Palestina e a esquerda portuguesa 

 

As guerras sempre põem à prova as diferentes correntes políticas. O estalo duma nova guerra no Oriente Próximo tem trazido à tona importantes questões para o movimento revolucionário. Em Portugal, parabenizamos o PCP e o Bloco de Esquerda por terem posto o foco na criminosa ocupação israelita da Palestina como o culpado da atual guerra e terem resistido à corrente de apoio a Israel na opinião pública burguesa. Porém, do nosso ponto de vista, as posições dos dois partidos distam muito da uma posição internacionalista e revolucionária que nós comunistas devemos manter perante estes acontecimentos.

.O Bloco de Esquerda

Como já demonstrara a invasão da Ucrânia há mais de um ano, quando o BE se deixou levar pelos cantos das sereias do imperialismo ocidental, o BE sempre se mostrou mais sensível às pressões da classe dominante do que o PCP.  A reação deste partido ao início da guerra tem sido bastante discreta, embora a sua deputada Isabel Pires tenha participado da manifestação do dia 9 de outubro. O motivo deste silêncio é claro: a atual guerra é-lhe incômoda ao BE, que não sabe ou não quer defrontar o problema abertamente, preferindo varrer por debaixo do tapete para não provocar a opinião pública burguesa.

A resposta do BE tem-se limitado, no momento de escrever estas linhas, a um tweet da sua eurodeputada Marisa Matias, ecoado num breve artigo, que inclui também os comentários de analistas internacionais como Tariq Ali. O tweet de Marisa Matias diz: 

As vítimas inocentes dos dois lados são o efeito da ocupação. Parar a guerra implica pôr fim ao apartheid e à ocupaçao ilegal da Palestina por Israel. Aos palestinianos devemos o respeito do direito à autodeterminação como na Ucrânia ou em Timor, ou não haverá solução para a paz. 

Marisa Matias faz bem em denunciar a ocupação. O artigo no site do BE também assinala que “o ano de 2023 foi o mais sangrento para os palestinianos desde a segunda Intifada, em 2000.” Porém, é de lamentar que se fale das “vítimas inocentes dos dois lados” numa guerra que não permite equidistâncias. Pode-se equiparar às vítimas dum Estado imperialista poderoso, apoiado por todas as grandes potências ocidentais, que conta com um dos exércitos mais avançados do mundo e com armas nucleares, e com uma esmagadora superioridade militar, com as vítimas dum povo sem Estado, oprimido, humilhado, asfixiado pelo bloqueio e a ocupação, encurralado pelas expulsões e a colonização da sua terra, sem direitos, e que só tem os métodos mais rudimentares para se defender da máquina militar israelita? A pergunta responde-se a si mesma. 

Também resulta lamentável que Marisa Matias tenha frisado na Ucrânia para falar em autodeterminação. Lembramos-lhe que desde a queda da URSS a Ucrânia tem sido alvo da ingerência e o saqueio constante do imperialismo norte-americano, europeu e, em menor medida, russo. Atualmente a “autodeterminação” da Ucrânia é garantida pelos milhares de tanques, canhões, bombas e cheques multimilionários fornecidos pelos EUA e a UE, que não enviam esses recursos por caridade, mas para atolar a Rússia numa guerra longa e desgastante. Esta ajuda militar tem como contrapartida o poder de decisão das grandes potências sobre a vida política ucraniana. Que classe de “autodeterminação” é essa? 

Todavia, a Marisa Matias esquece o mais importante: o Ocidente garante a “soberania” da Ucrânia não em nome do direito à autodeterminação nem de quaisquer princípios ou considerações morais. O faz simplesmente porque isso encaixa com os seus interesses imperialistas, nomeadamente com o seu desejo de ampliar a sua esfera de influência na Europa Oriental e deslocar ao seu rival regional, o imperialismo russo. No Oriente Próximo, os interesses do imperialismo ocidental são os contrários: sacrificar a autodeterminação dos palestinianos no altar do seu leal aliado histórico na região, Israel. Da mesma maneira, as boas relações da UE, dos EUA e da própria Rússia com o regime despótico de Aliyev no Azerbaijão, um grande fornecedor de gás, determinaram o total abandono dos armênios do Nagorno-Karabakh, cuja limpeza étnica não gerou escándalo nenhum no Ocidente. Os imperialistas só se importam pelos seus interesses predadores, e tentar convencê-los com chamados a quaisquer valores e princípios é como tentar que o tigre se torne vegetariano. Os apelos ocos à autodeterminação jamais conquistarão a liberdade dos palestinianos. Só o fará a luta de massas e a solidariedade internacionalista. 

