições de vida, como defende Cunhal, que advoga pela “proteção aos pequenos industriais e comerciantes” (p. 41). A pequena propriedade não é só improdutiva: é também uma potencial fonte de restauração das relações sociais capitalistas; é uma espada de Dâmocles sobre a revolução socialista.
O proletariado tem de apresentar audazmente à pequena burguesia o seu programa socialista e revolucionário, contrapondo-o ao programa explorador dos grandes capitalistas. Só dessa forma poderá mobilizá-la eficazmente ao seu lado. Para o proletariado encetar a transformação socialista da sociedade, basta-lhe no início tomar conta das principais alavancas da economia, da grande indústria, da banca, do comércio externo, e das redes de transporte e distribuição, que lhe permitiriam planificar democraticamente a produção. Isto é compatível com medidas que inicialmente até beneficiem os pequenos proprietários, como a reforma agrária. A pequena propriedade dissolver-se-ia aos poucos, sendo integrada pacificamente na economia planificada.
A sombra da burguesia
Cunhal propõe uma “frente antimonopolista” que, como temos visto, atrela os objetivos da revolução portuguesa aos interesses mesquinhos dos burgueses “não-monopolistas”. Esperar-se-ia que, em troca do sacrifício de todo o seu programa socialista, o proletariado ganhasse um poderoso aliado na luta contra a ditadura. Mas, pelo contrário, como Cunhal admite, “a burguesia liberal é de todas as forças políticas antifascistas aquela que manifesta mais hesitações” devido ao facto de estar “atingida por um lado pela dominação dos monopólios, [e] inquieta por outro lado pelo ascenso do movimento operário” (p. 165). Com efeito, a burguesia “liberal”, no Portugal salazarista, e em qualquer outro contexto semelhante, carateriza-se pela sua covardia e vacilação e por ter mais medo do proletariado do que da ditadura. E não só isso, fala-se aqui de “setores” minoritários da burguesia, uma classe exploradora já por si minoritária. A maioria dos capitalistas portugueses estavam firmemente do lado do regime, que lhes garantia condições ótimas para os seus negócios. Fala-se aqui não da burguesia, mas da sua sombra. Cunhal exige que o proletariado cinja a sua luta aos interesses de um fantasma.
E a pequena burguesia? Cunhal fornece alguns dados interessantes. Sobre a agricultura, onde se encontra historicamente a grande reserva da pequena propriedade, diz-se-nos que “os assalariados rurais [ou seja, o proletariado rural] representam, em grandes zonas do País, 70, 80, 90 por cento e até mais da população agrícola ativa”, e ainda que “só em dois distritos do Continente (Viana do Castelo e Aveiro) os assalariados [constituem] menos da metade da população ativa” (p. 147). Numa palavra, na década de 1960 os estratos intermédios encontravam-se numa fase de dissolução acelerada, sendo proletarizados pelo desenvolvimento económico. E esse desenvolvimento só fortalecia o verdadeiro coveiro do capitalismo, a classe trabalhadora, cujo peso numérico se multiplicou rapidamente na fase final da ditadura.
O próprio Cunhal explica que “o proletariado português, classe numericamente fraca e politicamente pouco desenvolvida 38 anos atrás, [é] hoje a classe mais numerosa e mais esclarecida no quadro das forças sociais portuguesas” (p. 300). E à frente dessa classe encontrava-se o PCP, partido que, “ao mesmo tempo que os partidos democráticos burgueses foram soçobrando, incapazes de resistir à dureza da luta e à acção repressiva… forjou-se, desenvolveu-se e aparece hoje como a única brilhante e ímpar estrela da constelação das forças antifascistas” (p. 300). A experiência histórica, sobretudo a Revolução russa, mostra que até um proletariado numericamente reduzido pode desempenhar um papel político determinante, devido à sua coesão, poder económico e grau de combatividade. Mas no Portugal de 1964 falamos de uma classe operária que não é só combativa politicamente, mas que, ao contrário do que na Rússia de 1917, também tem um peso numérico esmagador.
Se os setores liberais da média e a pequena burguesia eram débeis e minoritários, também haviam de sê-lo os agrupamentos políticos que a representavam. Cunhal, secretário-geral da única organização séria na oposição, profundamente enraizada nas massas e com uma grande capacidade de mobilização, propõe uma frente com “socialistas, republicanos, liberais, católicos progressistas, monárquicos constitucionais” (p. 149), quer dizer, a capelas e capelinhas de intelectuais camaleónicos sem influência real. É o leão a propor uma aliança aos ratos.
Curiosa situação. Cunhal fala-nos de uma “burguesia liberal” vacilante e assustada, de uma pequena burguesia minguante e proletarizada, e de um proletariado qualitativa e quantitativamente poderoso e decidido, dirigido exclusivamente pelo PCP, que usufrui uma autoridade excecional aos olhos dos trabalhadores. No entanto, nega-se rotundamente a possibilidade do socialismo, perspetivando-se uma revolução “democrática e nacional”, uma revolução burguesa, em aliança com pequenos grupos liberais e reformistas, adaptada aos interesses exploradores dos capitalistas. Tal confusão só poderia transformar a revolução numa farsa e conduzir o proletariado à derrota.
