Artigo de Alan Woods
Introdução
Lev Davidovich Trotsky foi, ao lado de Lenin, um dos dois maiores marxistas do século XX. Toda a sua vida foi inteiramente dedicada à causa da classe operária e do socialismo internacional. E que vida! Desde a mais tenra juventude, quando trabalhava durante a noite produzindo panfletos ilegais de greve que lhe valeram a sua primeira passagem pela prisão e exílio siberiano, até ser finalmente assassinado por um dos agentes de Estalin em agosto de 1940, ele trabalhou incessantemente para o movimento revolucionário. Na primeira Revolução Russa de 1905, ele foi o presidente do Soviete de Petersburgo. Condenado ao exílio siberiano, ele escapou e continuou sua atividade revolucionária no exílio. Durante a Primeira Guerra Mundial, Trotsky adotou uma posição internacionalista consistente. Ele foi o autor do Manifesto Zimmerwald que tentou unir os opositores revolucionários da Guerra. Em 1917, desempenhou um papel de liderança como organizador da insurreição em Petrogrado.
Após a Revolução de Outubro, Trotsky foi o primeiro Comissário para os Negócios Estrangeiros e foi responsável pelas negociações com os alemães em Brest Litovsk. Durante a sangrenta Guerra Civil, quando a Rússia soviética foi invadida por 21 exércitos estrangeiros de intervenção, e quando a sobrevivência da Revolução estava em jogo, Trotsky organizou o Exército Vermelho e liderou pessoalmente a luta contra os exércitos brancos contrarrevolucionários, viajando milhares de quilómetros no famoso comboio blindado. Trotsky permaneceu Comissário de Guerra até 1925. “Mostre-me outro homem”, disse ele (Lenin), batendo na mesa “capaz de organizar num ano um exército quase exemplar e, além disso, capaz de ganhar a estima dos especialistas militares”. Estas linhas reproduzidas nas memórias de Gorky mostram com precisão a atitude de Lenin em relação a Trotsky naquele momento.
O papel de Trotsky na consolidação do primeiro Estado Operário do mundo não se limitou ao Exército Vermelho. Ele também desempenhou o papel principal, juntamente com Lenin, na construção da Terceira Internacional e para a qual, e para os seus primeiros quatro congressos, Trotsky escreveu os Manifestos e muitas das declarações políticas mais importantes; destaca-se também o período de reconstrução económica em que Trotsky reorganizou os sistemas ferroviários que se encontravam destruídos na nova URSS. Além disso, Trotsky, sempre um escritor prolífico, encontrou tempo para escrever estudos penetrantes não apenas sobre questões políticas, mas sobre arte e literatura (Literatura e Revolução) e até mesmo sobre os problemas enfrentados pelas pessoas na vida cotidiana no período de transição (Problemas da Vida Quotidiana).
Após a morte de Lenin em 1924, Trotsky liderou a luta contra a degeneração burocrática do Estado soviético – uma luta que Lenin já havia começado a partir do que seria o seu leito de morte. No processo da luta, Trotsky foi o primeiro a defender a ideia de planos quinquenais, que foi contestada por Stalin e os seus seguidores. A partir daí, só Trotsky continuou a defender as tradições revolucionárias, democráticas e internacionais de Outubro. Só ele forneceu uma análise marxista científica da degeneração burocrática da Revolução Russa em obras como A Revolução Traída, Em Defesa do Marxismo e Stalin. Os seus escritos do período 1930-40 fornecem-nos um verdadeiro tesouro da teoria marxista, tratando não só dos problemas imediatos do movimento operário internacional (a Revolução Chinesa, a ascensão de Hitler na Alemanha, a Guerra Civil espanhola), mas de todo o tipo de questões artísticas, filosóficas e culturais.
Isto seria já mais do que suficiente para várias vidas! No entanto, se alguém examinasse objetivamente a vida de Trotsky, seria obrigado a concordar com a avaliação que ele mesmo fez dela. Ou seja, apesar de todas as realizações extraordinárias de Trotsky, o período mais importante de sua vida foram seus últimos dez anos. Aqui pode-se dizer com absoluta certeza de que ele cumpriu uma tarefa que ninguém mais poderia ter cumprido, a saber: a luta para defender as ideias do bolchevismo e a impecável tradição de Outubro das garras da contrarrevolução estalinista. Aqui está a maior e mais indispensável contribuição de Trotsky para o marxismo e o movimento operário mundial. É uma conquista sobre a qual estamos construindo até hoje. O presente texto não pretende ser um relato exaustivo da vida e obra de Trotsky. Para isso, seriam necessários não algumas páginas, mas vários volumes. Mas se este esboço tão insuficiente servir para encorajar a nova geração a ler os escritos de Trotsky, o meu propósito terá sido alcançado.
Os primórdios
Em 26 de agosto de 1879, poucos meses antes do nascimento de Trotsky, um pequeno grupo de revolucionários, membros da organização terrorista clandestina Narodnaya Volya, anunciou a sentença de morte para o czar russo, Alexandre II. Iniciou-se assim um período de lutas heróicas de um punhado de jovens contra todo o aparelho de Estado que culminaria a 1 de março de 1881 com o assassinato do czar. Esses estudantes e jovens intelectuais odiavam a tirania e estavam dispostos a dar a vida pela emancipação da classe trabalhadora, mas acreditavam que tudo o que era necessário para “provocar” mobilizações de massa era a “propaganda do fato consumado”. Na realidade, tentaram substituir o movimento consciente da classe trabalhadora pela bomba e a metralhadora.
Os terroristas russos conseguiram assassinar o czar. Apesar de tudo, todos os esforços dos terroristas não resultaram em nada. Longe de fortalecer o movimento de massas, os atos de terrorismo tiveram o efeito oposto de fortalecer o aparelho repressivo do Estado, isolar e desmoralizar os quadros revolucionários e, no final, levar à destruição completa da organização Narodnaya Volya. O erro dos “populistas” residia na falta de compreensão dos processos fundamentais da revolução russa. Na ausência de um proletariado forte, os terroristas procuraram outra camada social sobre a qual basear a revolução socialista. Eles imaginaram que tinham encontrado isso no campesinato. Marx e Engels explicaram que a única classe que pode realizar a transformação socialista da sociedade é o proletariado. Numa sociedade semifeudal atrasada como a Rússia czarista, o campesinato estava destinado a desempenhar um papel importante como auxiliar da classe trabalhadora, mas não poderia substituir-se a ela.
Para começar, a maioria dos jovens na Rússia na década de 1880 não se sentia atraída pelas ideias do marxismo. Não tinham tempo para a “teoria”: exigiam ação! Sem compreender a necessidade de conquistar a classe trabalhadora explicando pacientemente, pegaram em armas para destruir o czarismo através da luta individual. O irmão mais velho de Lenin era terrorista. Trotsky começou sua vida política num grupo populista e, provavelmente, Lenin também se envolveu da mesma maneira. No entanto, o populismo já estava em processo de declínio. Na década de 1890, o que era uma atmosfera permeada de heroísmo tornou-se de depressão, descontentamento e pessimismo entre os círculos de intelectuais. E, entretanto, o movimento operário entrou na cena da história com a impressionante onda grevista da década de 1890. Em poucos anos, a superioridade dos “teóricos” marxistas em relação aos terroristas individuais “práticos” tinha sido comprovada pela própria experiência com o crescimento espetacular da influência do marxismo no seio da classe trabalhadora.
Começando primeiro com pequenos círculos marxistas e grupos de discussão, o novo movimento tornou-se cada vez mais popular entre os trabalhadores. Entre os jovens ativistas da nova geração de revolucionários, estava o jovem Lev Davidovich Bronstein, que iniciou sua carreira revolucionária em março de 1897, em Nikolaev, onde estruturou a primeira organização de trabalhadores ilegais, o Sindicato dos Trabalhadores do Sul da Rússia. Lev Davidovich foi preso pela primeira vez quando tinha apenas 19 anos e passou dois anos e meio na prisão, após o que foi exilado na Sibéria. Mas ele escapou em seguida e, usando um passaporte falso, conseguiu sair da Rússia e juntar-se a Lenin em Londres. Numa daquelas ironias em que a História é tão rica, o nome no passaporte era Trotsky – o nome de um dos seus carcereiros e que Lev Davidovich escolheu ao acaso, para mais tarde vir a ganhar fama mundial.
Trotsky e Iskra
O jovem movimento social-democrata continuava disperso e quase sem qualquer organização. A tarefa de organizar e unir os numerosos grupos social-democratas locais dentro da Rússia foi assumida por Lenin juntamente com o exilado “Grupo de Emancipação do Trabalho” de Plekhanov. Com o apoio de Plekhanov, Lenin lançou um novo jornal, o Iskra, que desempenhou o papel fundamental na organização e união da genuína tendência marxista. Todo o trabalho de produção e distribuição do papel e manutenção de uma volumosa correspondência com a Rússia foi realizado por Lenin e sua incansável companheira Nadia Krupskaya. Apesar de todos os obstáculos, eles conseguiram contrabandear Iskra para a Rússia clandestinamente, onde causou um enorme impacto. Muito rapidamente, os marxistas genuínos uniram-se em torno do Iskra, que em 1903 já se tinha tornado a tendência maioritária na social-democracia russa.
Em 1902, Trotsky bateu à porta de Lenin em Londres, onde se juntou à equipe do Iskra, trabalhando em estreita colaboração com ele. Embora o jovem revolucionário, que acabara de chegar da Rússia, não tivesse conhecimento disso, as relações no Conselho Editorial já eram tensas. Houve constantes confrontos entre Lenin e Plekhanov sobre uma série de questões políticas e organizacionais. A verdade é que os antigos ativistas do “Grupo de Emancipação do Trabalho” tinham sido seriamente afetados pelo longo período de exílio, quando o seu trabalho se limitara ao da propaganda à margem do movimento operário russo. Tratava-se de um pequeno grupo de intelectuais, sem dúvida sinceros nas suas ideias revolucionárias, mas que sofria de todos os vícios do exílio e de pequenos círculos de intelectuais. Por vezes, os seus métodos de trabalho eram mais próprios aos de um clube de discussão, ou de um círculo de amigos pessoais, do que os de um partido revolucionário cujo objetivo era tomar o poder.
Lenin, que praticamente fazia a parte mais importante desse trabalho, com a ajuda de Krupskaya, lutou contra essas tendências, mas com muitos poucos resultados. Depositara todas as suas esperanças na convocação de um Congresso do Partido, no qual as bases da classe operária iriam pôr ordem “na sua própria casa”. Ele acalentava muitas esperanças em Trotsky, cujas habilidades de escrita lhe renderam o apelido de “Pero” – a Caneta.
Lenin procurava desesperadamente um jovem camarada capaz para cooptar para o Conselho Editorial, a fim de quebrar o impasse com os antigos editores. A aparição de Trotsky, recentemente fugido da Sibéria, foi ansiosamente aproveitada por Lenin para fazer a mudança. Trotsky, então com apenas 22 anos, já se notabilizara como escritor marxista, daí o nome do seu partido Pero (a Caneta). Nas primeiras edições de suas memórias de Lenin, Krupskaya dá uma descrição honesta da atitude entusiástica de Lenin em relação a Trotsky. Uma vez que estas linhas foram cortadas de todas as edições subsequentes, citamo-las aqui na íntegra:
“Tanto as recomendações calorosas da ‘jovem águia’ como esta primeira conversa fizeram Vladimir Ilitch prestar especial atenção ao recém-chegado. Falava muito com ele e andava com ele.
Vladimir Ilitch interrogou-o sobre a sua visita ao Yuzhny Rabochii [o Trabalhador do Sul, que adotou uma posição vacilante entre Iskra e os seus opositores]. Ele estava bem satisfeito com a maneira definitiva como Trotsky formulou a posição. Ele gostou da maneira como Trotsky foi capaz de apreender imediatamente a própria substância das diferenças e perceber através das camadas de declarações bem-intencionadas o desejo deles, sob o disfarce de um jornal popular, de preservar a autonomia de seu próprio pequeno grupo.
Enquanto isso, da Rússia vinha o apelo com crescente insistência para que Trotsky fosse enviado de volta. Vladimir Ilyich queria que ele permanecesse no exterior e ajudasse no trabalho de Iskra.
Plekhanov olhou imediatamente para Trotsky com desconfiança: viu nele um apoiante da secção mais jovem do conselho editorial do Iskra (Lenin, Martov, Potresov) e um aluno de Lenin. Quando Vladimir Ilitch enviou a Plekhanov um artigo de Trotsky, ele respondeu: «Não gosto da escrita da sua caneta». «O estilo é apenas uma questão de aquisição», respondeu Vladimir Ilyich, «mas o homem é capaz de aprender e será muito útil».
Em março de 1903, Lenin solicitou formalmente a inclusão de Trotsky como sétimo membro do Conselho Editorial. Numa carta a Plekhanov, ele escreveu:
“Estou submetendo a todos os membros do Conselho Editorial uma proposta de cooptação de «Pero» como membro titular do Conselho de Administração. (Penso que, para a cooptação, não é necessária uma maioria, mas uma decisão unânime.) Estamos precisando muito de um sétimo membro, tanto porque simplificaria a votação (sendo seis um número par) porquanto reforçaria o Conselho.
«Pero» tem escrito em todas as edições há vários meses. Em geral, ele está trabalhando energicamente para a Iskra, dando palestras (e com tremendo sucesso) etc. Ele será não só muito útil, mas bastante indispensável. Ele é inquestionavelmente um homem de habilidade acima da média, convencido, enérgico e promissor. E podia fazer muito na esfera da tradução e da literatura popular.
“Temos de atrair forças jovens: isso encorajá-las-á e levá-las-á a considerarem-se escritores profissionais. E que temos muito poucos disso é testemunho claro 1) da dificuldade de encontrar editores de traduções; 2) a escassez de artigos que revejam a situação interna e 3) a escassez de literatura popular. É na esfera da literatura popular que «Pero» gostaria de tentar a sua mão.
“Possíveis argumentos contra: 1) sua juventude; 2) o seu (talvez) regresso antecipado à Rússia; 3) uma caneta (sem aspas) com traços de estilo folhetinesco, muito pretensiosa, etc.
“Acrescento 1) «Pero» é sugerido não para um cargo independente, mas para o Conselho. Nela ele ganhará experiência. Ele tem, sem dúvida, a “intuição” de um homem do Partido, um homem da nossa tendência, quanto ao conhecimento e experiência estes podem ser adquiridos. Que ele é trabalhador também é inquestionável. É necessário cooptá-lo para, finalmente, atraí-lo e encorajá-lo…”
No entanto, Plekhanov, supondo que Trotsky apoiaria Lenin, colocando-o em minoria, vetou furiosamente a proposta. “Logo depois“, acrescenta Krupskaya, “Trotsky foi para Paris, onde começou a avançar com notável sucesso.”
Estas linhas do companheiro de vida de Lenin são ainda mais notáveis por terem sido escritas em 1930, quando Trotsky já fora expulso do Partido, vivendo exilado na Turquia e sob uma proibição total dentro da União Soviética. Só o facto de Krupskaya ser viúva de Lenin a salvou da ira de Stalin, pelo menos por um tempo. Mais tarde, foi forçada por uma pressão intolerável a baixar a cabeça e aceitar, passivamente, a distorção do registo histórico, embora até ao fim se tenha recusado firmemente a juntar-se ao coro de glorificação de Stalin, que, nas páginas da sua biografia, desempenha um papel mínimo – o que, na verdade, reflete a situação real. Infelizmente, esta colaboração inicial entre Lenin e Trotsky foi interrompida abruptamente pela cisão no Segundo Congresso do Partido Trabalhista Social-Democrata Russo.
