Os comunistas e as eleições 

  1. O papel do Estado 

A crítica ao papel do Estado na sociedade fez sempre parte do pensamento e ação comunista. N’ A Origem da Família, da Propriedade Privada, e do Estado, Engels explicou a nascimento do Estado como produto do desenvolvimento da sociedade e da emergência das classes, para que “com interesses econômicos contrários, não se entre devorassem e não devorassem a sociedade numa luta estéril, sentiu-se a necessidade de uma força que se colocasse aparentemente acima da sociedade, com o fim de atenuar o conflito nos limites da “ordem”. Essa força, que sai da sociedade, ficando, porém, por cima dela e dela se afastando cada vez mais, é o Estado” 

Ora, vincou Lenine em O Estado e a Revolução, “como o Estado nasceu da necessidade de refrear os antagonismos de classes, no próprio conflito dessas classes, resulta, em princípio, que o Estado é sempre o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante que, também graças a ele, se toma a classe politicamente dominante e adquire, assim, novos meios de oprimir e explorar a classe dominada. 

Já antes, nO Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels tinham explicado como o desenvolvimento da burguesia, a partir das relações sociais do feudalismo, foi acompanhado por um correspondente progresso político, até que esta conquistou a dominação política exclusiva do Estado que se tornou na “comissão que administra os negócios comunitários de toda a classe burguesa”. 

Ainda que o Estado burguês possa, como consequência da luta de classes, adaptar uma faceta bonapartista, autoritária, é a democracia burguesa, parlamentar, a forma preferida de organização do seu Estado pela classe capitalista dominante pois, não só lhe permite ter um maior controlo sobre os seus representantes políticos, como melhor oculta as verdadeiras relações de poder e domínio, criando ilusões democráticas entre as massas, desviando a sua luta para a mediação e conciliação parlamentar, quando na realidade, como Marx referiu n’ As lutas de classes em França, as massas são apenas chamadas “a decidir de três em três amos ou de seis em seis que membro da classe dominante havia de representar e reprimir o povo no parlamento”, opondo ele que, pelo contrário, “o sufrágio universal deveria servir o povo constituído em comunas”. 

Marx e Engels sempre partiram da realidade concreta, servindo-se do método do materialismo dialético para analisar e compreender a realidade e a sociedade. E foi assim que, ancorados na experiência viva da luta de classes, os dois haveriam de, no prefácio de 1872 ao Manifesto, declarar: “face às experiências práticas (…) este programa está hoje, num passo ou noutro, antiquado. A Comuna, nomeadamente, forneceu a prova de que “a classe operária não pode simplesmente tomar posse da máquina de Estado [que encontra] montada e pô-la em movimento para os seus objetivos próprios”. 

  1. O Parlamentarismo e as práticas bolcheviques 

Uma vez definido o caráter classista do Estado e concluída a impossibilidade de a classe trabalhadora simplesmente tomar o Estado burguês e pô-lo a funcionar em função dos seus interesses, não se infira daqui que devem os comunistas simplesmente ignorá-lo, às suas instituições parlamentares e respetivas eleições. 

Na verdade, já em 1850 Marx e Engels na Mensagem do Comité Central à Liga dos comunistas afirmavam o seguinte: Por toda a parte, ao lado dos candidatos democráticos burgueses, sejam propostos candidatos operários, na medida do possível de entre os membros da Liga e para cuja eleição se devem acionar todos os meios possíveis. Mesmo onde não existe esperança de sucesso, devem os operários apresentar os seus próprios candidatos, para manterem a sua democracia, para manterem a sua autonomia, contarem as suas forças, trazerem a público a sua posição revolucionária e os pontos de vista do partido”. 

Não obstante toda a crítica ao Estado e ao parlamentarismo, Marx e Engels (não ocultando os seus pontos de vista e propósitos) defendiam a participação dos comunistas nas eleições para reforçar a mobilização, a autonomia e a consciencialização da classe trabalhadora. 

Este ponto de partida foi depois desenvolvido com base na experiência acumulada pelo partido bolchevique que haveria de desenvolver a estratégia e as táticas corretas que conduziram ao triunfo da revolução de outubro e, com as quais, Lenine e os bolcheviques  proselitaram mais tarde os jovens partidos comunistas que nasciam em todos os países em torno do Comitern. 

