Arturo Rodríguez
Acontece frequentemente na história, explicou Lenin, que os grandes revolucionários são perseguidos ferozmente durante as suas vidas, mas que, após a sua morte, a classe dominante tenta os neutralizar e tornar inofensivos, deturpando as suas ideias. A burguesia e os seus intelectuais mercenários têm tencionado fazer exatamente isso com o próprio Lenin, cobrindo o seu legado de calúnias, mentiras e distorções. No centenário da morte de Lenin, os comunistas temos o dever de reivindicar a verdadeira herança do grande revolucionário russo, cuja vida e obra são uma fonte de inspiração, e, mais importante ainda, de lições para as lutas da nossa época.
Os primeiros passos
Vladimir Ilyich Ulianov, mais bem conhecido como Lenin, nasceu em 1870 na cidade de Kazan, no seio duma família de classe média. Naquela época, a antiga monarquia absolutista dos czares estava a mostrar sintomas de esgotamento. A supressão da servidão em 1861 não tinha aliviado substancialmente a situação dos camponeses, que representavam a grande maioria da população. Pelo contrário, esta reforma acelerou a transformação capitalista da Rússia, aprofundando as desigualdades nas aldeias. O descontentamento alastrava-se pelo país. Porém, o estrato da sociedade russa mais ativo naquela época não eram os camponeses, mas os intelectuais. Eles formaram a base do chamado populismo, um movimento que aspirava a um socialismo rural baseado nas instituições tradicionais do campesinato. As campanhas de agitação pacífica dos populistas a meados da década de 1860 para acordarem os camponeses à luta fracassaram. No final daquela década, o movimento orientou-se para a luta armada, assassinando diversos representantes do regime e o próprio czar em 1881. Mas o terrorismo levou o movimento a um beco sem saída, isolando-o das massas.
No fundo dos fracassos dos populistas encontrava-se a impotência política dos intelectuais pequeno-burgueses, um estrato social intermédio e heterogéneo. Também os camponeses se mostraram incapazes de dirigir o derrube do czarismo. Eram uma classe muito numerosa, mas isolada em pequenas aldeias sob condições de vida extremamente atrasadas. Assim, alguns populistas à volta de Plekhanov, Zasulich e Axelrod abandonaram o populismo e abraçaram o marxismo. Através duma análise materialista e dialética da sociedade, o marxismo explicava que a Rússia estava condenada a tornar-se capitalista, que o capitalismo criaria um proletariado forte, que seria empurrado à luta contra os burgueses, mas também contra o regime czarista, e que os operários, graças à sua concentração e peso económico, poderiam dirigir a maioria camponesa do país à revolução. Com efeito, nas últimas décadas do século XIX a Rússia atravessou um poderoso surto industrial, que gerou um proletariado pequeno, mas muito ativo politicamente.
A radicalização de Lenin aconteceu durante a crise do populismo. O seu irmão, Alexander, era um militante populista que foi condenado à morte em 1887. A sua execução teve um forte impacto no jovem Lenin, não só emocional, mas também político, levando-o a questionar gradualmente os métodos populistas. Abraçou o marxismo e em 1895 criou em São Petersburgo a Liga de Luta pela Emancipação dos Trabalhadores, junto com Julius Martov. Foi desterrado à Sibéria e depois fugiu ao exílio no estrangeiro.
Os bolcheviques
Em 1898, os diferentes grupos marxistas espalhados pela Rússia uniram-se no Partido Operário Social-Democrata Russo, mas no seu seio existiam ideias diferentes sobre a nova organização. Lenin desenvolveu uma visão clara do partido revolucionário, que expôs no seu livro O que fazer? O derrube mundial do capitalismo não é uma brincadeira. A burguesia é poderosa e vai se defender, utilizando o seu poder ideológico e político para corromper e confundir o proletariado, e, no pior dos casos, reprimi-lo ferozmente. Por outro lado, o proletariado, ao contrário da burguesia revolucionária do século XVIII, é uma classe explorada, e o seu despertar político é lento e desigual. Alguns sectores tiram conclusões revolucionárias antes do resto da classe. Portanto, o proletariado precisa dum partido que agrupe os setores mais combativos e que o ajude a generalizar as suas lutas. Lenin aspirava a criar uma organização de militantes que dedicassem as suas vidas à causa da revolução. O partido devia ser uma organização ideologicamente homogénea, unida por uma compreensão clara da teoria marxista. Organizativamente, devia estar baseado no centralismo democrático, que pode ser resumido na máxima liberdade na discussão e a máxima coesão e disciplina na ação. O jornal do partido ajudaria a unir os aspetos ideológicos e organizativos. A construção do partido e a formação dos seus quadros requeriam tempo e paciência, não podiam surgir improvisadamente durante a revolução.
