Nós marxistas somos a favor da liberdade religiosa e não criamos barreiras para que os trabalhadores religiosos se juntem à luta pelo socialismo. No entanto, defendemos intransigentemente a separação radical entre Estado e religião e não ocultamos a nossa condição de ateus com a nossa visão materialista da sociedade, do mundo e do Cosmos.
Uma das frases de Marx mais citadas tem sido “a religião é o ópio do povo”. Mas essa tem sido também uma das mais truncadas. Na verdade, Marx explicou que a religião preenche o vazio e angústias existenciais das massas, que vivem sob a opressão e a exploração. E, embora num certo sentido, o sentimento religioso possa inspirar à necessidade de protestar conta as injustiças deste mundo, a religião (e sobretudo a religião organizada) acaba sempre por, historicamente, desempenhar um papel fundamental na manutenção dos status quo e das sociedades classistas.
Em função do exposto, para nós marxistas não está em causa o direito dos católicos se reunirem em Lisboa para rezarem em comunhão com o seu líder espiritual. Contudo, não podemos calar a nossa indignação perante o financiamento público desta festa religiosa, nem devemos ocultar as divergências profundas que temos com a cosmovisão católica.
Já no início deste ano éramos informados que, entre autarquias e Estado central,seriam gastos mais de 80 milhões de euros nas Jornadas Mundiais da Juventude. Este dinheiro não caiu do Céu – é dinheiro que foi pago, sob a forma de impostos, pela classe trabalhadora! Num Estado verdadeiramente laico haveria zero financiamento para atividades religiosas e prosélitas. Infelizmente, o Estado não é laico. Na verdade, a burguesia e os seus agentes políticos acotovelam-se para garantir a simpatia e boas graças dos líderes religiosos, em especial dos líderes religiosos da Igreja Católica que não só erradamente recebem apoios do Estado, mas recebem ainda esses apoios financeiro e logísticos de modo privilegiado em relação às demais confissões religiosas.
A reprovação por esta fusão entre Estado e religião foi desta vez potenciada entre vários setores da sociedade portuguesa, pelos escândalos e crimes em massa de abusos sexuais que vitimaram milhares de crianças às mãos de clérigos, no contexto da ação religiosa da Igreja Católica. Esta, através das Jornadas Mundiais da Juventude, com o apoio cúmplice do Estado e subserviência servil da comunicação social, bem tenta varrer a porcaria para debaixo do tapete. Porém muitos não esquecem. Nós não esquecemos e não ignoramos que estas Jornadas são também uma tentativa de “lavar de imagem”.
Como sempre sucede neste tipo de festas e eventos do regime (Expo, Euro 2004 e agora JMJ) o discurso do governo (sejam governos PS ou PSD…) justifica sempre o financiamento público com “a projeção do país”, a “reabilitação urbana” e o “retorno financeiro”.
Vamos por partes.
Portugal e Lisboa não precisam deste tipo de “projeção”. Ainda há 15 dias ficámos a saber que no mês de Maio foram batidos todos os recordes de receitas junto dos alojamentos turísticos em Lisboa : quase 40% mais do que os obtidos em Maio de 2019, isto é: pré-pandemia. Se há coisa que a cidade não precisa é de um boom de turismo em cima do atual boom de turismo, antes necessita de políticas públicas que saibam conciliar e subalternizar se preciso for o turismo com a vida de quem habita (ou quer habitar…) e trabalha em Lisboa.
Quanto à “reabilitação urbana” ela pode e deve ser feita independentemente dos “grandes eventos”. É aliás verdadeiramente chocante que surjamnotícias reportando que escolas carenciadas de reabilitação há vários anos tenham sido finalmente agraciadas com obras porque vão acolher os peregrinos… Que centenas de escolas e outros equipamentos públicos sejam postos à disposição de peregrinos duma confissão religiosa deveria ser de bradar aos céus! Contudo (e aparentemente) tornou-se na coisa mais natural do mundo… e calhar até do outro.
Bom, durante a assinatura do protocolo entre a Câmara Municipal de Lisboa e a organização das Jornadas que oficializou esta cedência destas instalações, não nos foram ditos quais os termos e as contrapartidas por tal cedência, mas foi-nos garantido pelo bispo Américo Aguiar que “os jovens não são exigentes” … Simplesmente “a malta quer é estar toda junta num pavilhão, de preferência, uns 20, 30, 40, 50, para a borga, para a festa”. E os comuns dos mortais que julgavam que esta “malta” vinha para se entregar a penitências, jejuns e orações consagrados a Deus!
Na mesma conferência de imprensa, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa informou que 100 mil peregrinos que pernoitarão em Lisboa, irão ficar nestes espaços – não em hotéis. Curioso, vindo de quem andou meses a falar no “retorno” dos investimentos públicos.