Àqueles que clamavam contra a participação dos comunistas nas eleições e pelo seu boicote, respondeu Lenine no Esquerdismo: doença infantil do comunismo postulando taxativamente “Enquanto não tenhais força para dissolver o parlamento burguês e qualquer outra organização reacionária, vossa obrigação é atuar no seio dessas instituições(…)” 

Essa, aliás, tinha sido a experiência do partido bolchevique! Após a revolução de 1905, o Czar teve de aceitar a criação de uma Duma, ainda que bastante coarctada dos poderes tradicionais dum parlamento: o governo não tinha de responder perante a Duma, o Czar tinha o direito de veto e nenhuma lei poderia transitar sem o consentimento do Conselho de Estado (maioritariamente nomeado pelo monarca). Apesar do caráter absolutamente atrasado e reacionário desta espécie de parlamento, claramente criado como válvula de escape do descontentamento popular, o partido bolchevique viria a nele participar porque “a participação num parlamento democrático-burguês [e a Duma não era nem muito democrática nem sequer muito burguesa…], longe de prejudicar o proletariado revolucionário, permite-lhe demonstrar com maior facilidade às massas atrasada a razão porque semelhantes parlamentos devem ser dissolvidos, facilita o êxito da sua dissolução,  facilita a supressão política do parlamentarismo burguês.” (ibidem) 

  1. Nenhum compromisso?  

Quando o Esquerdismo: doença infantil do comunismo foi escrito em 1920, a maioria dos partidos comunistas estava em plena gestação. Na Inglaterra, por exemplo, Lenine constatava que “ainda não existe o Partido Comunista” – o qual viria mais tarde a ser formado pela união de vários grupos simpatizantes e inspirados pela revolução russa. Dada a condição minoritária dos comunistas no seio do movimento operário, Lenine refletia que “hoje em dia, é muito difícil para os comunistas ingleses inclusive aproximar-se das massas, fazer com que elas os ouçam. Contudo, se me apresentar como comunista e, ao mesmo tempo, convidar a votar em Henderson contra Loyd George é certo que serei ouvido”. E esboçando a tática da Frente Única aconselhava os comunistas ingleses para que “marchemos juntos contra a coligação de Loyd George e os conservadores” e ao mesmo tempo “conservemos a mais completa liberdade de agitação, propaganda e ação política.” (ibidem) 

Numa situação em que se conservavam ilusões democráticas entre as massas e estas apoiavam maioritariamente os reformistas ansiando por melhorias e reformas no quadro da sociedade capitalista; e pelo “facto da maioria dos operários de Inglaterra ainda seguir os Kerensky e os Scheideman ingleses, de não ter passado ainda pela experiência de um governo formado por esses homens, experiência que foi necessária tanto na Rússia como na Alemanha para que os operários se passassem em massa para o comunismo, deduz-se de modo infalível que os comunistas ingleses devem participar no parlamentarismo, devem ajudar a massa operária de dentro do parlamento a ver na prática os efeitos dos governos do Henderson e dos Snowden, devem ajudar os Henderson e os Snowden a derrotarem a coligação de Loyd George e Churchill.” (ibidem) 

E Lenine rematava ainda: “devemos obrigar os primeiros a vencer os segundos, pois os primeiros têm medo da sua própria vitória! Em segundo lugar, ajudar a maioria da classe trabalhadora a convencer-se por experiência própria de que temos razão, isto é, da incapacidade completa dos Henderson e Snowden, da sua natureza pequeno-burguesa e traidora, da inevitabilidade da sua falência e antecipar o momento em que [se possa] sobre a base da desilusão produzida(..) derrubar de golpe o governo dos Henderson.(ibidem) 

Destas extensas citações de Lenine em polémica com as tendências esquerdistas do jovem movimento comunista internacional, podemos aferir como os bolcheviques apuraram os métodos e tácticas revolucionárias, como já antes Marx E Engels o tinham feito, combinando uma absoluta intransigência de princípios com uma tremenda flexibilidade tática, no pressuposto e convicção de que, com base na sua própria experiência, a classe trabalhadora elevaria a consciência e tiraria as devidas conclusões com o auxílio da propaganda, ação e exemplo dos comunistas, desde que estes não se isolassem sectariamente do movimento real e das organizações forjadas pela classe trabalhadora. “Assim se acelerará a morte política do Henderson e Snowden como na Rússia.” (ibidem) 