Lenin defendeu estas ideias no segundo congresso dos sociais-democratas russos em 1903. Mas foram rejeitadas pelo seu velho camarada Martov. Para ele, o partido devia ser mais laxo e heterogéneo. Foi assim que se abriu uma divisão nas fileiras Social-democratas. Lenin, que tinha a maioria, formou a fação bolchevique (literalmente, maioritária) enquanto Martov chefiou o grupo menchevique (minoritário). Aliás, Lenin nunca teve medo de polemizar com os seus camaradas: só através do debate podia-se atingir a claridade política. Aparentemente, a divisão entre Lenin e Martov tinha um carácter estreitamente organizativo. Mas, como acontece frequentemente, as questões organizativas escondem problemas políticos. Os acontecimentos de 1905 revelá-los-iam.
A revolução de 1905
Em 1904, as aspirações expansionistas da Rússia e do Japão no Pacífico levaram-nos à guerra. O conflito foi catastrófico para a Rússia, que foi humilhada pelo Japão. No domingo dia 22 de janeiro de 1905, uma manifestação de operários em São Petersburgo foi duramente reprimida pelo regime: centenas foram assassinados. O protesto tinha sido organizado por um padre, Georgi Gapon, e as suas reivindicações eram extremamente moderadas. O massacre abalou a consciência de milhões de operários e camponeses, muitos dos quais até então acreditavam na monarquia. O proletariado não aprende lendo livros, mas através da sua experiência: e a própria luta a que dissolve os preconceitos, como mostrou o “domingo sangrento”: o Estado monárquico, com o czar à sua frente, não era o amigo do povo, era o alicerce da exploração dos trabalhadores.
Nos meses seguintes as aldeias e cidades da Rússia foram abaladas por uma onda sem precedentes de lutas. Lenin e muitos dos seus camaradas voltaram do exílio. O proletariado colocou-se à frente das mobilizações. A burguesia liberal, pela sua parte, acovardou-se e capitulou, sentindo maior hostilidade para com os operários que para com o regime. Aquela revolução fracassou, mas foi uma grande escola para o povo russo. Abriu a brecha entre os bolcheviques e os mencheviques. Os mencheviques tentaram colaborar com os liberais, considerando-os os dirigentes naturais duma revolução que, eles achavam, deveria ter horizontes burgueses, como a revolução francesa de 1789. Lenin, pela sua parte, adotou uma política de independência de classe, explicando que a burguesia russa, incluindo a sua ala “progressista”, claudicaria perante o regime. Só o proletariado dirigindo o campesinato poderia derrubar o czarismo.
Os anos da reação e a guerra
Lenin e muitos outros camaradas tiveram de voltar para o exílio após o fracasso da revolução. A derrota gerou pessimismo e desespero entre uma camada de intelectuais de esquerda. Alguns deles abandonaram os princípios materialistas do marxismo, sendo atraídos por filosofias idealistas como o chamado empiriocriticismo. Lenin travou uma batalha teórica contra esta viragem idealista. No seu livro de 1909, Materialismo e Еmpiriocriticismo, Lenin afirmava que a consciência é matéria organizada duma forma particular, e reflete o mundo material circundante. O universo material existe objetivamente, independentemente de nós, e pode ser compreendido racionalmente. As ideias que melhor se aproximem à realidade serão as mais corretas. Embora alguns achassem aqueles debates abstratos demais, a batalha filosófica verificou-se decisiva na defesa do marxismo perante a catadupa de confusão após a derrota da revolução de 1905.
Em 1912-14, o proletariado russo voltou à luta novamente. Naquele contexto de radicalização, a influência dos bolcheviques aumentava cada dia. Porém, aquela onda revolucionária foi ceifada pelo início da Primeira Guerra Mundial em 1914. Entre as fileiras do movimento operário, na Rússia e na Europa, espalhou-se a confusão. As lideranças dos principais partidos sociais-democratas europeus apoiaram os seus governos. Esta traição foi a culminação da viragem reformista de muitos partidos socialistas, que se haviam adaptado à democracia burguesa. Lenin e os bolcheviques opuseram-se a esta capitulação e tentaram reorganizar os militantes internacionalistas da Europa.