O Segundo Congresso
Muitos disparates foram escritos sobre o famoso Segundo Congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo sem que nenhum deles explicasse as razões da divisão. Todo partido revolucionário tem que passar por uma etapa bastante longa de trabalho de propaganda e construção de quadros. Este período traz inevitavelmente uma série de hábitos e formas de pensar que, ao longo do tempo, podem tornar-se um obstáculo à transformação do partido num partido de massas. Se o partido se mostra incapaz de mudar esses métodos, quando a situação objetiva muda, então ele se torna numa seita ossificada.
No II Congresso, a luta entre as duas alas do grupo Iskra, que apanhou todos de surpresa, incluindo os diretamente envolvidos, deveu-se à incompatibilidade entre a posição de Lenin, que era a de consolidar um partido revolucionário de massas com algum grau de disciplina e eficácia, e a dos membros do antigo “Grupo de Emancipação do Trabalho”, que se sentiam confortáveis na sua rotina, não viam necessidade de mudanças e que rebaixavam a posição de Lenin a questões de personalidade, ao desejo de estar no centro das atenções, “tendências bonapartistas”, “ultra-centralismo” e tudo o resto.
De um modo geral, é uma lei histórica que as tendências pequeno-burguesas são organicamente incapazes de separar as questões políticas das questões pessoais. Assim, quando Lenin, por razões inteiramente justificadas, propôs remover Axelrod, Zasulich e Potresov do Conselho Editorial do Iskra, eles tomaram isso como um insulto pessoal e causaram um escândalo. Infelizmente, os “velhos” ativistas conseguiram impressionar Trotsky, que, sendo jovem e impressionável, não entendia a situação e aceitava ao pé da letra as acusações que estavam sendo feitas por Zasulich, Axelrod e os outros. A chamada tendência “branda” representada por Martov emergiu como minoritária e depois da Conferência recusou-se a acatar as suas decisões ou a participar no Comité Central ou no Conselho Editorial. Todos os esforços de Lenin para encontrar uma solução de compromisso após o Congresso fracassaram devido à oposição da minoria. Plekhanov, que no Congresso apoiara Lenin, revelou-se incapaz de resistir às pressões dos seus antigos camaradas e amigos. No final, no início de 1904, Lenin descobriu que tinha que organizar “comitês maioritários” (bolcheviques) para salvar algo dos destroços do Congresso. A cisão no partido tornara-se um facto consumado.
Inicialmente, Trotsky havia apoiado a minoria contra Lenin. Isso levou ao falso relato de que Trotsky era um “menchevique”. No entanto, no Segundo Congresso, o bolchevismo e o menchevismo ainda não tinham emergido como tendências políticas claramente definidas. Só um ano mais tarde, em 1904, começaram a surgir diferenças políticas entre as duas tendências, e essas diferenças nada tinham a ver com a questão do “centralismo” ou do “não centralismo”. Tratava-se da questão-chave da Revolução: a colaboração com a burguesia liberal ou a independência de classe. Assim que as diferenças políticas surgiram, Trotsky rompeu com os mencheviques e permaneceu formalmente independente de ambas as fações até 1917.
Trotsky em 1905
Às vésperas da guerra russo-japonesa, todo o país estava em efervescência pré-revolucionária. Uma onda grevista foi seguida por manifestações estudantis. A efervescência afetou os liberais burgueses que lançaram uma campanha de banquetes, com base nos “Zemstvos”, comitês locais no campo que serviram de plataforma para os liberais. Levantou-se a questão de qual deveria ser a posição dos marxistas em relação à campanha dos liberais. Os mencheviques eram a favor do apoio total aos liberais. Os bolcheviques eram radicalmente contrários a qualquer tipo de apoio aos liberais e publicaram fortes críticas na sua imprensa, expondo-os aos olhos da classe trabalhadora. Trotsky tinha a mesma posição dos bolcheviques, o que o levou a romper com os mencheviques. A partir desse momento, até 1917, Trotsky permaneceu organizacionalmente separado de ambas as tendências, embora em todas as questões políticas ele sempre esteve muito mais próximo dos bolcheviques do que dos mencheviques.
A situação revolucionária estava amadurecendo rapidamente. As derrotas militares do exército czarista aumentaram o crescente descontentamento que eclodiu durante a manifestação de 9 de janeiro de 1905 em São Petersburgo, que foi brutalmente reprimida. Assim começou a revolução de 1905, na qual Trotsky desempenhou um papel de destaque. Que papel desempenhou Trotsky na Revolução de 1905 e em que relação se manteve com Lenin e os bolcheviques? Lunacharsky, que na época era um dos braços direitos de Lenin, escreveu nas suas memórias: “Devo dizer que de todos os líderes social-democratas de 1905-06, Trotsky sem dúvida se mostrou, apesar de sua juventude, o mais bem preparado. Menos do que qualquer um deles, ele tinha o carimbo de um certo tipo de estreiteza de visão Èmigré. Trotsky compreendeu melhor do que todos os outros o que significava conduzir a luta política em larga escala nacional. Ele emergiu da revolução tendo adquirido um enorme grau de popularidade, enquanto nem Lenin nem Martov tinham efetivamente ganho nenhuma. Plekhanov tinha perdido muito, graças à sua exibição de tendências quase cadetes [ou seja, liberais]. Trotsky estava então na primeira fila.” (Lunacharsky, Revoluctionary Silhouettes, p. 61.)
Este não é o lugar para analisar a revolução de 1905 em detalhes. Um dos melhores livros sobre esta questão é o 1905 de Trotsky, uma obra clássica do marxismo, cujo valor é reforçado pelo facto de ter sido escrita por um dos mais destacados líderes dessa revolução.
Ainda com apenas 26 anos de idade, Trotsky era o presidente do Soviete de Deputados Operários de Petersburgo, o principal daqueles órgãos que Lenin descreveu como “órgãos embrionários do poder revolucionário”. A maioria dos manifestos e resoluções do soviete foram obra de Trotsky, que também editou a sua revista Izvestia. Em grandes ocasiões, ele falou tanto pelos bolcheviques e mencheviques quanto pelos Sovietes como um todo. Os bolcheviques, em Petersburgo, não tinham percebido a importância dos sovietes, e estavam fracamente representados neles. Lenin, exilado na Suécia, escreveu ao jornal bolchevique Novaya Zhizn, apelando aos bolcheviques para tomarem uma atitude mais positiva em relação aos sovietes, mas a carta não foi impressa e só viu a luz do dia, trinta e quatro anos depois! Esta situação seria reproduzida em todos os momentos importantes da história da revolução russa; a confusão e vacilação dos dirigentes do Partido no interior da Rússia, perante a necessidade de uma iniciativa ousada, sem a mão orientadora de Lenin.
Em 1905, Trotsky assumiu o jornal Russkaya Gazeta e transformou-o no popular jornal revolucionário Nachalo, que tinha uma circulação de massas, para expor as suas opiniões sobre a revolução, que eram próximas às dos bolcheviques e em oposição direta ao menchevismo. Era natural que, apesar da disputa acirrada no II Congresso, o trabalho dos bolcheviques e de Trotsky na revolução coincidisse. Assim, o Nachalo de Trotsky e o Novaya Zhizn bolchevique, editados por Lenin, trabalharam solidariamente, apoiando-se mutuamente contra os ataques da reação, sem travar polêmicas um contra o outro. O jornal bolchevique saudou o primeiro número de Nachalo assim:
“O primeiro número do Nachalo saiu. Damos as boas-vindas a um camarada de luta. O primeiro número é notável pela brilhante descrição da greve de outubro escrita pelo camarada Trotsky.”
Lunacharsky lembra que, quando alguém contou a Lenin sobre o sucesso de Trotsky junto dos sovietes, o rosto de Lenin ensombrou-se por um momento. Então ele disse: “Bem, o camarada Trotsky mereceu isso por seu trabalho incansável e impressionante.” Nos anos seguintes, Lenin mais do que uma vez escreveu positivamente sobre o Nachalo de Trotsky em 1905.
Como presidente do famoso soviete de São Petersburgo, Trotsky foi preso juntamente com os outros membros do soviete e exilado mais uma vez na Sibéria após a derrota da revolução. Do banco dos réus, Trotsky fez um discurso emocionante que se transformou numa acusação ao regime czarista. Ele foi finalmente condenado à “deportação perpétua”, mas na verdade permaneceu na Sibéria por apenas oito dias antes de escapar. Em 1906 exilou-se novamente, desta vez para a Áustria, onde continuou a sua atividade revolucionária, lançando um jornal de Viena chamado Pravda. Com seu estilo simples e atraente, o Pravda de Trotsky logo alcançou uma popularidade que nenhuma outra publicação social-democrata poderia igualar na época.
Os anos de reação após a derrota foram provavelmente o período mais difícil da história do movimento operário russo. As massas estavam exaustas depois da luta. Os intelectuais estavam desmoralizados. Havia um clima generalizado de desânimo, pessimismo e até desespero. Houve muitos casos de suicídio. Por outro lado, nesta situação reacionária generalizada, as ideias místicas e religiosas espalharam-se como uma nuvem negra sobre os círculos intelectuais, encontrando eco no interior do movimento operário numa série de tentativas de revisão das ideias filosóficas do marxismo. Nestes anos difíceis, Lenin dedicou-se a uma luta implacável contra o revisionismo, pela defesa da teoria e dos princípios marxistas. Mas foi Trotsky quem forneceu a base teórica necessária para que a revolução russa pudesse ressuscitar da derrota de 1905 e seguir para a vitória.
A Revolução Permanente
A experiência da Revolução de 1905 evidenciou nitidamente as diferenças entre bolchevismo e menchevismo – isto é, a diferença entre reformismo e revolução, entre colaboração de classes e marxismo. O cerne da questão era a atitude do movimento revolucionário em relação à burguesia e aos partidos ditos “liberais”. Foi sobre esta questão que Trotsky rompeu com os mencheviques em 1904. Como Lenin, Trotsky desdenhou do colaboracionismo de classe de Dan, Plekhanov e outros, e apontou o proletariado e o campesinato como as únicas forças capazes de levar a revolução até o fim.
Mesmo antes de 1905, durante as discussões sobre a questão das alianças de classe, Trotsky havia desenvolvido as linhas gerais da Teoria da Revolução Permanente, uma das mais brilhantes contribuições para a teoria marxista. Em que consistia essa teoria? Os mencheviques argumentavam que a revolução russa seria de natureza democrático-burguesa e, portanto, a classe trabalhadora não poderia aspirar a tomar o poder, mas teria que apoiar a burguesia liberal. Com esta forma mecânica de pensar, os mencheviques faziam uma paródia das ideias de Marx sobre o desenvolvimento da sociedade. A teoria menchevique dos “estágios” adiou a revolução socialista para um futuro distante. Enquanto isso, a classe operária dever-se-ia comportar como um apêndice da burguesia “liberal”. Esta é a mesma teoria reformista que, muitos anos mais tarde, levaria à derrota da classe operária na China em 1927, na Espanha em 1936-39, na Indonésia em 1965 e no Chile em 1973.
Já em 1848, Marx notava que a “democracia revolucionária” da burguesia alemã era incapaz de desempenhar um papel revolucionário na luta contra o feudalismo, com o qual preferia fazer um acordo por medo do movimento revolucionário dos trabalhadores. Foi neste ponto que o próprio Marx avançou pela primeira vez com o slogan da “Revolução Permanente”. Seguindo os passos de Marx, que havia descrito o “partido democrático” burguês como “muito mais perigoso para os trabalhadores do que os liberais anteriores”, Lenin explicou que a burguesia russa, longe de ser uma aliada dos trabalhadores, inevitavelmente ficaria do lado da contrarrevolução.
“A burguesia de massas“, escreveu ele em 1905, “inevitavelmente se voltará para a contrarrevolução, para a autocracia, contra a revolução e contra o povo, assim que seus interesses estreitos e egoístas forem atendidos, assim como «recuará» da democracia consistente (e já está recuando dela!).” (Lenin, Collected Works, vol. 9, p. 98.)
Que classe, na visão de Lenin, poderia liderar a revolução democrático-burguesa?
“Resta «o povo», isto é, o proletariado e o campesinato. Só se pode confiar no proletariado para marchar até ao fim, pois vai muito além da revolução democrática. É por isso que o proletariado luta na vanguarda por uma república e rejeita desdenhosamente conselhos estúpidos e indignos para levar em conta a possibilidade de a burguesia recuar.” (Idem.)
Contra quem se dirigem estas palavras? Trotsky e a Revolução Permanente? Vejamos o que Trotsky escrevia ao mesmo tempo que Lenin: “Isso resulta no fato de que a luta pelos interesses de toda a Rússia caiu nos ombros da única classe forte agora existente no país, o proletariado industrial. Por esta razão, o proletariado industrial tem uma enorme importância política e, por isso, a luta pela emancipação da Rússia do fardo do absolutismo que a sufoca converteu-se num combate único entre o absolutismo e o proletariado industrial, num combate único em que os camponeses podem dar um apoio considerável, mas não podem desempenhar um papel de liderança. (Trotsky, Results and Prospects, p. 198.)
Mais uma vez: “Armar a revolução, na Rússia, significa, antes de tudo, armar os trabalhadores. Sabendo disso, e temendo isso, os liberais evitam completamente uma milícia. Eles até entregam sua posição ao absolutismo sem lutar, assim como os burgueses Thiers renderam Paris e a França a Bismarck simplesmente para evitar armar os trabalhadores.” (Idem, pág. 193.)
Sobre a questão da atitude em relação aos partidos burgueses, as ideias de Lenin e Trotsky estavam totalmente em sintonia contra os mencheviques que se escondiam atrás da natureza burguesa da revolução como um manto para a subordinação do partido operário à burguesia. Argumentando contra a colaboração de classes, tanto Lenin como Trotsky explicaram que só a classe operária, em aliança com as massas camponesas, poderia realizar as tarefas da revolução democrático-burguesa.
Mas como seria possível os trabalhadores chegarem ao poder num país atrasado e semifeudal como a Rússia czarista? Trotsky respondeu a este argumento da seguinte maneira: “É possível [escreveu Trotsky em 1905] que os trabalhadores cheguem ao poder num país economicamente atrasado mais cedo do que em um país avançado … A nosso ver, a revolução russa criará condições para que o poder passe para as mãos dos trabalhadores… e em caso de vitória da revolução deve fazê-lo… antes que os políticos do liberalismo burguês tenham a oportunidade de mostrar ao máximo seus talentos para governar.” (Trotsky, Results and Prospects, p. 195.)