Bolchevismo e menchevismo
Em abril de 1917, após o derrube do regime czarista, Lenine voltou à Rússia e, ao descer do comboio, exclamou: “Nenhum apoio ao governo provisório; explicar a completa falsidade de todas as suas promessas… Desmascarar este governo, que é um governo de capitalistas.” Ele explicou:
“A peculiaridade do momento actual na Rússia consiste na transição da primeira etapa da revolução, que deu o poder à burguesia por faltar ao proletariado o grau necessário de consciência e organização, para a sua segunda etapa, que deve colocar o poder nas mãos do proletariado e das camadas pobres do campesinato.”
Sobre esta perspetiva, o Partido Bolchevique levou a cabo uma paciente propaganda, que, no decurso de nove meses, lhe permitiu ir ganhando autoridade, conquistar a maioria da classe trabalhadora e lançar-se à tomada do poder.
Em abril de 1974, seguindo as orientações marcadas em Rumo à vitória, Cunhal voltou a Portugal e fez exatamente o contrário. Ao descer do avião, ele afirmou:
“Reafirmamos que, no entender do Partido Comunista Português, a melhor garantia para a realização de eleições livres seria a constituição de um governo provisório com a representação de todas as forças e sectores politicos democráticos e liberais. Reafirmamos que o Partido Comunista Português está pronto a assumir as responsabilidades respectivas.”
Uns dias mais tarde, frisava:
Para assegurar a democratização da vida nacional; para abrir caminho à paz; para resolver os problemas mais prementes da vida económica e social; para realizar eleições livres; devem a nosso ver participar no Governo Provisório todos os partidos e sectores democráticos representativos. Com tais objectivos o Partido Comunista Português está pronto a assumir as suas responsabilidades… Unidade de comunistas, socialistas, católicos, liberais (a frente unitária que vem do tempo da ditadura) unidade de todos sem excepção nesta hora decisiva para o futuro de para consolidar os resultados históricos alcançados com o movimento do 25 de Abril e nos seis dias desde então decorridos.
Ele entrou no governo provisório presidido pelo general reacionário Spínola e dominado por políticos burgueses como Palma Carlos. Desse modo, Cunhal deu autoridade a este governo capitalista e contrarrevolucionário aos olhos do proletariado, protegendo o seu flanco esquerdo. Transformou-se num corta-fogo para a burguesia portuguesa, colocada entre a espada e a parede pela revolução. Cunhal, assumindo as suas responsabilidades num governo burguês, agitou contra as greves e as lutas operárias, afirmando que a greve “só deve ser utilizada depois de se ver se não haverá formas mais adequadas de luta e depois de considerar se a greve em causa não será susceptível de criar graves perturbações económicas e sociais favoráveis às forças reaccionárias”. O governo provisório em que era ministro sem pasta, nas suas palavras, “é um governo de uma muito larga coligação de forças sociais e políticas cujo programa… não prevê reformas profundas da estrutura económica e social”. Embora o Partido Socialista de Mário Soares seguisse na prática uma linha reformista semelhante, o seu radicalismo verbal, muito à esquerda de Cunhal, permitiu-lhe crescer rapidamente, passando de ser um pequeno grupo a disputar ao PCP a sua hegemonia sobre o proletariado. Todas as grandes conquistas da revolução portuguesa, incluindo a onda de nacionalizações após o 11 de março, foram fruto da luta dos trabalhadores, que agiam não só sem a vénia das direções oficiais (incluindo a do PCP), mas amiúde contra elas.
Ao voltar a Portugal, Cunhal não seguiu uma linha leninista, mas menchevique. Os mencheviques representavam a corrente reformista do movimento operário russo. Eles afirmavam que, na Rússia czarista atrasada e semifeudal, a revolução só poderia ser burguesa, e uma tal revolução deveria ser dirigida pela burguesia liberal. Só depois de uma longa etapa de desenvolvimento capitalista se colocaria a possibilidade do socialismo. Assim, eles tentaram atrelar o proletariado ao liberalismo russo. Após a queda do czarismo em fevereiro de 1917, eles colaboraram com os representantes da burguesia nos diferentes governos provisórios, até serem derrubados pela revolução socialista de Outubro. Lenine, por sua parte, negou vigorosamente que a burguesia russa pudesse desempenhar um papel revolucionário e reivindicou a independência do movimento operário. É verdade que até a Primeira Guerra Mundial ele usava a fórmula ambígua da “ditadura democrática do proletariado e do campesinato”, que teria um horizonte democrático-burguês. Mas após 1914 ele mudou as suas perspetivas. O capitalismo na sua fase imperialista tinha unificado a economia mundial, penetrando até aos cantos remotos dos países mais atrasados. A revolução na Rússia seria socialista. Tornar-se-ia necessariamente num elo na revolução socialista mundial.