E durante algum tempo, com base nesta política de “Frente Única” foi possível aos partidos comunistas desenvolverem-se e ganharem um eco na classe, até que a degenerescência burocrática da URSS e as políticas de Estaline corromperam o legado de Lenine na Internacional Comunista. Primeiro através do chamado “Terceiro Período” em que se equiparavam os partidos fascistas aos partidos reformistas (apelidados de social-fascistas); e depois com as “Frentes Populares” nas quais os partidos comunistas diluíam o seu programa e conciliavam não só com os partidos reformistas da classe trabalhadora, mas até com os partidos da burguesia dita “liberal” e “antifascista”. Foi o que aconteceu em França e Espanha em 36, no Chile em 73 ou em Portugal em 74/75… 

  1. Aplicar os métodos bolcheviques nos nossos dias 

Muitos camaradas (anarquistas, autonomistas, “comunistas de esquerda”) e até movimentos sociais de base, justamente indignados e nauseados com a podridão e hipocrisias do sistema capitalista e das suas instituições tendem a repetir as mesmas políticas equivocados que Lenine expôs e criticou no “Esquerdismo”. O facto de podemos estar em (até ampla) minoria não é álibi quer para o sectarismo, quer para o oportunismo. 

Tal como constatava Lenine “não há um partido comunista em Inglaterra”, também nós em Portugal podemos afirmar “não há um partido comunista revolucionário em Portugal”. Mas há eleições a 10 de março! Que fazer, portanto? 

O primeiro ponto a esclarecer é o seguinte: ainda que a 10 de março haja uma importante batalha eleitoral e urge que a classe trabalhadora possa travar o passo à direita e à extrema-direita, a luta de classes não se esgota nas urnas. Na verdade, as eleições burguesas são importantes, mas é a mobilização e a luta dos trabalhadores e da juventude no terreno, nas ruas, nas empresas, nas escolas e nos bairros que é determinante. 

Em seguida, não vale a pena ignorar que um pequeno grupo comunista como o Coletivo Marxista não está em condições de influenciar (muito menos liderar) as grandes batalhas e mobilizações da nossa classe. Queremos fazer parte da construção duma organização comunista revolucionária que possa ter esse papel no futuro. Mas isso só será possível com base numa política sã e correta aplicada no quadro do período histórico de crise sistémica do capitalismo em que entrámos. Hoje estamos na primordial fase de recrutar e formar quadros, muitas vezes um a um, mas um partido revolucionário (mesmo que em estado embrionário) é construído com base em ideias, métodos, programa e tradições. Não há atalhos, a não ser em direção ao abismo!  

Porque que se há camaradas que rejeitam de todo a participação eleitoral, outros há que julgam bastar declararem-se “o partido revolucionário” e apresentarem-se às eleições para que os trabalhadores magicamente se lhes juntem e assim possam disputar a hegemonia da esquerda! Tal como já explicámos, os camaradas do MAS tomaram todos os atalhos e hoje encontram-se no abismo, dilacerados por múltiplas cisões, com uma candidatura abortada pelos tribunais e com uma campanha politicamente tão atrasada que nada acrescenta ao que outros repetem, até mesmo os demagogos da extrema-direita, como “prisão dos corruptos”, “taxação dos lucros dos bancos” ou “salário-mínimo de mil euros”.  

Nós comunistas rejeitamos em absoluto essas caricaturas dos métodos bolcheviques, recusamos tanto os atalhos do oportunismo como os becos sem saída do sectarismo. Pelo contrário, na esteira dos ensinamentos de Lenine chamamos à participação dos trabalhadores e da juventude no ato eleitoral, não ocultando as nossas ideias e apoiando criticamente “os Hendersons e os Snowden contra os Loyd George e os conservadores”. 

Ter um parlamento dominado pela direita e extrema-direita é mais desfavorável aos interesses e à luta dos trabalhadores do que um parlamento com uma maioria de esquerda, ainda que reformista e ainda que esse reformismo, em última instância, esteja destinado a falhar e abrir caminho mais à frente para o retorno da direita ao poder!  