Isso significava, como os estalinistas mais tarde afirmaram, que Trotsky negava a natureza burguesa da revolução? O próprio Trotsky explica: “Na revolução do início do século XX, cujas tarefas objetivas diretas são também burguesas, emerge como uma perspectiva próxima a inevitável, ou pelo menos provável, dominação política do proletariado. O próprio proletariado cuidará para que essa dominação não se torne um mero “episódio” passageiro, como esperam alguns filisteus realistas. Mas podemos mesmo agora perguntar-nos: é inevitável que a ditadura proletária seja quebrada contra as barreiras da revolução burguesa? Ou é possível, nas condições histórico-mundiais dadas, que ela descubra diante de si a perspectiva de romper essas barreiras? Aqui somos confrontados com questões de tática: devemos trabalhar conscientemente para um governo operário na proporção em que o desenvolvimento da revolução aproxima esta fase, ou devemos nesse momento considerar o poder político como um infortúnio que a revolução burguesa estará pronta a lançar sobre os trabalhadores, e que seria melhor evitar?” (Trotsky, Results and Prospects, pp. 199-200, sublinhado meu.)
Em 1905, só Trotsky estava preparado para defender a ideia de que era possível que a revolução socialista triunfasse na Rússia antes de triunfar na Europa Ocidental. Lenin ainda tinha uma posição pouco clara. Em geral, a posição de Trotsky era muito próxima da dos bolcheviques, como o próprio Lenin viria a admitir mais tarde. No entanto, em 1905, apenas Trotsky estava preparado para colocar a necessidade da revolução socialista na Rússia de forma tão clara e ousada. Doze anos depois, a história viria a provar-lhe que tinha razão.
Reunificação
No período de ascensão revolucionária, as duas alas do movimento uniram-se mais uma vez. Mas a unidade tinha sido mais formal do que real. E com a nova quietude no movimento, a tendência dos mencheviques para o oportunismo ressurgiu mais uma vez, encontrando um claro eco na famosa declaração de Plekhanov: “Os trabalhadores não deveriam ter pegado em armas“. As diferenças entre as duas tendências voltaram a emergir acentuadamente. E novamente Trotsky se viu numa posição política muito semelhante à dos bolcheviques.
A verdadeira diferença entre Lenin e Trotsky nesse período não era sobre política, mas sobre a tendência “conciliadora” de Trotsky. Para usar uma expressão indelicada, Trotsky era um “monge da unidade”. No entanto, ele não estava de forma alguma sozinho nisso. Trotsky sempre defendeu a reunificação no seu jornal Nachalo, e tentou permanecer apartado da luta entre fações, mas foi preso e encarcerado por seu papel nos sovietes antes do IV Congresso (de Unidade) ter ocorrido em Estocolmo. O progresso da revolução deu um tremendo impulso ao movimento pela reunificação das forças do marxismo russo. Os trabalhadores bolcheviques e mencheviques lutaram ombro a ombro sob as mesmas palavras de ordem; os comités partidários rivais fundiram-se espontaneamente. A revolução aproximou os trabalhadores de ambas as fações.
Ao longo da segunda metade de 1905 houve um processo contínuo e espontâneo de unidade a partir de baixo. Sem esperar por uma liderança vinda do topo, as organizações do Partido Bolchevique e Menchevique simplesmente se fundiram. Este facto exprimia, em parte, o instinto natural de unidade dos trabalhadores, mas também o facto, como já vimos, dos dirigentes mencheviques terem sido empurrados para a esquerda por pressão das suas próprias bases. Finalmente, por sugestão do Comité Central bolchevique, incluindo Lenin, foram tomadas medidas conducentes à reunificação. Em dezembro de 1905, as duas lideranças se reuniram efetivamente. Havia agora um Comité Central unido.
O Congresso da Unidade foi convocado em maio de 1906 em Estocolmo, mas já por esta altura, a onda revolucionária estava a amainar e, com ela, o espírito de luta e os discursos de “esquerda” dos mencheviques. Era inevitável um conflito entre os revolucionários consistentes e aqueles que já abandonavam as massas e se acomodavam à reação. A derrota da insurreição de Moscovo em dezembro marcou o início do fim da Revolução de 1905. Os acontecimentos de dezembro marcaram também uma mudança decisiva na atitude dos chamados “liberais”. A burguesia uniu-se em oposição à “loucura” de dezembro. De facto, os liberais já tinham passado à reação em outubro, depois de o czar ter concedido uma nova Constituição. Mas agora eles emergiram com as suas verdadeiras cores. Não foi, evidentemente, a primeira vez na história que assistimos a um fenómeno deste tipo. Exatamente a mesma coisa ocorreu na revolução de 1848, como explicaram Marx e Engels.
Com efeito, os mencheviques defendiam a capitulação à burguesia liberal que, na prática, tinha-se passado abertamente ao monarquismo constitucional e havia-se rendido à autocracia. A essência da diferença de Lenin com os mencheviques era precisamente esta: “A ala direita do nosso partido não acredita na vitória completa do presente, ou seja, na revolução democrática burguesa na Rússia; teme tal vitória; não coloca de forma enfática e definitiva o slogan de tal vitória perante o povo. Está constantemente a ser enganada pela ideia essencialmente errada que é realmente uma vulgarização do marxismo, de que só a burguesia pode “fazer” a revolução burguesa de forma independente, ou de que só a burguesia deve liderar a revolução burguesa. O papel do proletariado como vanguarda na luta pela vitória completa e decisiva da revolução burguesa não é claro para os social-democratas de direita.” (Lenin, Collected Works, vol. 10, pp. 377-8.)
Como Trotsky, Lenin era a favor da unidade organizacional, mas não abandonou por um momento a luta ideológica, mantendo uma posição firme sobre todos em questões básicas de tática e perspectivas. Na prática, embora o Partido estivesse formalmente unido, desde o início dividiu-se em duas tendências opostas: a revolucionária e a oportunista. Reformismo ou revolução, colaboração de classes ou uma política proletária independente. Estas eram as questões básicas que separavam o bolchevismo do menchevismo. As diferenças básicas emergiram imediatamente sobre a atitude a tomar em relação à Duma e aos partidos burgueses. Sobre estas questões fundamentais, a posição de Lenin e Trotsky era idêntica – como o próprio Lenin assinalou no V Congresso (Londres) da RSDLP (1907). No decorrer do debate sobre a atitude em relação aos partidos burgueses, Lenin comentou:
“Trotsky expressou, na imprensa, [sua concordância com a visão] sobre a confluência económica de interesses entre o proletariado e o campesinato na atual revolução na Rússia. Trotsky reconheceu a permissibilidade e utilidade de um bloco de esquerda contra a burguesia liberal. Esses fatos são suficientes para que eu reconheça que Trotsky se aproximou de nossos pontos de vista… [assim] temos aqui solidariedade em pontos fundamentais na questão da atitude em relação aos partidos burgueses.” (Lenin, Collected Works, vol. 12, p. 470, Lawrence e Wishart edição de 1962.)
Partindo de um ponto de vista diferente, Trotsky lutava pela mesma coisa que Lenin. O seu jornal Pravda, sediado em Viena, gozava de grande popularidade. Vários líderes bolcheviques favoreceram o uso do Pravda com o propósito de provocar uma fusão de bolcheviques e mencheviques pró-partido. Nesta reunião de Paris, Kamenev e Zinoviev, agora colaboradores mais próximos de Lenin, propuseram o encerramento do Proletário e defenderam que o Pravda fosse aceite como órgão oficial do Comité Central do RSDLP. Esta posição também foi apoiada por outros como Tomsky. A proposta foi, com efeito, aprovada contra a oposição de Lenin que contrapropôs a criação de um jornal popular bolchevique e de uma revista teórica mensal. No final, chegou-se a um compromisso segundo o qual o Proletário continuaria a sair, mas não mais do que uma edição por mês. Entretanto, foi acordado entrar em negociações com Trotsky com vista a tornar o Pravda de Viena o órgão oficial do CC RSDLP. Este incidente mostra a força das tendências conciliadoras nas fileiras dos bolcheviques, e também nos diz muito sobre a atitude dos bolcheviques em relação a Trotsky neste período.
O erro fundamental de Trotsky nesse período, como apontamos, residia no seu “conciliacionismo” – a ideia da possibilidade de unidade entre bolcheviques e mencheviques. Era o que se chamava de “trotskismo”. Trotsky usou seu jornal, o popular Pravda vienense para este propósito e por um tempo pareceu estar prestes a ter sucesso. Muitos líderes bolcheviques estavam de acordo com ele nesta questão. No CC, os bolcheviques N.A. Rozhkov e V.P. Nogin foram conciliadores, assim como os membros do conselho editorial de Sotsial Demokrat, Kamenev e Zinoviev.
A acalorada denúncia de Lenin do “trotskismo” (isto é, da conciliação) nessa época visava os próprios bolcheviques que estavam inclinados a essa posição. Ver carta a Zinoviev de 11 (24) agosto 1909. Nestes e noutros escritos deste período, Lenin refere-se a Trotsky em termos muito duros.
Não se percebe geralmente que a principal razão para a rispidez do tom de Lenin ao polemizar contra Trotsky durante este período e até à Revolução de fevereiro tenha sido precisamente a persistência de tais tendências dentro do Partido Bolchevique. Na realidade, o que era conhecido como “trotskismo” era precisamente essa conciliação. Esta foi a acusação que Lenin, não injustamente, dirigiu contra Trotsky naquele momento. A nitidez da linguagem de Lênin nessas polémicas foi ditada pelo fato de que, sob o disfarce de “trotskismo”, ele estava realmente atacando tendências conciliadiorass na liderança da sua própria fação.
Trotsky irritou Lenin com a sua recusa em aderir à tendência bolchevique, embora não houvesse diferenças políticas reais que os separassem. Agarrou-se à opinião de que, mais cedo ou mais tarde, uma nova vaga revolucionária empurraria os melhores elementos de ambas as tendências para unirem forças. Ao manter esta posição “conciliadora”, Trotsky cometeu o erro mais grave da sua vida, como ele próprio admitiu muito mais tarde. No entanto, não devemos esquecer que, na altura, as coisas não eram assim tão claras. O próprio Lenin, em mais do que uma ocasião, tentou chegar a uma aproximação com certas camadas dentro dos mencheviques. Em 1908 chegou a um acordo com Plekhanov e, segundo Lunacharsky, “sonhava com uma aliança com Martov”. Mas a experiência viria a provar que isso era impossível. As duas tendências – a revolucionária e a reformista – evoluíam em duas direções opostas. Mais cedo ou mais tarde, uma rutura total era inevitável.
Por iniciativa de Trotsky, o movimento em direção à unidade deu origem a um Plenário especial para expulsar os liquidatários de direita e os otzovistas de ultraesquerda e estabelecer a unidade entre os bolcheviques e os mencheviques de esquerda. Lenin opôs-se a isso. Opôs-se à participação num Plenário de elementos que, de facto, se tinham colocado fora do partido. No final, o ceticismo de Lenin revelou-se fundamentado. A deriva à direita dos mencheviques tinha ido longe demais. Os mencheviques de esquerda (Martov) recusaram-se a romper com a direita e a tentativa de unidade logo fracassou como resultado de diferenças irreconciliáveis. Trotsky mais tarde admitiu honestamente o seu erro nesta questão. Lenin tirou as conclusões necessárias e rompeu decisivamente com os mencheviques em 1912 – a verdadeira data da criação do Partido Bolchevique.
Em 1911 abriu-se um novo período de lutas que se prolongou até à eclosão da Primeira Guerra Mundial. A classe operária recém-despertada rapidamente gravitou para a esquerda. Nestas circunstâncias, a ligação com os mencheviques foi um obstáculo ao desenvolvimento do Partido. A decisão de Lenin de romper com os mencheviques e organizar um partido separado foi inteiramente justificada pelos acontecimentos. Muito em breve, os bolcheviques representavam a maioria decisiva da classe operária: no período 1912-14, quatro quintos dos trabalhadores organizados de São Petersburgo apoiavam os bolcheviques. Um papel central foi desempenhado pelo lançamento de um jornal diário bolchevique, que tomou o nome de Pravda, uma decisão que amargou ainda mais as relações com Trotsky. Mas todos os seus protestos foram em vão. No que diz respeito à maioria dos trabalhadores ativos, aos seus olhos os mencheviques tinham-se desacreditado pela sua política de colaboração com a burguesia.
Trotsky mais uma vez se manifestou contra a cisão, tentando, sem sucesso, trabalhar pela unidade. Foi este erro que o separou de Lenin. No entanto, foi um erro honesto, o erro de um verdadeiro revolucionário com os interesses do movimento no coração. Muitos anos mais tarde, Trotsky lidou francamente com seu erro. Em 1924, Trotsky escreveu ao Bureau da História do Partido:
“Como já afirmei muitas vezes, nas minhas discordâncias com o bolchevismo sobre uma série de questões fundamentais, o erro estava do meu lado. Para esboçar, aproximadamente em poucas palavras, a natureza e a extensão dessas minhas antigas divergências com o bolchevismo, direi o seguinte: durante o tempo em que estive fora do partido bolchevique, durante o período em que minhas diferenças com o bolchevismo atingiram seu ponto mais alto, a distância que me separa das visões de Lenin nunca foi tão grande quanto a distância que separa a posição atual de Stalin-Bukharin dos próprios fundamentos da Marxismo e Leninismo.”
Assim, de forma direta, honesta, Trotsky revela e explica os seus próprios erros e aponta que, na questão da conciliação, Lenin esteve certo o tempo todo. No entanto, desenvolvimentos muito maiores logo tornariam irrelevantes as antigas diferenças entre Lenin e Trotsky. A cisão na Rússia era apenas uma antecipação de outra divisão maior, que ocorreria dois anos mais tarde a nível internacional. E nesta questão decisiva, Lenin e Trotsky estariam mais uma vez do mesmo lado.
A Primeira Guerra Mundial
A decisão dos dirigentes dos partidos da Internacional Socialista de apoiar a “sua” burguesia, em 1914, foi a maior traição da história do movimento operário mundial. Veio como um raio, chocando e desorientando profundamente as fileiras do Internacional. A posição dos líderes da Segunda Internacional em relação à Primeira Guerra Mundial significou o colapso de facto da Internacional. A partir de agosto de 1914, a questão da guerra concentrou a atenção dos socialistas em todos os países.
Pouquíssimas pessoas conseguiram-se manter firmes naquele momento. Lenin na Rússia e Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht na Alemanha, os líderes dos sociais-democratas sérvios, James Connolly na Irlanda e John Maclane na Escócia foram exceções à regra. Desde o início, Trotsky adotou uma clara posição revolucionária contra a guerra, expressa em seu livro A Guerra e a Internacional. Na Conferência de Zimmerwald, em 1915, que reuniu todos os socialistas que se opunham à guerra, Trotsky foi encarregado de redigir o Manifesto, que foi adotado por todos os delegados, apesar das diferenças entre eles.
Em Paris, Trotsky publicou um jornal russo que defendia os princípios do internacionalismo revolucionário, Nashe Slovo. Tinham apenas um punhado de colaboradores e ainda menos dinheiro, mas com enormes sacrifícios conseguiram publicar o jornal diariamente, um feito único, inigualável por qualquer outra tendência do movimento russo, incluindo os bolcheviques da época. Durante dois anos e meio, sob o olhar atento da censura, Nashe Slovo manteve uma existência precária até que as autoridades francesas, sob pressão do governo russo, fecharam o jornal. Durante um motim na frota russa em Toulon, cópias do jornal de Trotsky foram encontradas na posse de alguns dos marinheiros, e usando isso como desculpa, as autoridades francesas deportaram Trotsky no final de 1916. Depois de um curto período passado em Espanha, onde Trotsky conheceu o interior das prisões espanholas, foi novamente deportado para Nova Iorque, onde colaborou com Bukharin e outros revolucionários russos na publicação do jornal Novy Mir. Ele ainda estava trabalhando neste jornal quando surgiram os primeiros relatos confusos de uma revolta em Petrogrado. A segunda revolução russa tinha começado.