Utilizando a teoria marxista, Lenin explicou a natureza da Primeira Guerra Mundial. O conflito era uma consequência da evolução imperialista do capitalismo. O imperialismo, explicou no livro de 1916 O Imperialismo: Fase superior do capitalismo, é a tentativa do capital de ultrapassar as barreiras do Estados nacionais, que são num entrave para o desenvolvimento das forças produtivas. Os capitalistas dos países mais desenvolvidos tentam expandir os seus mercados dominando outros países. A partilha do mundo entre as grandes potências, porém, é instável, já que os capitalistas sempre cobiçam redividir o botim em detrimento dos seus adversários. Às vezes, estas partilhas são “pacíficas”, mas em momentos críticos tornam-se violentas. Essa era a natureza da Primeira Guerra Mundial: uma guerra imperialista por uma nova partilha do mundo.
A revolução russa
Inicialmente, a guerra travou a luta de classes. Mas os horrores das trincheiras e os milhões de mortos logo dissolveram a histeria patriótica. Com efeito, em fevereiro de 1917, as greves e protestos das mulheres operárias de São Petersburgo (conhecida então como Petrogrado) tornaram-se rapidamente numa grande revolução. O czar perdeu o controlo da situação e após uma semana de mobilizações teve de abdicar.
Foi formado um governo provisório chefiado por burgueses liberais, que tencionavam continuar a guerra e pôr cobro à revolução. Mas aquele não era um governo normal. O verdadeiro poder estava nas mãos dos operários, soldados e camponeses organizados nos sovietes (literalmente, conselhos), órgãos de democracia operária que já tinham aparecido em 1905. Eles controlavam realmente o país. Porém, inicialmente os sovietes eram dirigidos pela esquerda reformista (mencheviques, social-revolucionários, etc.), que, por sua vez, apoiavam o governo provisório burguês. É natural que os trabalhadores inicialmente procurem o caminho mais indolor para a transformação social, ou seja, a via reformista. Só a experiência mostra que as suas reivindicações mais básicas entram em conflito com o próprio sistema, que deve ser derrubado. Na Rússia, os modestos almejos da população -paz, terra e pão- não podiam ser atingidos sem abater o capitalismo.
Lenin regressou à Rússia em abril de 1917. As suas “teses de abril” exigiram a transferência de todo o poder para os sovietes e rejeitaram qualquer colaboração com o governo provisório. Só o poder operário encarnado nos sovietes poderia resolver os principais problemas do país, começando pelo fim da guerra e a reforma agrária. Mas a tomada do poder abrira as portas para a transformação socialista da sociedade russa, que devia se alastrar pela Europa.
Ao defender o caráter socialista da revolução russa, Lenin abandonara a posição ambígua que até então tinham tido os bolcheviques, e se aproximara à posição dum outro grande marxista russo, Trotsky, que pouco depois integraria as fileiras dos bolcheviques. As “teses de abril” foram rejeitadas por alguns velhos bolcheviques, e Lenin só se impôs após um debate acirrado no partido. Longe de ser uma organização autoritária e monolítica, o Partido Bolchevique viveu intensos debates no ano 1917. A democracia e a liberdade para o debate partidário são necessárias para corrigir erros e esclarecer as questões: só assim puderam os bolcheviques adotar uma política adequada.
Graças à sua posição correta, que conectava com a onda de radicalização das massas, a influência dos bolcheviques, que em fevereiro eram um pequeno grupo, cresceu rapidamente. A perspetiva imediata dos bolcheviques não era a tomada do poder pelas armas, mas conquistar uma maioria nos sovietes através duma explicação paciente. Porém, nenhuma revolução é linear: há fases de avance, mas também de derrota que, dialeticamente, ajudam a elevar a luta para o patamar superior. Isso aconteceu em julho de 1917, quando uma insurreição semi-espontânea dos trabalhadores de Petrogrado foi esmagada pelo governo provisório. Lenin teve de fugir para a Finlândia e Trotsky foi preso. A contrarrevolução levantou a cabeça. O general reacionário Kornilov realizou uma intentona golpista em agosto de 1917, que foi travada pelos trabalhadores e os soldados. Mas, como disse Marx, o “chicote da contrarrevolução” às vezes empurra a revolução para a frente.
Em setembro, os bolcheviques conquistaram a maioria nos sovietes de Petrogrado, Moscovo e outros grandes centros urbanos. Apoiando-se nessa maioria, Lenin, começou a agitar por um levante armado. De novo, teve de encarar a oposição de muitos dos seus camaradas, protagonizando uma polémica feroz. A sua posição prevaleceu com o apoio de Trotsky, o grande organizador da insurreição. Nos dias 25-27 de outubro (do velho calendário russo) de 1917, um levante dos trabalhadores e os soldados revolucionários conquistava o poder de forma praticamente pacífica. Tal era o apoio esmagador dos bolcheviques e o descrédito do governo provisório.