Para Lenine, tarefas democráticas da revolução, como a libertação das minorias nacionais oprimidas, a eliminação dos privilégios da igreja ou a reforma agrária, seriam realizadas pelo proletariado, que as combinaria com medidas socialistas. A revolução socialista, portanto, tomaria conta das tarefas democráticas pendentes. Não haveria duas etapas, uma burguesa e outra socialista, mas um só processo revolucionário. Em 1921, Lenine explicou:
“Resolvemos as questões da revolução democrático-burguesa de passagem, como um «produto acessório» do nosso trabalho principal e verdadeiro, proletário revolucionário, socialista. Sempre dissemos que as reformas são um produto acessório da luta revolucionária de classe. As transformações democrático-burguesas —dissemo-lo e demonstrámo-lo com factos— são um produto acessório da revolução proletária, isto é, socialista. Digamos de passagem que [os mencheviques] não souberam compreender esta correlação entre a revolução democrático-burguesa e a revolução proletária socialista. A primeira transforma-se na segunda. A segunda resolve de passagem os problemas da primeira. A segunda consolida a obra da primeira. A luta, e só a luta, determina até que ponto a segunda consegue ultrapassar a primeira.”
Durante os acontecimentos de 1974-1975 em Portugal, que representaram uma revolução genuína cujo caráter proletário foi ainda mais nítido do que no casso russo, Cunhal esforçou-se por conter a luta nos estreitos moldes burgueses da “revolução democrática e nacional”, contribuindo a descarrilar a revolução, de cuja derrota nasceu a atual democracia burguesa, um regime capitalista corruto e apodrecido, sob o qual os famosos monopólios da ditadura têm continuado a acumular fabulosos lucros sobre as costas dos trabalhadores.
Dois caminhos
Como é possível que Cunhal, um dirigente comunista de grande coragem e capacidade intelectual, acabasse por defender políticas diametralmente opostas ao bolchevismo e ao leninismo, políticas mencheviques? Todas as ilusões dos mencheviques russos foram refutadas pelos acontecimentos de 1917, que culminaram na primeira revolução socialista vitoriosa da história. O termo menchevique tornou-se num insulto no movimento operário. Mas, alguns anos mais tarde, o menchevismo teve uma segunda vida. Os bolcheviques sempre contaram com que a Revolução russa se espalhasse para os países avançados do Ocidente. Foi por isso que criaram a Internacional Comunista em 1919. No entanto, a grande vaga revolucionária de 1918-1920 fracassou.
A Revolução russa ficou isolada num país atrasado, devastado pela guerra e assediado pelo imperialismo. Nessas difíceis condições, ela degenerou gradualmente, com o ascenso de uma camada privilegiada de burocratas que, com Estaline à sua frente, foi ampliando as suas dádivas e acabou por impor uma ditadura brutal. A prioridade da burocracia estalinista não era estender a revolução para outros países, mas consolidar os seus privilégios e estabelecer relações de boa vizinhança com as outras potências capitalistas. Estaline tornou a Internacional Comunista numa alavanca na sua política internacional, impondo aos comunistas estrangeiros uma política de colaboração com a “burguesia progressista” através das chamadas Frentes Populares. Tratava-se de uma reedição do velho menchevismo. Esta política atingiu o seu apogeu durante a Segunda Guerra Mundial, quando Estaline sacrificou a Internacional Comunista no altar da sua aliança com os Estados Unidos e a Grã-Bretanha. Esta política reformista continuou e se aprofundou após a morte de Estaline, quando os seus sucessores visaram uma “coexistência pacífica” com o mundo capitalista. Cunhal foi formado na escola política de colaboração de classes do estalinismo. Para ele, a missão premente do proletariado não era derrubar todos os capitalistas e imperialistas, mas “lhes impor a coexistência pacífica” com a União Soviética e os seus aliados (p. 116).
A política menchevique de Cunhal contribuiu à derrota da revolução portuguesa. Só uma linha bolchevique, de independência de classe e de luta pela revolução socialista, poderia ter cumprido os anseios de um mundo sem opressão e exploração que animaram as grandes batalhas do PREC. Infelizmente, Paulo Raimundo e o resto dos atuais dirigentes do PCP não aprenderam nada daqueles acontecimentos. Continuam a repetir as velhas palavras de ordem da “democracia avançada”, da “convergência de democratas e patriotas” e da unidade das “camadas antimonopolistas”. Mas se já na luta contra a ditadura essas fórmulas eram erradas, hoje, na atual democracia burguesa, estas receitas de colaboração de classes são uma farsa totalmente extemporânea. Os militantes comunistas genuínos devem estudar sobriamente a história do PCP e tirar as conclusões necessárias. Há só dois caminhos para o movimento operário: o menchevismo e o bolchevismo. O Coletivo Comunista Revolucionário saúda e faz um chamado a todos os camaradas que queiram se bater pela revolução socialista em Portugal e que queiram retecer o fio roto do leninismo, do bolchevismo e do internacionalismo proletário.