Lenin e Trotsky em 1917
A política revolucionária é uma ciência. O estudo das revoluções passadas é um método pelo qual nos preparamos para o futuro. A teoria não é um extra opcional, mas um guia vital para a ação. Quando, antes da Primeira Guerra Mundial, Trotsky defendeu a ideia da possibilidade de uma revolução proletária na Rússia antes da revolução na Europa Ocidental, ninguém o levou a sério. Somente em outubro de 1917 foi demonstrada a superioridade do método marxista de Trotsky. No início da revolução de fevereiro, Lenin estava na Suíça e Trotsky estava em Nova York. Embora estivessem muito longe da revolução, e um do outro, chegaram às mesmas conclusões. Os artigos de Trotsky em Novy Mir e as “Cartas de longe” de Lenin são praticamente idênticos no que diz respeito às questões fundamentais relativas à revolução: a atitude em relação ao campesinato e à burguesia liberal, ao governo provisório e à revolução mundial.
Apesar de todas as tentativas dos estalinistas em falsificar a situação real através da construção de uma muralha da China entre Lenin e Trotsky, os factos falam por si: no momento decisivo da própria revolução, o “trotskismo” e o leninismo eram a mesma coisa. Para Lenin, assim como para Trotsky, o ano de 1917 marcou uma viragem decisiva, que tornou irrelevantes todas as antigas polêmicas. É por isso que Lenin nunca teve ocasião de se referir a eles depois de 1917. Lenin, nas suas últimas palavras ao Partido Comunista Russo (o famoso Testamento Suprimido, que foi escondido por décadas pelos estalinistas), advertiu que o passado não-bolchevique de Trotsky não deveria ser usado contra ele. Esta foi a última palavra de Lenin sobre Trotsky e a relação deste com o Partido Bolchevique, antes de 1917.
Com a única exceção de Lenin, os outros líderes bolcheviques não tinham entendido a situação e foram arrebatados com os acontecimentos. É uma lei histórica que, durante uma situação revolucionária, o partido, e sobretudo a sua direção, sempre fica sob uma enorme pressão do inimigo de classe, da “opinião pública” burguesa e mesmo dos preconceitos das massas trabalhadoras. Nenhum dos líderes bolcheviques em Petrogrado foi capaz de resistir a essas pressões. Nenhum deles colocava a necessidade de que o proletariado tomasse o poder como única forma de levar a revolução adiante. Todos eles abandonaram uma visão de classe e adotaram uma vulgar posição democrática. Stalin era a favor de se apoiar “criticamente” o Governo Provisório e da fusão com os mencheviques. Kamenev, Rykov, Molotov e outros mantinham as mesmas posições.
Só depois da chegada de Lenin é que o Partido Bolchevique mudou de política, após uma luta interna em torno das “Teses de abril” de Lenin, publicadas no Pravda sob a sua assinatura. Ninguém estava preparado para se identificar com esta posição. A verdade é que não tinham compreendido o método de Lenin e tinham transformado os slogans de 1905 num fetiche. O “crime” de Trotsky consistia no fato de que ele havia previsto tudo isso muito antes dos acontecimentos se desenrolarem. Em 1917, a teoria da Revolução Permanente provou-se correta pelos próprios acontecimentos.
A partir deste momento, não havia nada que politicamente separasse Trotsky de Lenin. Todas as diferenças do passado deixaram de existir. Quando Trotsky chegou de volta a Petrogrado, em maio de 1917, Lenin e Zinoviev participaram da cerimónia de boas-vindas organizada pelo Mezhrayontsy (Comité Interdistrital). Nessa reunião, Trotsky declarou que não defendia mais a unidade dos bolcheviques e mencheviques. Só aqueles que romperam com o patriotismo social deveriam agora unir-se sob a bandeira de uma nova Internacional. De facto, desde o momento do retorno de Trotsky à Rússia, ele falou e agiu em solidariedade com os bolcheviques. Comentando isso, o bolchevique Raskólnikov lembrou que:
“Leon Davidovich [Trotsky] não era, naquela época, formalmente membro do nosso partido, mas, de facto, trabalhou nele continuamente desde o dia de sua chegada da América. De qualquer forma, imediatamente após o seu primeiro discurso nos sovietes, todos nós o considerávamos como um dos líderes do nosso partido.” (Proletarskaya Revolutsia, 1923, p. 71.)
Sobre as controvérsias do passado, o mesmo escritor observou: “Os ecos dos desentendimentos ocorridos durante o período pré-guerra desapareceram completamente. Não existiam diferenças entre a linha tática de Lenin e Trotsky. Essa fusão, já observável durante a guerra, foi completa e definitivamente alcançada a partir do momento do retorno de Trotsky à Rússia. Desde o seu primeiro discurso público, todos nós, velhos leninistas, sentimos que ele era dos nosso.” (Idem, pág. 150.)
Se Trotsky não se juntou imediatamente formalmente ao Partido Bolchevique, não foi por quaisquer divergências políticas (ele havia anunciado sua disposição de se juntar imediatamente em discussões com Lenin e os seus camaradas), mas porque Trotsky desejava conquistar a organização do Mezhrayontsi (“Grupo Interdistrital”), que compreendia cerca de 4.000 trabalhadores de Petrogrado e muitas figuras proeminentes da esquerda, como Uritsky, Joffe, Lunacharsky, Ryazanov, Volodarsky e outros que mais tarde desempenharam papéis proeminentes na liderança do Partido Bolchevique. Como ele explicou em seu depoimento à Comissão Dewey:
“Eu estava trabalhando conjuntamente com o Partido Bolchevique. Havia um grupo em Petrogrado que era programaticamente semelhante ao Partido Bolchevique, mas organizacionalmente independente. Consultei Lenin sobre se seria bom entrar imediatamente no Partido Bolchevique ou se seria melhor entrar com esta boa organização operária que tinha três ou quatro mil membros revolucionários.” (The Case of Leon Trotsky, p. 21.)
Sobre o Congresso dos Sovietes realizado no início de junho, que ainda era dominado por mencheviques e social-revolucionários, E. H. Carr, referindo-se a Trotsky e aos Mezhrayontsy, observou que: “Trotsky e Lunacharsky estavam entre os dez delegados dos ‘social-democratas unidos’ que apoiaram solidamente os bolcheviques durante as três semanas do congresso“. (Carr, The Bolshevik Revolution, vol. 1, p. 89.)
A fim de acelerar a adesão dos Mezhrayontsi aos bolcheviques, o que estava sendo contestado por algumas das lideranças, Trotsky escreveu no Pravda a seguinte declaração: “Na minha opinião, no momento atual [isto é, julho] não há diferenças nem de princípio nem de tática entre as organizações interdistritais e bolcheviques. Por conseguinte, não existem motivos que justifiquem a existência separada destas organizações.” (sublinhado nosso)
Em maio de 1917, antes mesmo de Trotsky ter aderido formalmente ao Partido Bolchevique, Lenin propôs que ele fosse nomeado editor-chefe do Pravda, e de passagem lembrou a qualidade de primeira linha da Russkaya Gazeta (o jornal que Trotsky havia assumido e transformado em Nachalo em 1905). Este facto foi dado a conhecer em 1923 em Krasnaya Letopis No. 3 (14). Embora a proposta não tenha sido aceita pelo comité editorial do Pravda, ela mostra com precisão a atitude de Lenin em relação a Trotsky neste momento. Ele estava tão ansioso para que Trotsky e seus apoiantes se juntassem aos bolcheviques que estava preparado para oferecer-lhes posições de liderança no Partido sem lhes colocar condições.
Quando o “Mezhrayontsi” se fundiu com o Partido Bolchevique, a filiação destes militantes ao Partido Bolchevique foi feita de modo retroativo ao momento em que eles se haviam juntado pela primeira vez ao “Mezhrayontsi”, o que foi uma admissão pública de que não havia diferenças importantes entre os dois grupos. Uma nota às obras de Lenin publicadas na Rússia após a revolução afirma: “Na questão da guerra, os Mezhrayontsi ocupavam uma posição internacionalista, e em suas táticas eram próximos dos bolcheviques“. (Lenin, Collected Works, vol. 14, p. 448.)
Após as Jornadas de julho, a iniciativa passou para as forças de reação durante algum tempo. Nos dias mais difíceis, quando o Partido foi levado para a clandestinidade, quando Lenin e Zinoviev foram forçados a partir para a Finlândia, quando Kamenev estava preso e os bolcheviques submetidos a calúnias descaradas como “agentes alemães”, Trotsky falou publicamente em sua defesa, e identificou sua posição com a deles. Neste momento difícil e perigoso, Trotsky escreveu uma carta ao Governo Provisório, que vale a pena citar na íntegra, tendo em vista a luz que lança sobre as relações entre Trotsky e os bolcheviques em 1917. A carta é datada de 23 de julho de 1917:
“Ministros cidadãos:
“Soube que, em conexão com os acontecimentos de 16 e 17 de julho (calendário antigo), foi emitido um mandado de prisão para Lenin, Zinoviev e Kamenev, mas não para mim. Gostaria, pois, de chamar a vossa atenção para o seguinte:
(1) Concordo com a tese principal de Lenin, Zinoviev e Kamenev, e defendi-a na revista Vpered e nos meus discursos públicos.
(2) A minha atitude em relação aos acontecimentos de 16 e 17 de julho foi a mesma que a deles.
(a) Kamenev, Zinoviev e eu soubemos pela primeira vez dos planos propostos para a Metralhadora e outros regimentos na reunião conjunta dos [Comitês Executivos] Bureaus em 16 de julho. Tomamos medidas imediatas para impedir que os soldados saíssem. Zinoviev e Kamenev colocaram-se em contacto com os bolcheviques, e eu com a organização “Interdistrital” [isto é, Mezhrayontsi] a que pertenço.
(b) Quando, apesar dos nossos esforços, a manifestação teve lugar, eu e os meus camaradas bolcheviques fizemos numerosos discursos em frente ao Palácio Tauride, nos quais nos manifestámos a favor da principal palavra de ordem da multidão: “Todo o poder aos sovietes”, mas, ao mesmo tempo, apelámos aos que se manifestavam, tanto os soldados como os civis, para que regressassem às suas casas e quartéis de forma pacífica e ordeira.
(c) Numa conferência que teve lugar no Palácio Tauride na noite de 16 para 17 de julho entre alguns bolcheviques e organizações de bairros, apoiei a moção de Kamenev para que tudo fosse feito para evitar nova manifestação a 17 de julho. Quando, no entanto, se soube pelos agitadores, que chegaram dos diferentes bairros, que os regimentos e os operários das fábricas já tinham decidido sair, e que era impossível conter a multidão até que a crise governamental terminasse, todos os presentes concordaram que o melhor a fazer era dirigir a manifestação de forma pacífica e pedir às massas que deixassem as armas em casa.
(d) No decorrer do dia 17 de julho, que passei no Palácio Tauride, eu e os camaradas bolcheviques mais de uma vez insistimos nesta postura junto da multidão.
(3) O facto de eu não estar ligado ao Pravda e de não ser membro do Partido Bolchevique não se deve a diferenças políticas, mas a certas circunstâncias na história do nosso partido que perderam agora todo o significado.
(4) A tentativa dos jornais de transmitir a impressão de que não tenho “nada a ver” com os bolcheviques tem nela tanta verdade como a notícia de que pedi às autoridades que me protegessem da “violência da multidão”, ou das centenas de outros rumores falsos dessa mesma imprensa.
“De tudo o que disse, é claro que não podem logicamente excluir-me do mandado de detenção que emitiram para Lenin, Kamenev e Zinoviev. Também não pode haver dúvidas de que sou um adversário político tão intransigente como os camaradas acima referidos. Deixar-me de fora apenas serve para enfatizar a prepotência contrarrevolucionária que está por detrás do ataque a Lenin, Zinoviev e Kamenev.” (The Age of Permanent Revolution, pp. 98-9,)
Ao longo de todo esse período, Trotsky, em dezenas de ocasiões, expressou sua concordância com a posição dos bolcheviques. Como resultado, ele foi mais uma vez preso.
Trotsky e a Revolução de outubro
Não é possível aqui fazer justiça ao papel de Trotsky durante a Revolução de Outubro. Hoje, o seu papel é universalmente reconhecido. No entanto, o que podemos dizer é que a experiência da revolução russa demonstra a enorme importância do fator subjetivo (ou seja, a liderança) e do papel do indivíduo na história. O marxismo é determinista, mas não fatalista. Os velhos populistas e terroristas russos eram “voluntaristas” e utópicos. Imaginavam que toda a história dependia da vontade dos indivíduos, “grandes homens” e heróis, independentemente da situação objetiva e das leis da história. Plekhanov e os marxistas russos travaram uma luta implacável contra esta interpretação idealista da história.
Dito isto, há, no entanto, momentos na história da sociedade, em que todos os fatores objetivos necessários para a revolução se desenvolveram e, assim, o fator subjetivo, a liderança, torna-se o fator decisivo. Nesses momentos, todo o processo histórico depende das atividades de um pequeno grupo de indivíduos e, até mesmo, de uma única pessoa. Engels explicou que há períodos históricos em que 20 anos são como um dia, durante os quais aparentemente nada acontece e, por mais atividade que haja, a situação não muda. Mas também salientou que há outros períodos em que a história de 20 anos pode ser concentrada no espaço de algumas semanas ou mesmo dias. Se não houver um partido revolucionário com uma direção revolucionária que possa tirar partido da situação, este momento pode perder-se e pode demorar 10 ou 20 anos até que outra oportunidade se apresente.
No curto espaço de nove meses, entre fevereiro e outubro de 1917, emergiu claramente a importância da questão da classe, do partido e da direção. O Partido Bolchevique foi o partido mais revolucionário já visto na história. No entanto, apesar da sua enorme experiência e da força acumulada da liderança, no momento decisivo os líderes de Petrogrado vacilaram e entraram em crise. Em última análise, o destino da Revolução recaiu sobre os ombros de dois homens: Lenin e Trotsky. Sem eles a revolução de Outubro nunca teria tido lugar.
À primeira vista, esta afirmação parece refutar a compreensão marxista do papel do indivíduo na história. Mas não é assim. Na situação que se seguiu, sem a existência do partido, Lenin e Trotsky teriam sido totalmente impotentes. Foram quase duas décadas de trabalho, de construção e aperfeiçoamento desse instrumento, ganhando autoridade dentro da classe operária e fincando raízes profundas entre as massas, nas fábricas, nos quartéis do exército e nos distritos operários. Um único indivíduo, por maior que fosse, nunca poderia ter tomado o lugar deste instrumento, que nunca pode ser criado através da improvisação.
A classe trabalhadora precisa de um partido para mudar a sociedade. Se não houver um partido revolucionário, capaz de dar uma liderança consciente à energia revolucionária da classe, essa energia pode ser desperdiçada, da mesma forma que se perde o vapor se não houver uma máquina que possa usar o seu poder. Por outro lado, cada partido tem o seu lado conservador. De fato, às vezes os revolucionários podem ser as pessoas mais conservadoras. Este conservadorismo desenvolve-se como consequência de anos de trabalho rotineiro, que é absolutamente necessário, mas pode conduzir a certos hábitos e tradições que, numa situação revolucionária, podem funcionar como um travão, se não forem ultrapassados pela direção. No momento decisivo, em que a situação exige uma mudança brusca na orientação do partido, do trabalho rotineiro à tomada do poder, os velhos hábitos podem entrar em conflito com as necessidades da nova situação. É precisamente neste contexto que o papel da liderança é vital.