O levante deu o poder aos sovietes, os órgãos da nova democracia operária. A tarefa da revolução socialista, como explicou Lenin no seu livro O Estado e a revolução, escrito na véspera da insurreição de outubro, não é tomar o Estado burguês, que é uma instituição irreformável feita por e para a burguesia, mas destruí-lo e construir um novo poder baseado nas assembleias democráticas dos trabalhadores. Mas este seria um “semi-Estado”, um Estado da maioria explorada dirigido contra a minoria exploradora.
Começava assim a primeira revolução socialista vitoriosa da história. O novo governo soviético, inicialmente uma coligação entre os bolcheviques e os social-revolucionários de esquerda, aprovou uma série de medidas históricas: a retirada da Rússia da guerra, a partilha dos latifúndios entre os camponeses, o controlo operário na indústria, a plena igualdade entre homens e mulheres, o direito à autodeterminação das minorias nacionais, etc. Porém, a revolução teve de defrontar grandes desafios. O imperialismo alemão impôs uma paz humilhante à Rússia soviética no tratado de Brest-Litovsk. Dentro da Rússia, a oposição aos bolcheviques, desde a extrema-direita até a esquerda reformista, tomou as armas contra os sovietes. Começava assim uma duríssima guerra civil, que incluiu numerosas intervenções dos imperialistas estrangeiros. Trotsky organizou o Exército Vermelho de operários e camponeses. A dureza da guerra levou os bolcheviques a reprimirem os seus inimigos e a impor medidas autoritárias extraordinárias. Todavia, a vitória da República soviética na guerra civil perante inimigos poderosos não se deveu a qualquer medida repressiva extraordinária, mas principalmente ao seu apoio popular. Os operários e camponeses pobres estavam prestes a defender o seu Estado perante a ameaça de restauração capitalista.
A Internacional Comunista
Lenin jamais olhou para a revolução de 1917 como um acontecimento especificamente russo. Devia ser o primeiro passo no derrube mundial do capitalismo. Uma economia socialista, que requer um nível considerável de desenvolvimento, só poderia se estabelecer a nível internacional. Isto era particularmente importante para a Rússia, um país camponês extremamente atrasado. Por isso, Lenin, Trotsky e os bolcheviques criaram a Internacional Comunista em 1919, o partido mundial da revolução. Numerosos esquerdistas de todos os continentes participaram dos seus primeiros congressos.
Os anos 1918-1921 foram um período de grandes agitações e revoluções no mundo todo. Em países como a Alemanha, o capitalismo estava por um fio. Porém, a falta de um partido revolucionário maduro fez com que aquelas revoluções fracassassem. Como Lenin assinalou no seu livro de 1920, O esquerdismo, muitos revolucionários europeus ignoraram de forma sectária a importância de conquistar as massas, de acompanhar as suas lutas e participar das suas organizações. Lenin e Trotsky utilizaram a Internacional Comunista para formar aqueles revolucionários inexperientes nas ideias genuínas do marxismo.
O último combate de Lenin
A derrota das revoluções na Europa Central em 1918-1921 condenaram a Rússia soviética ao isolamento. Era um país camponês pobre, arrasado pela guerra e as invasões estrangeiras, encurralado pelo imperialismo, e cujo proletariado tinha sido dizimado. Nessas condições, era muito difícil construir o socialismo. Os bolcheviques tiveram de fazer concessões ao campesinato, permitindo um regresso parcial ao livre mercado sob a Nova Política Económica. O proletariado, esgotado pela guerra e a miséria, ficou sem fôlego para controlar o seu Estado. Apareceu uma tendência para a burocratização, ou seja, para o surgimento duma casta de administradores privilegiados, que usariam o seu poder para defender e ampliar as suas regalias. Nos anos 30, este processo adquiriria proporções grotescas sob a ditadura de Stalin. Com efeito, Stalin, um dirigente relativamente desconhecido, mas que acumulou um grande poder no seu aparato graças a sua posição de secretário-geral. Ele se verificou como o melhor representante da burocracia.
A doença de Lenin acelerou a burocratização do partido e do Estado. Alvo dum ataque terrorista em 1918, em 1921 a precária saúde de Lenin piorou consideravelmente. Porém, nos seus últimos meses de vida política travou uma batalha contra a burocracia e contra o próprio Stalin. No seu testamento político, censurado posteriormente pela burocracia, exigiu a remoção de Stalin da secretaria do partido. Infelizmente, Lenin morreu em janeiro de 1924 como consequência da sua doença prolongada. Foi Trotsky quem continuou a sua luta pela democracia operária e a revolução mundial. Hoje, nós levantamos a bandeira de Lenin na nossa luta pelo comunismo!