O PCP e os chamados “à paz no Médio Oriente”

O PCP tem sido mais consequente do que o BE na defesa do povo palestiniano. No comunicado oficial do partido, diz-se que os recentes acontecimentos “são resultado de décadas de ocupação e desrespeito sistemático por parte de Israel do direito do povo palestiniano a um Estado soberano e independente.” Isso é totalmente certo. Esse é o teor geral do comunicado, que culpa Israel da atual situação. Porém, como costumava dizer Lenin, basta uma colher de alcatrão para estragar um barril de mel. Qual é a solução do PCP à atual guerra? “Cumprir as resoluções da ONU que prevêem a criação de dois Estados.” Esta aposta pela ONU é compartilhada pelo BE, cuja deputada, Isabel Pires, apontou para “várias resoluções das Nações Unidas que têm indicado um caminho para a paz”. Mas porque é que a ONU tem sido ignorada sistematicamente na Palestina? O PCP e o BE não nos dão resposta nenhuma. 

As resoluções da ONU são só pedaços de papel, totalmente impotentes perante o imperialismo, perante os seus tanques, mísseis, bombas, e os interesses materiais -os recursos, mercados, investimentos, áreas de influência- que este poder destrutivo visa proteger. A ONU só tem alguma relevância quando pode ser utilizada para cobrir operações imperialistas, como foi o caso na Primeira Guerra do Golfo em 1991 ou na Líbia em 2011. No resto dos casos não é mais do que uma plataforma vazia para aprovar resoluções altissonantes, o que é o caso na maioria das vezes, já que a ONU agrupa os interesses contraditórios de diferentes blocos imperialistas. A ONU não é mais do que uma “cova de ladroes”, como dizia Lenin sobre a Sociedade das Nações, seu predecessor no período entreguerras. Como ele explicou nas suas famosas 21 condições de afiliação à Internacional Comunista: 

Os partidos que desejem filiar-se à Internacional devem denunciar não somente o social-patriotismo aberto como também a falsidade e a hipocrisia do social-pacifismo, demonstrando sistematicamente aos trabalhadores que, sem a derrubada revolucionária do capitalismo, nenhuma corte internacional de arbitragem, nenhum tratado de redução de armamentos e nenhuma reorganização “democrática” da Sociedade das Nações livrará a humanidade de novas guerras imperialistas.

Nenhuma combinação de grandes potências pode garantir a liberdade dos palestinianos, porque o imperialismo dos EUA tem um interesse vital em sustentar Israel, que é o seu baluarte no Oriente Médio. Nem o governo burguês dos EUA nem os países capitalistas da UE mudarão este seu apoio férreo a Israel, porque é uma questão crucial para eles. A única saída é a luta revolucionária do povo palestiniano, a federação socialista do Médio Oriente.

Neste sentido, os apelos abstratos do PCP e do BE à “paz” são bastante incongruentes. A quem é que pedimos a paz? Aos imperialistas que geraram as condições para a guerra? Ao Estado israelita? À “comunidade internacional” (ou seja, às grandes potências imperialistas e os seus principais satélites)? Lenin já criticou

O papel que desempenham todos aqueles que durante a presente guerra imperialista dirigem piedosos discursos sobre a paz aos governos burgueses. Por vezes os governos burgueses recusam-se de todo em todo a escutar tais discursos e até os proíbem, outras vezes permitem que sejam pronunciados, espalhando à direita e à esquerda juras de que só fazem a guerra para concluir o mais depressa possível a paz «mais justa» e de que o culpado é só o seu inimigo. Falar de paz aos governos burgueses significa de facto enganar o povo.

O povo palestiniano tem direito a resistir à ocupação, a lutar pela sua liberdade. Que paz é possível nas suas condições de esmagamento e opressão? Os camaradas do PCP esquecem o que Lenin disse sobre as guerras: os comunistas podem e devem apoiar as guerras de libertação nacional contra o imperialismo e as guerras revolucionárias. Os comunistas lutamos por um mundo sem violência, mas o capitalismo gera guerras constantes, que só acabarão após o seu derrube revolucionário. Não é a desafortunada violação das resoluções da ONU o que provoca as guerras, mas as contradições do sistema capitalista: a luta entre os imperialistas pela partilha do mercado mundial, a opressão nacional dos povos pequenos pelos povos grandes, as revoluções e as contra-revoluções, etc. Como disse Lenin, “Um fim às guerras, a paz entre as nações, o cessar da pilhagem e da violência – tal é o nosso ideal, mas apenas sofistas burgueses podem seduzir as massas com este ideal, se este estiver divorciado de um apelo direto e imediato à ação revolucionária.”

A tarefa dos comunistas em Portugal, camaradas do PCP e do BE, não é gerar ilusões na ONU nem apelar abstratamente à “paz”, mas mobilizar a solidariedade com a revolta dos palestinianos, refutar e desmascarar as mentiras e a hipocrisia dos “nossos” imperialistas portugueses, denunciar o seu apoio aos carrascos sionistas e, sobretudo, lutar pela revolução socialista em Portugal.

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