Um partido, como órgão de luta de uma classe contra outra, pode ser comparado com um exército. Assim, o partido tem também os seus generais, os seus tenentes, os seus cabos e os seus soldados. Numa revolução, como na guerra, o timing é uma questão de vida ou de morte. Sem Lênin e Trotsky, os bolcheviques teriam, sem dúvida, corrigido seus erros. Mas a que custo? A revolução não pode esperar anos para que o partido corrija os seus erros e o preço das hesitações e dos atrasos é a derrota. Isto ficou claramente demonstrado na Alemanha em 1923.
Para compreender o papel fundamental desempenhado por Trotsky em 1917 basta ler qualquer jornal da época, ou ler qualquer livro de memórias ou história contemporânea, seja esse livro amigável ou hostil. Tomemos como exemplo as seguintes linhas, escritas apenas doze meses após a chegada dos bolcheviques ao poder:
“Todo o trabalho prático relacionado com a organização da insurreição foi feito sob a estreita direção do camarada Trotsky, presidente do Soviete de Petrogrado. Pode-se afirmar com certeza que o Partido deve, primordial e principalmente, ao camarada Trotsky a rápida passagem da guarnição para o lado do soviético e a maneira eficiente como o trabalho do Comitê Militar Revolucionário foi organizado.”
A passagem acima foi escrita por Stalin por ocasião do primeiro aniversário da Revolução de Outubro. Mais tarde, o mesmo Stalin poderia escrever: “O camarada Trotsky não desempenhou nenhum papel particular nem no partido nem na insurreição de outubro, e não poderia fazê-lo sendo um homem comparativamente novo para o nosso partido no período de outubro“. (Stalin’s Works, Moscovo, edição de 1953.)
Mais tarde ainda, não só Trotsky, mas todo o estado-maior de Lenin foram acusados de serem agentes de Hitler, empenhados em restaurar o capitalismo na URSS. Contudo, setenta e quatro anos depois de outubro, como previa Trotsky, foram os herdeiros de Stalin que levaram a cabo a liquidação da URSS e de todas as conquistas da Revolução.
De facto, mesmo a avaliação anterior de Stalin não faz justiça ao papel desempenhado por Trotsky na Revolução de Outubro. Uma vez que, no período-chave de setembro a outubro, Lenin ainda estava na clandestinidade, o principal fardo de realizar os preparativos políticos e organizativos para a insurreição estava sobre os ombros de Trotsky. A maioria dos antigos seguidores de Lenin – Kamenev, Zinoviev, Stalin – ou se opunha à tomada do poder ou, no mínimo, tinha uma posição vacilante e ambígua. No caso de Zinoviev e Kamenev, a sua oposição à insurreição de outubro chegou ao ponto de terem publicado os planos para a revolta na imprensa! A leitura mais superficial da correspondência de Lenin com o Comité Central é suficiente para perceber que luta teve ele para vencer a resistência da direção bolchevique. A dada altura, chegou mesmo a ameaçar demitir-se e a apelar às bases do Partido, passando por cima do Comité Central. Nessa luta, Trotsky e os Mezhrayontsy apoiaram resolutamente a linha revolucionária de Lenin.
Uma das obras mais célebres sobre a Revolução Russa é Dez Dias que Abalaram o Mundo, de John Reed. Lenin, na sua Introdução, descreveu este livro como “uma exposição muito verdadeira e vívida” e recomendou que fosse republicado em “milhões de cópias e traduzido para todas as línguas“. No entanto, sob Stalin, o livro de John Reed desapareceu das publicações dos partidos comunistas, tanto do soviético como dos estrangeiros. A razão não é difícil de ver: uma vista de olhos à página de conteúdos mostra que o autor menciona Lenin 63 vezes, Trotsky 53 vezes, Kamenev oito vezes, Zinoviev sete vezes, Bukharin e Stalin, apenas duas vezes. Isto reflete com maior ou menor precisão o que foi a realidade.
A luta interna do Partido prolongou-se até Outubro e para lá dele. O principal argumento dos conciliadores era que os bolcheviques não deviam tomar o poder sozinhos, mas antes formar uma coligação com outros partidos “socialistas” – ou seja, os mencheviques e os socialistas revolucionários. Mas isso equivalia a uma política de devolução do poder à burguesia, como aconteceu na Alemanha depois de novembro de 1918. John Reed descreve o tipo de discussões acaloradas em que os chamados velhos bolcheviques se chocaram repetidamente com Lenin e Trotsky:
“O Congresso devia reunir-se à uma da tarde, e há muito que a grande sala de reuniões se encheu, mas às sete ainda não havia sinal do presidium… As fações bolchevique e social-revolucionária de esquerda estavam em sessão nas suas próprias salas. Durante toda a tarde, Lenin e Trotsky lutaram contra um compromisso. Uma parte considerável dos bolcheviques era a favor de ceder, para que se criasse um governo de “todos os socialistas”. «Não aguentamos!» – exclamavam – «Há demasiada gente contra nós. Não temos os homens. Ficaremos isolados e tudo cairá.» – Assim argumentavam Kamenev, Riazanov e outros.”
“Mas Lenin, com Trotsky ao seu lado, manteve-se firme como uma rocha. «Deixem que os conciliadores aceitem o nosso programa e poderão entrar! Não vamos ceder um centímetro. Se há camaradas aqui que não têm a coragem e a vontade de ousar o que ousamos, que partam com o resto dos cobardes e conciliadores! Apoiados pelos trabalhadores e soldados, seguiremos em frente».” (Ten days that shook the world, pp. 168-9.)
Tal era o grau de unidade entre Lenin e Trotsky, e a identidade total entre eles, que na mentalidade das pessoas, o Partido Bolchevique era frequentemente conhecido como o Partido de Lenin e Trotsky. Numa reunião do Comité de Petrogrado, a 14 de novembro de 1917, Lenin falou sobre o perigo de tendências conciliatórias na direção do Partido que constituíam uma ameaça mesmo após a Revolução de outubro. Alguns dias após a insurreição bem-sucedida, três membros do Comitê Central (Kamenev, Zinoviev, Nogin) renunciaram em protesto contra as políticas do Partido e emitiram um ultimato exigindo a formação de um governo de coligação incluindo os mencheviques e os SRs “caso contrário, o único caminho que resta é manter um governo puramente bolchevique por meio do terror político“. Terminaram a sua declaração com um apelo aos trabalhadores para uma “conciliação imediata” com base no seu slogan “Viva o governo de todos os partidos soviéticos!”
Esta crise nas fileiras bolcheviques parecia suscetível de destruir a totalidade dos ganhos obtidos por Outubro. Em resposta a uma situação perigosa, Lenin defendeu a expulsão dos principais cabecilhas. Foi nesta situação que Lenin proferiu o discurso que termina com as palavras: “Sem compromisso! Um governo bolchevique homogêneo.” No texto original do discurso de Lenin ocorrem as seguintes palavras: “Quanto à coligação, não posso falar seriamente sobre isso. Trotsky há muito disse que uma união era impossível. Trotsky entendeu isso e, desde então, não houve bolchevique melhor.”
Após a morte de Lenin, a camarilha governante: Stalin, Kamenev e Zinoviev começou uma campanha sistemática de falsificação, destinada a menosprezar o papel de Trotsky na revolução e impulsionar o seu próprio desempenho. Para isso, tiveram de inventar a lenda do “trotskismo”, para criar uma brecha entre a posição de Trotsky e a de Lenin e os “leninistas” (isto é: eles próprios). Os “historiadores” de serviço escavaram o entulho acumulado de velhas polémicas, há muito esquecidas até por aqueles que nelas participaram: e encontravam-se esquecidas, porque todas as questões então levantadas foram resolvidas pela experiência de Outubro e, portanto, não podiam ter se não um interesse abstrato e histórico. Mas um sério obstáculo no caminho dos falsificadores foi a própria Revolução de Outubro. Este obstáculo foi removido pela eliminação gradual do nome de Trotsky dos livros de história, pela reescrita da história e, finalmente, pela supressão pura e simples de todas, mesmo as menções mais inócuas alusões ao papel de Trotsky.
Trotsky e o Exército Vermelho
Nem Lenin nem Trotsky sabiam muito sobre táticas militares antes da Revolução. Trotsky foi convidado a assumir o controle dos assuntos militares num momento em que a Revolução estava sob um extremo perigo. O velho exército czarista tinha desmoronado e não havia nada para substituí-lo. A jovem República Soviética tinha sido invadida por 21 exércitos imperialistas de intervenção. A certa altura, o Estado soviético foi reduzido ao território da antiga Moscóvia – a área em torno de Moscovo e Petrogrado. No entanto, a situação inverteu-se e o Estado operário sobreviveu. Este sucesso deveu-se, em grande medida, ao trabalho incansável de Trotsky na criação do Exército Vermelho.
Em setembro de 1918, quando o poder soviético, nas palavras de Trotsky, atingiu seu ponto mais baixo, o governo aprovou um decreto especial declarando que a pátria socialista estava em perigo. Neste momento difícil, Trotsky foi enviado para a decisiva frente oriental, onde a situação militar era catastrófica. Simbirsk, e depois Kazan, tinham caído para os exércitos brancos. O comboio blindado de Trotsky só podia chegar até Simbirsk, nos arredores de Kazan. As forças inimigas eram superiores tanto em número como em organização. Algumas companhias brancas eram compostas exclusivamente por oficiais e provaram ser mais do que um desafio para as forças revolucionárias mal treinadas e indisciplinadas. O pânico espalhou-se entre as tropas que recuavam em desordem antes da triunfante Contrarrevolução. “O próprio solo parecia estar infetado pelo pânico”, lembrou Trotsky mais tarde em sua autobiografia. “Destacamentos Vermelhos recém-chegados, frescos e moralizados, eram imediatamente engolidos pelo sentimento de retirada. Um boato começou-se a espalhar entre os camponeses locais de que os soviéticos estavam condenados. Sacerdotes e comerciantes levantaram a cabeça. Os elementos revolucionários nas aldeias esconderam-se. Tudo estava a desmoronar-se. Não havia nada a que nos pudéssemos agarrar. A situação parecia desesperadora.”
Era esta a situação quando Trotsky e seus agitadores chegaram. No entanto, numa semana, Trotsky estava voltando vitorioso de Kazan, após a primeira vitória militar decisiva da Revolução. Num discurso ao Soviete de Petrogrado, apelando a voluntários para o Exército Vermelho, descrevia a situação na frente:
“A imagem só agora surgiu diante dos meus olhos. Foi uma das noites mais tristes e trágicas antes de Kazan, quando as nossas jovens forças se retiravam em pânico. Isso foi em agosto, no primeiro semestre, quando sofremos reveses. Chegou um destacamento de comunistas: havia mais de cinquenta deles, cinquenta e seis, creio. Entre eles estavam aqueles que nunca tinham tido uma arma nas mãos antes daquele dia. Havia homens de quarenta ou mais, mas a maioria eram rapazes de dezoito, dezenove ou vinte. Lembro-me de como um comunista de Petrogrado, de cara lisa, de dezoito anos, apareceu no quartel-general à noite, de espingarda na mão, e nos contou como um regimento tinha abandonado a sua posição e eles tinham tomado o seu lugar, rematando: «somos Communards.» Deste destacamento de cinquenta homens regressaram doze, mas, camaradas, criaram um exército estes operários de Petrogrado e Moscovo, que foram para posições abandonadas em destacamentos de cinquenta ou sessenta homens e dos quais regressaram doze em número. Eles pereceram sem nome, como a maioria dos heróis da classe trabalhadora geralmente o fazem. O nosso problema e dever é esforçarmo-nos por restabelecer os seus nomes na memória da classe trabalhadora. Muitos pereceram lá, e já não são conhecidos pelo nome, mas fizeram para nós aquele Exército Vermelho que defende a Rússia soviética e defende as conquistas da classe operária, essa cidadela, essa fortaleza da revolução internacional que a nossa Rússia soviética agora representa. A partir desse momento, camaradas, a nossa posição tornou-se, como sabem, incomparavelmente melhor na frente oriental, onde o perigo era maior, pois os checoslovacos e os Guardas Brancos, avançando de Simbirsk para Kazan, ameaçaram-nos com um movimento em Nijny numa direção, e, noutra, em direção a Vologda, Yaroslavl e Arcanjo, para se juntarem à expedição anglo-francesa. É por isso que os nossos principais esforços foram direcionados para a frente oriental, e esses esforços deram bons resultados.” (Leon Trotsky Speaks, p. 126.)
Após a libertação de Kazan, Simbirsk, Khvalynsk e outras cidades da região do Volga, Trotsky recebeu a tarefa de coordenar e dirigir a guerra em muitas frentes no vasto país. Reorganizou energicamente as forças armadas da Revolução e até compôs o juramento do Exército Vermelho, no qual todos os soldados juravam fidelidade à revolução mundial. Mas o seu feito mais notável foi obter a colaboração de um grande número de oficiais do antigo exército czarista. Sem isso, não se poderia encontrar os quadros militares necessários para compor mais de quinze exércitos em diferentes frentes. Alguns, claro, revelaram-se traidores. Outros serviam a contragosto ou pela rotina de cumprirem ordens. Mas um número surpreendentemente grande foi conquistado para o lado da Revolução e serviu lealmente. Alguns, como Tukhachevsky – um génio militar – tornaram-se comunistas convictos. Quase todos foram assassinados por Stalin na Purga de 1937.
A extensão do sucesso de Trotsky com os antigos oficiais foi uma surpresa até mesmo para Lenin. Quando Lenin perguntou a Trotsky durante a Guerra Civil se seria melhor substituir os antigos oficiais czaristas que eram controlados por comissários políticos, por outros comunistas, Trotsky respondeu:
“Mas tu sabes quantos deles temos no exército agora?
“Não.
“Nem aproximadamente?
“Não sei.
“Não menos de trinta mil.
“O quê?
“Não menos de trinta mil. Para cada traidor há uma centena de fiáveis; para cada um que deserta há dois ou três que são mortos. Como vamos substituí-los todos?”
Alguns dias depois, Lenin fazia um discurso sobre os problemas da construção da comunidade socialista. Eis o que ele disse: “Quando o camarada Trotsky me informou recentemente que em nosso departamento militar os oficiais são numerados em dezenas de milhares, ganhei uma conceção concreta do que constitui o segredo de fazer uso adequado de nosso inimigo … de como construir o comunismo a partir dos tijolos que os capitalistas se reuniram para usar contra nós.” (Trostsky, My Life, pp. 464-5.)
As conquistas de Trotsky foram reconhecidas até mesmo por inimigos declarados da Revolução, incluindo oficiais e diplomatas alemães. Max Bauer prestou homenagem a Trotsky como “um organizador e líder militar nato”, e acrescentou: “Como ele montou um novo exército do nada no meio de batalhas severas e depois organizou e treinou seu exército é absolutamente napoleónico.” e o General Hoffmann chegou à mesma conclusão: “Mesmo de um ponto de vista puramente militar, espanta-se que tenha sido possível às tropas vermelhas recém-recrutadas esmagar as forças, às vezes ainda forte, dos generais brancos e eliminá-los completamente.” (Citado em E.H. Carr em The Bolshevik Revolution, 1917-23, Vol. 3, p. 326.)