Mas não é de hoje “a incapacidade completa dos Henderson e Snowden, da sua natureza pequeno-burguesa e traidora, da inevitabilidade da sua falência”. É e apenas pela ausência duma alternativa comunista revolucionária de massas que, perante o falhanço dos reformistas, hoje a direita e extrema-direita populista crescem e amanhã, quando as suas políticas forem repudiadas pelas massas, caso essa alternativa não se materialize, obrigará a classe trabalhadora a ter de passar novamente pela escola do reformismo, recomeçando o ciclo uma e outra vez, como tem sucedido ao longo dos últimos 100 anos.  

Não haja aqui a menor dúvida: Um hipotético governo de direita (com participação direta do Chega ou não) irá aprofundar as desastrosas políticas do PS, sacrificando mais aceleradamente a escola pública e o SNS, beneficiando fiscalmente ainda mais aqueles que já são os mais ricos, mantendo a precariedade e a (des)proteção laboral, se possível desregulando-a ainda mais, tentando entregar o sistema de pensões aos fundos privados, avançando com uma agenda conservadora nos costumes ou reforçando a repressão policial.  

No contexto da crise global do capitalismo e das debilidades da economia portuguesa, subordinada ao capitalismo europeu, um tal governo de direita será absolutamente frágil, instável e sem grande margem de manobra. Provavelmente não durará a legislatura completa, mas tal hipotético governo terá sempre consequências tenebrosas para a classe trabalhadora portuguesa. 

É por isso que devemos mobilizar-nos para o dia 10 de março. Nós, comunistas revolucionários, não temos como propor “candidatos operários, na medida do possível”, mas há uma escolha que temos em mãos: ou pela abstenção contribuímos para um parlamento inclinado à direita, ou (sem silenciar os nossos pontos de vista comunistas e lutando por uma alternativa de classe) ajudamos a eleger, pelo nosso voto, deputados do Bloco de Esquerda e do PCP que defenderão a agenda mais progressista no parlamento, como aumentos de salários e pensões, leis laborais mais justas, investimento no SNS e na escola pública, o direito à interrupção da gravidez, etc…   

Muitos clamarão: “mas eles são reformistas”! Pois são. Mas o problema não são as reformas que propõem, antes as medidas revolucionárias que não defendem e que são as únicas que garantem que as reformas efetivamente se aplicam e se tornam irreversíveis. Tal como Marx e Engels afirmavam n’ O Manifesto, os comunistas “lutam para alcançar os fins e interesses imediatos da classe operária, mas no movimento presente representam simultaneamente o futuro do movimento”. E, em seguida (pela debilidade de forças próprias) elencavam todo um conjunto de movimentos e partidos radicais, “socialistas democráticos”, a quem os comunistas apoiavam, enquanto “põem em relevo a questão da propriedade, seja qual for a forma mais ou menos desenvolvida que ela possa ter assumido, como a questão fundamental do movimento.” 

Trata-se, pois, não de escolher males menores para o trabalhadores, mas, sem abdicar da “mais completa liberdade de agitação, propaganda e ação política” garantir as melhores condições para o desenvolvimento da luta de massas e, em especialmente, “fazer com que elas nos ouçam”, em particular a camada de ativistas, os sectores politicamente mais conscientes da classe trabalhadora e da juventude que, na sua grande maioria, apesar das desilusões, continuam a apoiar ou a votar no PCP ou no Bloco de Esquerda e sem os quais dificilmente será possível construir uma alternativa revolucionária e comunista.  

E, reafirmamos, a pedra de toque dessa alternativa será a luta de classes na condição dos revolucionários, mantendo a mais completa intransigência de princípios, sejam capazes da necessária flexibilidade tática para que não caiam no isolamento político e no dogmatismo estéril.  

Enfim, não foi por acaso (ou por preguiça) que este texto foi sendo construído com base nas lições e citações diretas dos grandes pensadores do nosso movimento. Tal como eles o fizeram, também nós hoje devemos aprender com os erros e os triunfos, com a experiência da nossa classe e o seu pensamento mais avançado. Recorrendo, para finalizar, às palavras de Lenine, repetiremos tão só o seu apelo: “os comunistas «de esquerda» são pródigos de elogios a nós bolcheviques. Às vezes dá-nos vontade de dizer-lhes: louvem-nos menos e tratem de compreender melhor a nossa tática, familiarizar-se mais com ela!”  

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