Não sabemos, por exemplo, se nos tais 80 milhões investidos se incluem também os gastos e manutenção de centenas de escolas (não apenas em Lisboa) que acolherão os peregrinos. Ou se foram calculadas as despesas inerentes ao reforço da higiene urbana que necessariamente terá de acontecer pela pressão em massa destes turistas/peregrinos.
Sabemos pelo passado, porém, que por norma há derrapagens e as estimativas de custos são sempre superadas. Sabendo que muitos peregrinos não ficarão em alojamentos turísticos, não custa imaginar que muitos turistas (daqueles mais laicos que se alojam de modo mais convencional) tenham fugido de Lisboa na semana das Jornadas para evitar a confusão expectável. Sabemos ainda que a paralização da cidade tem custos – funcionários públicos mandados para casa, negócio fechados, empresas a meio gás, transtornos na circulação e mobilidade de pessoas e mercadorias. E, finalmente! Ficámos a saber que Carlos Moedas (que trabalhou na Goldman Sachs), o tal que anda há meses a jurar-nos que garante “retorno” … não sabe afinal fazer contas simples de multiplicação. Para ele, um peregrino que fique 7 dias em Lisboa gastando 20 a 30 euros por dia, deixará não 140 a 210€, mas 300€ na cidade! Já agora, as Jornadas duram apenas 5 dias…
E por fim, o óbvio! 93% dos contratos públicos envolvendo as Jornadas Mundiais da Juventude foram celebrados não por concurso, mas porajuste direto. “Retorno”? Sem dúvida! Mas para o bolso de alguns – os mesmos de sempre! Como sucede nas “festas do regime” – e esta é uma festa do regime, dum regime burguês que de tão débil e corrompido se apoia no altar e nas batinas! -; como sempre ocorre, os investimentos serão públicos e o “retorno” será privado! E se insistem que os (sub-orçamentados) 80 milhões trarão “retorno”, diremos apenas que se investíssemos 80 milhões em escolas ou centros de saúde, também haveria “retorno”, mas seguramente um tipo de retorno mais útil para os trabalhadores e para a população em geral – católicos incluídos!
Últimas notas sobre as Jornadas Mundiais da Juventude e os partidos de esquerda.
O Bloco de Esquerda recusou-se a ir receber o Papa, após dar sinais que estaria desagradado contra o acumular de gastos públicos e a comunhão entre Estado e Igreja. Damos, naturalmente, as boas-vindas ao retorno do Bloco à defesa da laicidade – o mesmo Bloco (lembramos!) que estava no executivo camarário que se comprometeu com os gastos que agora (surpresa!) cresceram exponencialmente… Mas perguntamos: caso os gastos fossem mais – digamos – “modestos” já estariam disponíveis para a recepção ao Papa? É que, lembramos também, já houve alturas em que o Bloco de Esquerda até no parlamento queria receber o Dalai Lama…
Quanto ao PCP a laicidade e a necessidade de separação entre Estado e religião ao que parece nem se colocam! Saúda, aliás, a “oportunidade” que considera proporcionar este encontro de jovens de todo o mundo para luta pela paz, emprego, direitos, etc.
Como referíamos, no princípio deste texto, nós marxistas não nos opomos a que os católicos se unam à luta contra o capitalismo. Agora, não guardamos quaisquer ilusões sobre hipotéticas “oportunidades” proporcionadas por um evento organizado e dirigido pela reacionária hierarquia da Igreja portuguesa e pela corrupta Cúria Romana. As Jornadas Mundiais da Juventude não servem para lutar pela paz ou por melhores salários, servem os propósitos de proselitismo e doutrinação dos jovens em torno dos dogmas católicos – desde o pecado original à imaculada conceição de Maria…
E, no quadro do respeito pela fé de cada um, nunca andámos (ao contrário de muita esquerda) a tecer loas ao suposto progressismo do Papa Francisco. Porque não obstante declarações do Papa contra a guerra, a xenofobia contra os migrantes, a destruição ambiental ou a pobreza extrema que afeta até os países capitalistas mais ricos – declarações que só podem merecer simpatias – não perdemos, contudo, de vista que este Papa é apenas (mais) um Papa católico.
E não ignoramos que na sua visão da “Cidade de Deus” a construir na Terra, não haveria lugar à pílula, à interrupção voluntária da gravidez, ao divórcio ou ao reconhecimento e equiparação legal dos direitos dos homossexuais. A educação, a saúde e a assistência social seriam controladas pela Igreja. A cultura estaria ao serviço de Deus (isto é: da Igreja).
E já agora que ninguém esqueça: O Papa defende a propriedade privada e a extração da mais-valia.
Andrea Rossi