Apesar de sua hostilidade ao bolchevismo, Dimitri Volkogonov foi obrigado a prestar homenagem ao papel de Trotsky na Guerra Civil: “Ele era omnipresente“, escreve Volkogonov, “o seu comboio viajava de uma frente para outra; Ele trabalhou arduamente para garantir mantimentos para as tropas, e o seu envolvimento pessoal no uso de comissários militares na frente trouxe resultados positivos. Além disso, os chefes do exército viam nele o “segundo homem” da República Soviética, um importante funcionário político e estatal, um homem com enorme autoridade pessoal. O seu papel na esfera da estratégia era, portanto, político, e não militar.” (Dmitri Volkogonov, Trotsky — OThe Eternal Revolutionary, p. 140.)
Demos a palavra final sobre o papel de Trotsky na Revolução Russa e na Guerra Civil a Lunacharsky, o veterano bolchevique que se tornou o primeiro comissário soviético para a Educação e Cultura: “Seria errado imaginar“, escreveu ele, “que o segundo grande líder da revolução russa é inferior ao seu colega [ou seja, Lenin] em tudo: há, por exemplo, aspetos em que Trotsky o supera incontestavelmente – ele é mais brilhante, ele é mais claro, ele é mais ativo. Lênin está apto como ninguém a assumir a cadeira do Conselho de Comissários do Povo e a guiar a revolução mundial com o toque de génio, mas ele nunca poderia ter lidado com a missão titânica que Trotsky assumiu sobre seus próprios ombros, com aqueles movimentos céleres de um lugar para outro, aqueles discursos espantosos, aquelas fanfarras de ordens no local, esse papel de ser o eletrificador incessante de um exército enfraquecido, ora num ponto, ora noutro. Não há um homem na terra que pudesse ter substituído Trotsky a este respeito.
“Sempre que uma grande revolução ocorre, um grande povo sempre encontrará o ator certo para desempenhar todos os papéis e um dos sinais de grandeza na nossa revolução é o facto de que o Partido Comunista produziu de suas próprias fileiras ou tomou emprestado de outros partidos e incorporou em seu próprio organismo suficientes personalidades notáveis que eram adequadas como nenhuma outra para cumprir qualquer função política que fosse necessária.
“E dois dos mais fortes dos fortes, totalmente identificados com seus papéis, são Lenin e Trotsky.” (A. Lunacharsky, Revolutionary Silhouettes, pp. 68-9.)
A luta de Trotsky contra a burocracia
A revolução de outubro foi o acontecimento mais importante da história da humanidade. Pela primeira vez – se excluirmos a curta experiência da Comuna de Paris – as massas oprimidas começaram a tomar o seu destino nas suas próprias mãos e assumiram a tarefa de reconstruir a sociedade. A revolução socialista é totalmente diferente de todas as outras revoluções da história, porque o fator subjetivo torna-se, pela primeira vez, a força motriz do desenvolvimento social. A explicação para isso está nas diferentes relações produtivas. No capitalismo, as forças de mercado funcionam de forma descontrolada, sem qualquer planeamento ou intervenção estatal. A revolução socialista põe fim à anarquia da produção e impõe controlo e planeamento por parte da sociedade. Como resultado, após a revolução, o fator subjetivo, a consciência de classe, é também o fator decisivo. Nas palavras de Engels, o socialismo é «o salto do domínio da necessidade para o da liberdade».
Mas a consciência das massas não é algo separado das condições materiais de vida, do nível da cultura, da jornada de trabalho… Não foi por capricho que Marx e Engels insistiram que os pré-requisitos materiais para o socialismo dependiam do desenvolvimento das forças produtivas. Quando os mencheviques protestaram contra a revolução de Outubro, argumentando que as condições materiais para o socialismo estavam ausentes na Rússia, havia um elemento de verdade no que diziam. No entanto, as condições objetivas existiam a nível mundial.
O internacionalismo para os bolcheviques não era uma questão sentimental. Lenin repetiu centenas de vezes que ou a revolução russa se espalhava para outros países ou seria esmagada. De facto, após a revolução russa houve uma vaga de situações revolucionárias e pré-revolucionárias em muitos países (Alemanha, Hungria, Itália, França…), mas sem a presença de partidos revolucionários de massas foram derrotados ou, para ser mais preciso, foram traídas pela direção social-democrata. Por causa da traição por parte dos líderes social-democratas na Alemanha e em outros países, a revolução russa foi isolada em um país atrasado, onde as condições de vida das massas eram atrozes. Só num ano, seis milhões de pessoas morreram de fome. No final da guerra civil, a classe operária estava exausta.
Nesta situação, uma reação era inevitável. Os resultados alcançados não corresponderam às esperanças das massas. Uma camada importante dos trabalhadores mais conscientes e militantes tinha sido morta durante a guerra civil. Outros, absorvidos nas tarefas de administrar a indústria e o Estado, divorciaram-se gradualmente do resto da classe. Num clima de crescente cansaço, desânimo e desorientação das massas, o aparelho de Estado elevou-se gradualmente acima da classe operária. Cada passo atrás por parte da classe trabalhadora encorajou ainda mais os burocratas e carreiristas. Nesta situação, surgiu uma casta burocrática satisfeita com a sua própria posição e que discordava das ideias “utópicas” da revolução mundial. Estes elementos agarraram-se entusiasticamente à ideia – apresentada pela primeira vez em 1923 – de “socialismo num só país”.
O marxismo explica que as ideias não caem do céu. Se uma ideia é apresentada e consegue obter um apoio de massas, essa ideia por necessidade refletirá os interesses de uma classe ou casta social. Hoje em dia, historiadores burgueses tentam apresentar a luta entre Stalin e Trotsky como um “debate” sobre questões teóricas, no qual, por razões obscuras, Stalin ganhou e Trotsky perdeu. No entanto, o fator determinante na história não é a luta entre ideias, mas a luta entre interesses de classe e forças materiais. A vitória de Stalin não se deveu à sua superioridade intelectual (de facto, de todos os líderes bolcheviques, Stalin foi o mais medíocre em questões de teoria), mas ao facto das ideias que defendia representarem os interesses e privilégios da nova casta burocrática que estava em vias de se formar, enquanto Trotsky e a Oposição de Esquerda defendiam as ideias de Outubro e os interesses da classe operária que estava a ser forçados a recuar perante a ofensiva lançada pela burocracia, pela pequena burguesia, pelos kulaks…
As ideias e ações de Stalin também não foram desenvolvidas e planeadas com antecedência. Nos primórdios não sabia para onde ia e, de facto, se soubesse em 1923 para onde o processo que ele próprio conduzia o levaria, o mais provável é que nunca tivesse começado a trilhar por esse caminho. Lenin estava ciente do perigo e tentou alertar contra o perigo da burocracia. No XI Congresso, Lwnin apresentou ao Partido uma acusação contundente contra a burocratização do aparelho de Estado:
“Se tomamos Moscovo“, disse, “com os seus 4.700 comunistas em cargos de responsabilidade, e se pegarmos na enorme máquina burocrática, esse amontoado gigantesco, temos de perguntar: quem dirige quem? Duvido muito que se possa dizer com verdade que os comunistas estão a dirigir esse montante. Para dizer a verdade, eles não estão dirigindo, eles estão sendo direcionados.” (Lênin, Collected Works, vol. 33, p. 288)
Para realizar o trabalho de eliminar burocratas e carreiristas do aparelho estatal e partidário, Lenin iniciou a criação da RABKRIN (órgão de Inspeção de Trabalhadores e Camponeses) com Stalin no comando. Lenin viu a necessidade de haver um forte organizador para realizar minuciosamente esse trabalho. O percurso de Stalin como organizador do partido parecia qualificá-lo para o cargo. Dentro de alguns anos, Stalin ocupou uma série de cargos organizacionais no Partido: chefe do RABKRIN, membro do Comité Central e do Politburo, Orgburo e Secretariado. Mas a sua visão estreita e organizacional e a sua ambição pessoal levaram Stalin a posicionar-se, num curto espaço de tempo, como principal porta-voz da burocracia na liderança do partido, e não como seu opositor.
Já em 1920, Trotsky criticava o funcionamento da RABKRIN, que começando por ser uma ferramenta na luta contra a burocracia estava-se tornando ela própria num viveiro de burocratas. Inicialmente, Lenin defendeu RABKRIN contra Trotsky. A doença impediu-o de perceber o que se passava nas suas costas no Estado e no partido. Stalin usou a sua posição, o que lhe permitiu selecionar pessoal para cargos de liderança no Estado e no partido para reunir silenciosamente em torno de si um bloco de aliados e yes-men, politicamente anódinos, mas que lhe eram gratos pelo sua ascensão. Nas suas mãos, RABKRIN tornou-se um instrumento para Stalin construir a sua própria posição e eliminar os seus rivais políticos.
Lenin só tomou consciência da terrível situação quando descobriu a verdade sobre a forma como Stalin lidou com as relações com a Geórgia. Sem o conhecimento de Lenin ou do Politburo, Stalin, juntamente com os seus esbirros Dzerzhinsky e Ordzhonikidze, levou a cabo um golpe de Estado na Geórgia. Os melhores quadros do bolchevismo georgiano foram expurgados, e o acesso a Lenin negado. Este foi alimentado com uma série de mentiras por Stalin. Quando finalmente descobriu o que estava acontecendo, Lenin ficou furioso. Do seu leito de convalescença, no final de 1922, ditou uma série de notas ao seu estenógrafo sobre “as notórias questões da autonomização, que, ao que parece, é oficialmente chamada de questão da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas“.
As notas de Lenin são uma acusação esmagadora da arrogância burocrática e chauvinista de Stalin e da sua camarilha. Mas Lenin não tratou este incidente como um fenómeno acidental, mas como a expressão do nacionalismo podre e reacionário da burocracia soviética. Vale a pena citar longamente as palavras de Lenin sobre o aparelho de Estado.
“Diz-se que era necessário um aparelho de Estado unido. De onde veio essa garantia? Não veio do mesmo aparelho russo, que, como referi numa das secções anteriores do meu diário, tomámos do czarismo e ligeiramente ungidos com petróleo soviético?
“Não há dúvida de que essa medida deveria ter sido adiada até que pudéssemos dizer que garantimos que o nosso aparelho era nosso. Mas agora, devemos, em consciência, admitir o contrário; o aparelho de Estado a que chamamos nosso é, de facto, ainda bastante estranho para nós, é um emaranhado burguês e czarista e não houve possibilidade de nos livrarmos dele nos últimos cinco anos sem a ajuda de outros países e porque estivemos “ocupados” a maior parte do tempo com compromissos militares e a luta contra a fome.
“É natural que, em tais circunstâncias, a ‘liberdade de separação da união’ pela qual nos justificamos seja um mero pedaço de papel, incapaz de defender os não-russos da investida daquele homem realmente russo, o chauvinista grande-russo, em substância um patife e um tirano, como é o típico burocrata russo. Não há dúvida de que a percentagem infinitesimal de trabalhadores soviéticos e sovietizados se afogará nessa maré de farpa chauvinista da Grande Rússia como uma mosca no leite.” (Lenin, Collected Works, vol. 36, p. 605, grifo nosso.)
Após o caso georgiano, Lenin jogou todo o peso de sua autoridade por detrás da luta para remover Stalin do cargo de secretário-geral do partido que ocupava em 1922, após a morte de Sverdlov. No entanto, o principal temor de Lenin, agora mais do que nunca, era que uma divisão aberta na direção, sob as condições prevalecentes, pudesse levar ao desmembramento do partido segundo linhas de classe. Por isso, tentou manter a luta confinada à liderança, e as suas notas e outros materiais não foram tornados públicos. Lenin escreveu secretamente aos bolcheviques-leninistas georgianos (enviando cópias a Trotsky e Kamenev) assumindo a sua causa contra Stalin “de todo o coração“. Como não pôde prosseguir pessoalmente com o caso, escreveu a Trotsky pedindo-lhe que assumisse a defesa dos georgianos no Comité Central. Durante seu último período de doença, para lutar contra o processo de burocratização até pediu a Trotsky para formar um bloco com ele para lutar contra Stalin no XXI Congresso do Partido. Mas Lenin morreu antes de poder agir de acordo com seus planos. A sua Carta ao Congresso, na qual ele descreve Trotsky como o membro mais hábil do Comité Central e exige a remoção de Stalin como Secretário-Geral do Partido, foi suprimida pela camarilha dirigente e permaneceu inédita por décadas.
“Socialismo num só país”
Mesmo com a participação de Lenin, o processo não poderia ter-se desenrolado de forma diferente. As causas não estavam nos indivíduos, mas na situação objetiva de um país atrasado e faminto, isolado pelo atraso da revolução socialista no Ocidente. Após a morte de Lenin, o grupo dirigente (“A Troika”), composto inicialmente por Kamenev, Zinoviev e Stalin, ignorou os conselhos de Lenin e, em vez disso, iniciou uma campanha contra o chamado trotskismo, que na prática significou o repúdio das ideias de Lenin e da revolução de Outubro. Inconscientemente, refletiam a pressão do estrato crescente de funcionários privilegiados que se tinham saído bem com a Revolução e desejavam pôr fim ao período de tempestade revolucionária e à democracia operária. A reação pequeno-burguesa contra Outubro encontrou a sua expressão na campanha contra o “trotskismo” e, sobretudo, na teoria anti-leninista do “socialismo num só país”.
O facto de a Rússia ser um país atrasado não teria sido um problema se essa revolução fosse um prelúdio para uma revolução socialista mundial bem-sucedida. Esse era o objetivo do Partido Bolchevique sob Lenin e Trotsky. O internacionalismo não era um gesto sentimental, mas radicava no carácter internacional do capitalismo e da luta de classes. Nas palavras de Trotsky: “O socialismo é a organização de uma produção social planeada e harmoniosa para a satisfação das necessidades humanas. A propriedade coletiva dos meios de produção ainda não é o socialismo, mas apenas sua premissa jurídica. O problema de uma sociedade socialista não pode ser abstraído do problema das forças produtivas, que no atual estágio do desenvolvimento humano são mundiais em sua própria essência.” (Trotsky, History of The Russian Revolution, p. 1237.) A Revolução de outubro foi considerada como o início da nova ordem socialista mundial.
A teoria antimarxista do “socialismo em um país”, exposta por Stalin no outono de 1924, ia contra tudo o que os bolcheviques e a Internacional Comunista defenderam até aí. Como era possível construir uma espécie de socialismo “nacional” num único país, quanto mais num país extremamente atrasado como a Rússia? Tal pensamento nunca entrara na cabeça de nenhum bolchevique – incluindo a de Stalin – até 1924.
Em abril de 1924, Stalin ainda poderia escrever no seu livro Os Fundamentos do Leninismo: “Para o derrube da burguesia, os esforços de um país são suficientes – para isso a história da nossa própria revolução o testemunha. Para a vitória final do socialismo, para a organização da produção socialista, não bastam os esforços de um país, especialmente de um país camponês como o nosso, para isso temos de contar com os esforços dos proletários de vários países avançados.” Mas, em poucos meses, essas linhas foram retiradas e o seu exato oposto colocado em seu lugar. “Depois de consolidar seu poder e liderar o campesinato no seu despertar, o proletariado do país vitorioso pode e deve construir uma sociedade socialista.” (Stalin, Os Fundamentos do Leninismo, p. 39.)
Tal formulação, que contrariava tudo o que Marx, Engels e Lenin já escreveram, teria sido impensável enquanto Lenin ainda estava vivo. Mas mostrava até onde tinha ido a reação burocrática contra Outubro. Isso produziu uma crise no triunvirato governante. Alarmados com esta viragem de acontecimentos, Kamenev e Zinoviev romperam com Stalin e formaram uma aliança com Trotsky, a Oposição de Esquerda Unida. Em 1926, durante uma reunião da oposição, a viúva de Lenin, Krupskaya, comentou amargamente: “Se Vladimir estivesse aqui, estaria na prisão”. A principal razão para a derrota de Trotsky e da Oposição estava no clima entre as massas, que simpatizavam com a Oposição, mas estavam exaustas e desgastadas por longos anos de Guerra e revolução.
A emergência de uma nova casta dominante tinha profundas raízes sociais. O isolamento da revolução foi a principal razão por trás da ascensão de Stalin e da burocracia, mas ao mesmo tempo isso se tornou a causa de novas derrotas da revolução internacional: Bulgária e Alemanha (1923); a derrota da Greve Geral na Grã-Bretanha (1926); China (1927) e a mais terrível derrota de todas, a da Alemanha (1933). Cada derrota da revolução internacional, aprofundou o desânimo da classe operária e encorajou ainda mais os burocratas e carreiristas. Após a terrível derrota na China em 1927 – cuja culpa pode ser atribuída diretamente a Estalin e a Bukharin – começou a expulsão da Oposição. Mesmo antes disso, os apoiantes da Oposição foram sistematicamente perseguidos, saneados dos seus empregos, ostracizados e, em alguns casos, levados ao suicídio.
As ações monstruosas dos estalinistas estavam em completa contradição com as tradições democráticas do Partido Bolchevique. Consistiram na interrupção de reuniões por hooligans, numa campanha viciosa de mentiras e calúnias na imprensa oficial, na perseguição aos amigos e apoiantes de Trotsky, o que levou à morte de vários bolcheviques proeminentes, como Glazman (levado ao suicídio por chantagem) e Joffe, o famoso diplomata soviético a quem foi negado o acesso ao tratamento médico necessário e cometeu suicídio. Nas reuniões do Partido, os oradores oposicionistas eram sujeitos ao vandalismo sistemático de bandos com métodos ao estilo fascista, organizados pelo aparelho estalinista para intimidar a Oposição. O jornal comunista francês, Contre le Courant, nos anos vinte, relatava os métodos pelos quais os estalinistas conduziam sua “discussão partidária” a nível nacional:
“Os burocratas do partido russo formaram em todo o país gangues de denunciantes. Sempre que um trabalhador do partido pertencente à Oposição toma a palavra, colocam-se à volta da sala um verdadeiro quadro de homens armados com apitos policiais. Com as primeiras palavras do militante da Oposição, começam os assobios. O charivari dura até que este ceda a palavra.” (The Real Situation in Russia, p. 14, nota de rodapé.)
Dado o isolamento da Revolução em condições de terrível atraso, o esgotamento da classe operária e da sua vanguarda, a vitória da burocracia estalinista era um dado adquirido. Isto não foi resultado da esperteza ou clarividência de Stalin. Pelo contrário. Stalin não previu nada e não entendeu nada, mas procedeu empiricamente, como mostram os constantes ziguezagues da sua política. Stalin e o seu aliado Bukharin seguiram um caminho para a direita, tentando basear-se nos “camponeses fortes” (ou seja, os Kulaks). Trotsky e a Oposição de Esquerda advertiram insistentemente para o perigo de tal política. Defendiam uma política de industrialização, planos quinquenais e coletivização da Terra pelo exemplo. Numa sessão plenária do Comité Central, em abril de 1927, Stalin desdenhou desta proposta. Na verdade, comparou o plano de eletrificação da Oposição (o esquema Dnieperstroi) à “oferta a um camponês dum gramofone em vez de uma vaca“.
As advertências da oposição mostraram-se corretas. O perigo Kulak, manifestado numa greve de cereais e sabotagem, ameaçava derrubar o poder soviético e colocar a contrarrevolução capitalista na ordem do dia. Numa reação de pânico, Stalin viu-se obrigado a romper com Bukharin e a lançar-se numa aventura ultraesquerdista. Tendo rejeitado desdenhosamente a proposta de Trotsky de um Plano Quinquenal para desenvolver a economia soviética, ele de repente deu uma cambalhota de 180 graus em 1927, e começou a defender a loucura de um “Plano Quinquenal em quatro anos” e a “liquidação dos kulaks como classe” através da coletivização forçada. Esta súbita viragem desorientou muitos oposicionistas, que imaginavam que Stalin tinha adotado as políticas da Pposição. Mas a política de Stalin era apenas uma caricatura das políticas da Oposição. Descartou qualquer retorno às normas da democracia soviética leninista e levou à consolidação da burocracia como uma casta dominante.
A começar por Zinoviev e Kamenev, um ex-oposicionista após outro capitulou perante Stalin, na esperança de ser aceite de novo no Partido. Era uma ilusão. A sua retratação apenas abriu caminho a novas exigências e novas capitulações, terminando na humilhação final dos Julgamentos de Moscovo, onde Kamenev, Zinoviev e outros velhos bolcheviques se declararam culpados dos crimes mais monstruosos contra a Revolução. Nem isso os salvou. Foram para a morte às mãos dos carrascos de Stalin, tendo anteriormente coberto as suas próprias cabeças de imundície.
Trotsky manteve-se firme, embora não tivesse ilusões de que poderia vencer esta luta, dada a esmagadora correlação de forças desfavorável. Mas lutava para deixar para trás uma bandeira, um programa e uma tradição para a nova geração. Como ele explica em sua biografia:
“O grupo dirigente da Oposição encarou este finale de olhos bem abertos. Apercebemo-nos muito claramente de que podíamos fazer das nossas ideias propriedade comum da nova geração, não através da diplomacia e das evasões, mas apenas através de uma luta aberta que não se furtava a nenhuma das consequências práticas. Fomos ao encontro do desastre inevitável, confiantes, no entanto, de que estávamos a abrir caminho para o triunfo das nossas ideias num futuro mais distante.” (Trotsky, Minha Vida, p. 531.)
A Oposição de Esquerda Internacional
Em 1927, Trotsky foi exilado na Turquia. Stalin não havia consolidado suficientemente a sua posição para poder simplesmente matá-lo. Dos seus lugares no exílio (primeiro um exílio interno depois a deportação da própria União Soviética] entre 1927 e 1933, Trotsky dedicou as suas energias à organização da Oposição de Esquerda Internacional, com o objetivo de regenerar a URSS e a Internacional Comunista. A viragem ultra-esquerdista de Stalin na União Soviética encontrou sua expressão no campo internacional na teoria do chamado Terceiro Período e do “social-fascismo”. Isso deveria inaugurar a “crise final” do capitalismo à escala mundial. O Comintern, sob instruções de Moscovo, declarou todos os partidos, exceto os Partidos Comunistas, como fascistas. Isto aplicava-se sobretudo aos partidos social-democratas, apelidados de “social-fascistas”. Esta loucura teve resultados particularmente desastrosos na Alemanha, onde levou diretamente à vitória de Hitler.
A catastrófica recessão mundial de 1929-33 teve os seus efeitos mais desastrosos na Alemanha. O desemprego disparou para 8 milhões. Grandes setores da classe média foram arruinados. Mas depois de ter sido decepcionada pelos social-democratas em 1918 e pelos comunistas em 1923, a classe média desesperada da Alemanha olhava agora para o Partido Nazi de Hitler como uma saída. Nas eleições de setembro de 1930, os nazistas obtiveram quase seis milhões e meio de votos. De seu exílio na Turquia, Trotsky alertou insistentemente para o perigo do fascismo na Alemanha. Ele exigiu que os comunistas alemães formassem uma Frente Unida com os social-democratas para deter Hitler. Esta mensagem foi martelada numa série de artigos e documentos como A Viragem na Internacional Comunista e a Situação Alemã. Tratava-se de um apelo ao regresso à política leninista da Frente Única. Mas caiu em saco roto.
Embora o Movimento Operário Alemão fosse o mais poderoso do mundo ocidental, foi paralisado na hora da verdade pelas políticas dos seus líderes. Em particular, os líderes do Partido Comunista Alemão estalinizado desempenharam um papel pernicioso na divisão do movimento operário face à ameaça nazi. Eles até lançaram o slogan “Espanca os pequenos Scheidemanns nos pátios das escolas!” —uma incrível incitação dos filhos dos comunistas a espancar os filhos dos sociais-democratas. Esta loucura atingiu o seu ponto extremo no chamado Referendo Vermelho. Quando, em 1931, Hitler organizou um referendo destinado a derrubar o governo social-democrata na Prússia, o Partido Comunista, sob ordens de Moscovo, orientou os seus militantes a apoiarem os nazis. Já em 1932, o jornal estalinista britânico, The Daily Worker, escrevia:
“É significativo que Trotsky tenha saído em defesa de uma frente única entre os partidos comunista e social-democrata contra o fascismo. Nenhuma liderança de classe mais disruptiva e contrarrevolucionária poderia ter sido dada em um momento como o atual.”
Em 1933, o Partido Comunista Alemão tinha cerca de seis milhões de apoiantes, enquanto os sociais-democratas somavam cerca de oito milhões. As suas milícias combinadas tinham cerca de um milhão de membros – um número muito maior do que a Guarda Vermelha em Petrogrado e Moscovo em 1917. No entanto, Hitler mais tarde iria gabar-se que “cheguei ao poder sem quebrar uma vitrina“. Tratava-se de uma traição à classe operária comparável à de agosto de 1914. Da noite para o dia, as poderosas organizações do proletariado alemão foram reduzidas a escombros. Os trabalhadores de todo o mundo – e sobretudo da União Soviética – pagaram um preço terrível por essa traição.
Trotsky esperava que uma derrota desta envergadura servisse para abalar a Internacional Comunista até às suas raízes e abrir um debate nas fileiras dos Partidos Comunistas que os regenerasse e inocentasse a Oposição. No entanto, as coisas correram de forma diferente. O Comintern e seus partidos estavam tão estalinizados que não houve debate, nem autocrítica, apenas uma reiteração das mesmas políticas desacreditadas. A linha do Partido Comunista Alemão (e, portanto, de Estalin, o Grande Líder e professor) foi solenemente ratificada como a única correta. Incrivelmente, os líderes comunistas alemães lançaram o slogan: “Depois de Hitler, a nossa vez!”. Pior ainda, no ano seguinte, quando os fascistas franceses da Croix de Feu e outros grupos tentaram derrubar o governo do Partido Radical de Deladier, os estalinistas chegaram a instruir os seus membros a manifestarem-se ao lado dos fascistas contra o Deladier, o “radical-fascista”.
Um partido e uma Internacional incapazes de aprender com os seus erros estão condenados. A terrível derrota da classe operária alemã como resultado das políticas tanto dos estalinistas quanto dos social-democratas, seguida pela completa ausência de qualquer autocrítica ou discussão sobre a questão dentro dos partidos da Internacional Comunista, convenceu Trotsky de que o Comintern se havia degenerado irremediavelmente. Se, nos primeiros anos, a burocracia ainda não se tinha consolidado como casta dirigente, agora tornara-se claro que já não era uma aberração histórica que podia ser corrigida através da crítica e da discussão, mas representava uma contrarrevolução triunfante que tinha destruído todos os elementos da democracia operária instaurada pela Revolução de outubro. Trotsky levantou, portanto, o slogan de uma nova Internacional – a Quarta Internacional.
Os Julgamentos de Moscovo
A expressão mais clara da nova situação foram os famigerados “Julgamentos de Moscovo”, que Trotsky descreveu como “uma guerra civil unilateral contra o Partido Bolchevique”. Entre 1936 e 1938, todos os membros do Comité Central do tempo de Lenin, que estavam vivos na URSS, foram assassinados. “O julgamento dos 16” (Zinoviev, Kamenev, Smirnov, etc.); “O julgamento dos 17” (Radalev, Pyatakov, Sokolnikov, etc.); “O julgamento secreto dos oficiais do exército” (Tukhachevsky, etc.); “O julgamento dos 21” (Bukharin, Rykov, Rakovsky, etc.). Os antigos camaradas de Lenin foram acusados de terem cometido os crimes mais grotescos contra a revolução. Normalmente eles eram acusados de serem agentes de Hitler (da mesma forma que os jacobinos foram acusados de serem agentes da Inglaterra no período da reação termidoriana na França).
Os objetivos da burocracia eram simples: destruir completamente todos aqueles que podiam tornar-se um ponto de referência para o descontentamento das massas. Chegaram mesmo a prender e assassinar milhares de pessoas, que tinham sido totalmente leais a Stalin, mas cujo único crime era a sua ligação direta à experiência da revolução de Outubro. Era até perigoso ser amigo, vizinho, pai ou filho de qualquer um dos presos. Nos campos de concentração encontravam-se famílias inteiras, incluindo as crianças. O general Yakir foi assassinado em 1938. O filho passou 14 anos com a mãe nos campos de concentração. Foram muitos os casos deste tipo.
O arguido principal não esteve presente nos julgamentos. Leon Trotsky, depois de ter visto ser-lhe negado o direito de asilo por todos os países da Europa, estava agora no México onde organizou uma campanha internacional de protesto contra os julgamentos de Moscovo. Porque é que a burocracia estalinista tinha tanto medo de um homem? A Revolução de Outubro tinha instaurado um regime de democracia operária que dava aos trabalhadores a maior liberdade. Por outro lado, a burocracia usurpadora só poderia governar destruindo a democracia operária e instalando um regime totalitário e deformado. Não podia tolerar o mínimo de liberdade de expressão ou crítica, seja na política, na arte, na ciência ou na literatura.
À primeira vista, o regime de Stalin era semelhante ao de Hitler, Franco ou Mussolini. Mas havia uma diferença fundamental: a nova casta dominante na URSS baseava-se nas novas relações de propriedade, estabelecidas pela revolução de Outubro. Assim, viu-se numa situação contraditória. Para defender o seu próprio poder e privilégios, esta casta parasitária teve de defender, ao mesmo tempo, as novas formas da economia planificada nacionalizada, que consubstanciavam grandes conquistas históricas para a classe operária. Os burocratas privilegiados que destruíram as conquistas políticas de Outubro e aniquilaram o Partido Bolchevique, foram forçados a manter a ficção de um “Partido Comunista”, “Sovietes”, etc. Tiveram também de desenvolver as forças produtivas, apoiando-se na economia nacionalizada e planificada. Assim, desempenharam um papel relativamente progressista, desenvolvendo a indústria, embora a um preço dez vezes superior ao da burguesia de outros países no passado.
Os marxistas não defendem a democracia por razões sentimentais. Como Trotsky explicou, uma economia planificada precisa de democracia da mesma forma que o corpo humano precisa de oxigênio. O controlo asfixiante de uma burocracia todo-poderosa é incompatível com o desenvolvimento de uma economia planificada. A existência da burocracia gera inevitavelmente todo o tipo de corrupção, má gestão e burlas a todos os níveis. Esta é a razão pela qual uma burocracia, em oposição à burguesia, não podia tolerar qualquer crítica ou pensamento independente, não apenas na política, mas na literatura, na música, na arte ou na filosofia. Trotsky era uma ameaça à burocracia porque permanecia como testemunha e memória das genuínas tradições democráticas e internacionalistas do bolchevismo.
Na década de 1930, Trotsky analisou esse novo fenómeno da burocracia estalinista na sua obra clássica A Revolução Traída e explicou a necessidade de uma nova revolução, uma revolução política, para regenerar a URSS. Da mesma forma que todas as classes dominantes ou castas da história, a burocracia russa não iria “desaparecer” por si só. Já em 1936, Trotsky advertia que a burocracia estalinista no poder representava uma ameaça mortal à sobrevivência da URSS. Ele previu, com precisão surpreendente, que, a menos que a burocracia fosse removida pela classe trabalhadora, ela inevitavelmente acabaria numa contrarrevolução capitalista. Com um atraso de cerca de cinquenta anos, a previsão de Trotsky veio a confirmar-se. Não satisfeitos com seus desmesurados privilégios derivados da pilhagem da economia planificada nacionalizada, os filhos e netos da burocracia dos anos 30 transformaram-se nos proprietários privados dos meios de produção na Rússia e, assim, mergulharam a pátria de Outubro numa nova era das Trevas, de barbárie e de colapso ao longo dos anos 90 do séc. Passado – tal como Trotsky também alertara.
Stalin e a casta privilegiada que ele representava jamais poderiam perdoar Trotsky por expô-los como usurpadores e coveiros de Outubro. O trabalho de Trotsky e seus colaboradores, representava um perigo mortal para a burocracia, que respondeu com uma campanha maciça de assassinatos, perseguições e calúnias. Procurar-se-ia em vão nos anais da história moderna encontrar um paralelo para a perseguição sofrida pelos trotskistas às mãos de Stalin e da sua monstruosa máquina assassina. Seria necessário voltar à perseguição dos primeiros cristãos ou à infame obra da Inquisição espanhola para encontrar tal paralelo. Um a um, os apoiantes de Trotsky na União Soviética foram silenciados pelos carrascos de Stalin. Camaradas, amigos e familiares acabaram todos naquela infernal máquina de moer carne que era o Gulag de Stalin.
Mesmo nesses buracos infernais, os trotskistas permaneceram firmes. Só eles mantiveram a sua organização e disciplina. Inventaram formas para acompanhar os assuntos internacionais, organizaram reuniões e grupos de discussão marxistas e lutaram para defender os seus direitos. Chegaram a organizar manifestações e greves de fome, como a greve nos campos de Pechora, em 1936, que durou 136 dias.
“Os grevistas protestaram contra a sua transferência de locais anteriores de deportação e a sua condenação sem julgamento aberto. Eles exigiram uma jornada de oito horas, a mesma comida para todos os presos (independentemente de cumprirem ou não as normas de produção), a separação de presos políticos e criminais e a remoção de inválidos, mulheres e idosos de regiões subpolares para áreas com clima mais ameno. A decisão de greve foi tomada em reunião aberta. Os presos doentes e idosos ficaram isentos; «mas estes últimos rejeitaram categoricamente a isenção». Em quase todos os dormitórios, os não-trotskistas responderam ao apelo, mas apenas “nos dormitórios dos trotskistas a greve foi total e completa”.
“A administração, com medo de que a ação se espalhasse, transferiu os trotskistas para algumas cabanas semiarruinadas e desertas a vinte e cinco quilômetros de distância do campo. De um total de 1.000 grevistas, vários morreram e apenas dois quebraram; mas estes dois não eram trotskistas. Em março de 1937, por ordem de Moscovo, a administração do campo cedeu em todos os pontos; e a greve chegou ao fim.” (Isac Deutscher, The Profet Outcast, p. 416.)
Mas o triunfo dos prisioneiros durou pouco. O Terror de Yezhov [chefe da polícia descreta] logo atingiu novos patamares de frenesim. As já escassas rações dos prisioneiros foram reduzidas para apenas 400 gramas de pão por dia, e a GPU armou prisioneiros comuns com bastões e incitou-os a bater nos oposicionistas. O número de tiroteios arbitrários aumentou. Stalin tinha decidido sobre a “Solução Final”. No final de março de 1938, os trotskistas foram expulsos para fora do campo de Vorkuta em grupos de vinte e cinco para o deserto congelado – até a morte. Durante meses, os tiroteios continuaram. Os açougueiros da GPU fizeram o seu trabalho, assassinando homens, mulheres e crianças com mais de doze anos. Ninguém foi poupado. Uma testemunha ocular relata como a esposa de um oposicionista caminhou de muletas até o local da execução. “Durante todo o mês de abril e parte de maio – relatam as testemunhas -, prosseguiram as execuções. Todos os dias ou em dias alternados trinta ou quarenta pessoas eram chamadas… Os comunicados eram transmitidos através de altifalantes: «Por agitação contrarrevolucionária, sabotagem, banditismo, recusa de trabalho e tentativas de fuga, foram executados…». Certa vez um grande grupo, cerca de cem pessoas, a maioria trotskistas, foram retiradas (…) enquanto marchavam, cantavam a Internacional; e centenas de vozes nos barracões juntaram-se ao canto.” (Idem, pág. 418.)
Um homem contra o mundo
Para o líder de Outubro não havia refúgio nem lugar seguro de descanso na terra. Uma após a outra, as portas foram fechadas com firmeza. Os Estados que se diziam democracias e gostavam de se comparar favoravelmente com os “ditadores” bolcheviques não mostraram mais tolerância do que todos os outros. A Grã-Bretanha, que antes havia dado refúgio a Marx, Lenin e ao próprio Trotsky, agora sob um governo trabalhista, recusou-lhe a entrada. A França e a Noruega não se comportaram, em essência, de forma diferente, colocando tais restrições aos movimentos e atividades de Trotsky que o “santuário” se tornou indistinguível da prisão. Finalmente, Trotsky e sua fiel companheira Natalia Sedova encontraram refúgio no México sob o governo do burguês progressista Lazar Cardenas.
Mesmo no México, Trotsky não estava seguro. O braço da GPU era longo. Ao erguer a voz contra a camarilha do Kremlin, Trotsky permaneceu um perigo mortal para Stalin, que, agora ficou demonstrado, ordenou que todos os escritos de Trotsky fossem colocados na sua mesa todas as manhãs. Ele congeminou uma terrível vingança contra seu oponente. Já na década de 1920, Zinoviev e Kamenev haviam advertido Trotsky: “Achas que Stalin rebater às tuas ideias, mas Stalin irá bater-te na cabeça!”
Nos anos anteriores ao seu assassinato, Trotsky tinha testemunhado o assassinato de um dos seus filhos e o desaparecimento do outro; o suicídio da filha, o massacre dos seus amigos e colaboradores dentro e fora da URSS e a destruição das conquistas políticas da revolução de Outubro. A filha de Trotsky, Zinaida, suicidou-se como resultado das perseguições de Stalin. Após o suicídio de sua filha, sua primeira esposa, Alexandra Sokolovskaya, uma mulher extraordinária que pereceu nos campos de Stalin, escreveu uma carta desesperada a Trotsky: “Nossos filhos estavam condenados. Já não acredito na vida. Não acredito que cresçam. O tempo todo espero algum novo desastre.” E conclui: “Tem sido difícil para mim escrever e enviar esta carta. Desculpem minha crueldade para com você, mas você deve saber tudo sobre nossos parentes.” (Isaac Deutscher, op. cit. p. 198.)
Leon Sedov, o filho mais velho de Trotsky, que desempenhou um papel fundamental na Oposição de Esquerda Internacional, foi assassinado enquanto se recuperava de uma operação numa clínica de Paris em fevereiro de 1938. Dois dos seus secretários europeus, Rudolf Klement e Erwin Wolff, também foram mortos. Ignace Reiss, um oficial da GPU que rompeu publicamente com Stalin e se declarou a favor de Trotsky, foi mais uma vítima da máquina assassina estalinista, morto a tiros por um agente da GPU na Suíça.
O golpe mais doloroso veio com a prisão do filho mais novo de Trotsky, Sergei, que tinha ficado para trás na Rússia, acreditando que, como ele não era politicamente ativo, estaria seguro. Esperança vã! Incapaz de se vingar do pai, Stalin recorreu àquela tortura mais refinada: pressionar os pais através dos filhos. Ninguém pode imaginar que tormentos foram sofridos nesta época por Trotsky e Nataliya Sedova. Só nos últimos anos é que se soube que Trotsky chegou a cogitar o suicídio, como uma possível forma de salvar o filho. Mas ele percebeu que tal ato não salvaria Sergei e daria a Stalin exatamente o que ele queria. Trotsky não estava errado. Sergei já estava morto, fuzilado em segredo em 1938, tendo-se recusado firmemente a denunciar o pai.
Um a um, os antigos colaboradores de Trotsky tinham sido vítimas do Terror de Stalin. Aqueles que se recusavam a se retratar eram fisicamente liquidados. Mas nem mesmo a capitulação salvou a vida daqueles que se renderam. Eles foram executados de qualquer maneira. A última das principais figuras da oposição dentro da URSS que resistiu foi o grande marxista balcânico e veterano revolucionário Christian Rakovsky. Quando Trotsky soube das capitulações de Rakovsky, escreveu a seguinte passagem em seu diário:
“Rakovsky era virtualmente o meu último contato com a velha geração revolucionária. Depois da sua capitulação não resta ninguém. Embora a minha correspondência com Rakovsky tenha parado, por causa da censura, no momento da minha deportação, a imagem de Rakovsky permaneceu como um elo simbólico com os meus antigos camaradas de armas. Agora não fica ninguém. Há muito tempo que não consigo satisfazer a minha necessidade de trocar ideias e discutir problemas com outra pessoa. Estou reduzido a dialogar com os jornais, ou melhor, através dos jornais com factos e opiniões.”
“E ainda acho que o trabalho em que estou envolvido agora, apesar de sua natureza extremamente insuficiente e fragmentária, é o trabalho mais importante da minha vida – mais importante do que 1917, mais importante do que o período da Guerra Civil ou qualquer outro.”
“Por uma questão de clareza, eu diria o seguinte. Se eu não tivesse estado presente em 1917 em Petersburgo, a Revolução de Outubro ainda teria ocorrido – com a condição de Lenin estar presente e de estar no comando. Se nem Lenin nem eu estivéssemos presentes em Petersburgo, não teria havido a Revolução de Outubro: a direção do Partido Bolchevique teria impedido que ela ocorresse – disso não tenho a menor dúvida! Se Lenin não estivesse em Petersburgo, duvido que eu tivesse conseguido vencer a resistência dos líderes bolcheviques. A luta contra o “trotskismo” (ou seja, contra a revolução proletária) teria começado em maio de 1917, e o resultado da revolução estaria em questão. Mas, repito, com a presença de Lenin, a Revolução de Outubro teria sido vitoriosa de qualquer maneira. O mesmo se pode dizer da Guerra Civil, embora no seu primeiro período, especialmente na altura da queda de Simbirsk e Kazan, Lenin vacilou e foi cercado de dúvidas. Mas este foi, sem dúvida, um humor passageiro que ele provavelmente nunca admitiu a ninguém além de mim.”
“Assim, não posso falar da «indispensabilidade» do meu trabalho, mesmo no período de 1917 a 1921. Mas agora o meu trabalho é “indispensável” no sentido pleno da palavra. Não há qualquer arrogância nesta afirmação. O colapso das duas Internacionais colocou um problema que nenhum dos líderes destas Internacionais está minimamente preparado para resolver. As vicissitudes do meu destino pessoal confrontaram-me com este problema e muniram-me de uma experiência importante para lidar com ele. Não há ninguém além de mim para levar a cabo a missão de armar uma nova geração com o método revolucionário sobre as cabeças dos líderes da Segunda e Terceira Internacional. E estou totalmente de acordo com Lenin (ou melhor, Turgenev) que o pior vício é ter mais de 55 anos! Preciso de pelo menos mais cinco anos de trabalho ininterrupto para garantir a sucessão.” (Trotsky, Diário no Exílio, pp. 53-4.)
Mas Trotsky não veria o seu desejo atendido. Depois de várias tentativas, a GPU finalmente conseguiu pôr fim à vida de Trotsky em 20 de agosto de 1940.
Apesar de tudo, até o fim, Trotsky permaneceu absolutamente firme nas suas ideias revolucionárias. O seu testamento revela um enorme otimismo no futuro socialista da humanidade. Mas o seu verdadeiro testamento encontra-se nos seus livros e outros escritos, que continuam a ser um tesouro de ideias marxistas para a nova geração de revolucionários. O facto de, hoje em dia, o espectro do “trotskismo” continuar a assombrar os dirigentes burgueses, reformistas e estalinistas é prova suficiente da resiliência das ideias do bolchevismo-leninismo. Pois é isso, essencialmente, o que significa “trotskismo”.
Sobretudo na Rússia – pátria de Outubro – a relevância do trotskismo mantém toda a sua força. Trotsky alertou há muito tempo atrás que a burocracia estalinista, esse tumor cancerígeno no corpo do Estado operário, acabaria destruindo todas as conquistas de Outubro. Em 1936, Leon Trotsky previu que “a queda da atual ditadura burocrática, se não fosse substituída por um novo poder socialista, significaria assim um retorno às relações capitalistas com um declínio catastrófico da indústria e da cultura”. (The Revolution Betrayed, p. 251.) Essa previsão foi inteiramente confirmada. Os mesmos dirigentes do chamado Partido Comunista da União Soviética que ontem juravam lealdade a Lenin e ao socialismo, empenharam-se depois nos anos 90 numa repugnante corrida para enriquecer através da pilhagem sistemática dos bens da União Soviética. Comparadas a esta monstruosa traição, as ações dos dirigentes social-democratas em agosto de 1914 parecem meras brincadeiras de criança.
No entanto, apesar das previsões de Francis Fukuyama, a história não terminou. A burguesia nascente na Rússia mostrou sua completa incapacidade de levar a sociedade adiante e desenvolver as forças produtivas. A história da transição para o capitalismo resultou num colapso sem precedentes das forças produtivas e da cultura. Só a falta de uma direção marxista séria impediu o derrube de um regime claramente podre e reacionário. Os ex-líderes stalinistas do CPRF sempre agiram como um travão para com a classe trabalhadora. Não têm nada em comum com as tradições de Lenin e do Partido Bolchevique.
Lenin gostava muito de um provérbio russo: “A vida ensina“. Na medida em que os trabalhadores da Rússia se aperceberem do impasse que o capitalismo significa (e estão a aperceber-se disso mais claramente a cada dia que passa), verão a necessidade de regressar às velhas tradições. Vão redescobrir na luta o património de 1905 e 1917. Eles redescobrirão as ideias e o programa de Vladimir Ilitch Lenin e também daquele grande líder e mártir da classe operária, Leon Trotsky. Após décadas da mais terrível repressão, as ideias do bolchevismo-leninismo permanecem vivas e vibrantes – as ideias genuínas de Outubro, que não podem ser destruídas nem com calúnias nem com as balas dos assassinos. Nas palavras de Lenin: “O marxismo é todo-poderoso – porque é verdade“.
Londres, 24 de janeiro de 2000