“Esta falta de habitação não é algo próprio do presente; ela não é sequer um dos sofrimentos próprios do moderno proletariado, face a todas as anteriores classes oprimidas; pelo contrário, ela atingiu de uma forma bastante parecida todas as classes oprimidas de todos os tempos.
— Aquilo que hoje se entende por falta de habitação é o agravamento particular que as más condições de habitação dos operários sofreram devido à repentina afluência da população às grandes cidades; é o aumento colossal dos alugueres, uma concentração ainda maior dos inquilinos em cada casa e, para alguns, a impossibilidade de em geral encontrar um alojamento.
E esta falia de habitação só dá tanto que falar porque não se limita à classe operária, mas também atingiu a pequena burguesia.”
Engels, Para a questão da Habitação
Uma dura realidade
Publicado em 1873, este livro de Engels reúne uma série de artigos que foram escritos para jornais da época, como resposta e em polémica com outros pensadores e respetivas propostas. Por isso mesmo e malgrado algumas passagens deste obra terem um cunho da época, não deixa de ser uma obra excecional e de grande trabalho atualidade porque, precisamente, a “questão da habitação” (150 anos depois) continua a ser um dos grandes problemas que afetam as classes trabalhadoras.
Em Portugal, sobretudo nas grandes cidades, o custo da habitação (seja arrendada ou comprada) subiu exponencialmente nos últimos anos. Isto apesar de existirem 735 mil casas vazias no país e de Portugal ser o país com mais casas construídas por habitante, de acordo com um inquérito da OCDE junto de 50 países!
Apesar disso, a reposta da burguesia para a questão da habitação passa por… construir mais casas! E para poderem construir mais casas, querem menos impostos, menos fiscalização e menos exigências administrativas e regulamentares. Respostas que não mudaram muito desde o opúsculo de Engels!
Mas se há já tanta casa sem gente, porque continua a haver tanta gente sem casa?
Numa palavra? Capitalismo!
Em primeiro lugar porque o objetivo do lucro, não é o desenvolvimento harmonioso do território. Em Portugal as áreas metropolitanas concentram aa maioria da população residente, enquanto o interior continua uma lenta agoniza de desertificação – pois não há criação de empregos e vão-se encerrando serviços como escolas, hospitais, tribunais, postos de correio… às migrações internas, somam-se as imigração (imigração necessária, contribuinte líquida para a economia portuguesa) que procura também as grandes cidades. Há muitas casas vazias, mas não necessariamente onde as pessoas precisam, são constrangidas a viver.
Mas não são apenas os fluxos populacionais que fazem escassear e encarecer a habitação nas grandes cidades. O carácter parasitário do capitalismo tem um papel fundamental. A aquisição de imóveis sempre foi considerada um “refúgio”, um investimento “seguro” para “investir”. A globalização e a liberalização financeira permitiram uma mais fácil circulação financeira. Hoje em dia, em cidades como Lisboa e Porto já não é apenas investido o capital da burguesia (ou pequena-burguesia) autóctones, mas são adquiridas casas e edifícios inteiros por investidores estrangeiros, seja diretamente ou através de fundos imobiliários. Estas tendências foram conscientemente incentivadas pelos governos (tanto do PSD/CDS como o da Geringonça) através de políticas como os “vistos gold”, isenções fiscais para “não residentes”, programas de vistos para “nómadas digitais”, etc.
É a especulação imobiliária que mantém nas grandes cidades casas fechadas, prédios devolutos e um exorbitante preço do metro quadrado.
A tudo isto soma-se a indústria do turismo: há bairros em lisboa e Porto onde a maioria das casas estão destinadas ao “alojamento local”, casas onde antes viviam famílias trabalhadoras e hoje pernoitam excursionistas de ocasião. Mas o problema não é o turismo – quem não gosta de viajar? O problema é a lei da selva que o capitalismo promove em busca do lucro fácil.
A alarmante realidade em Portugal traduz-se em poucos números:
Desde 2017 as rendas subiram 42% – em Lisboa e Porto acima dos 50%
Desde 2010 o preço das casas em Portugal subiu acima dos 80%
Estima-se que mais de 10% da população viva em casas sobrelotadas .
Há uns meses calculava-se que cerca de 6% das famílias em Portugal suportavam uma taxa de esforço, no pagamento da casa própria, acima dos 40% do rendimento! A subida abrupta das taxas de juro irá (está já) a fazer disparar este valor.
Num país onde os salários são os mais baixos de toda a Europa Ocidental, onde 73% vive em casa própria (muitos a deve-la ao banco…), onde 25% dos proprietários só irá acabar de pagar a casa depois dos 75 anos, onde os aumentos dos arrendamentos e do valor de compra das casas subiu acima da média europeia, não apenas o custo da habitação, mas a degradação da situação económica irá provocar um verdadeiro naufrágio social.
Promessas & Ilusões
Tudo isto já era antecipável e o governo da Gerigonça tratou de responder à ameaça latente com uma mão-cheia de promessas e ilusões:
2017: Nova Geração de Práticas de Habitação
2018: Plano Nacional para o alojamento no Ensino Superior
2018: Programa “Chave na Mão”
2019: Lei de Bases da Habitação
2019: Programa de Arrendamento Acessível
2022: Programa Nacional de Habitação
Em 2016 António Costa prometia 7500 casas com rendas acessíveis, mas nenhuma foi entregue. Em 2018 prometia 12 mil novas camas em residências universitárias até ao final de 2022, mas somaram-se algumas dezenas. Quanto ao Programa de Arrendamento Acessível, calcula-se que abranja apenas cerca de 1000 contratos – uma gota de água, portanto! Tudo isto num país onde o parque nacional de Habitação Pública fica-se pelos 2% (essencialmente “bairros sociais”), por contraste com a média europeia que anda pelos 12%…
Há poucos dias o governo voltou com uma bateria de novas promessas. Será que é desta? A direita chamou o primeiro-ministro de “comunista”, agitou o “papão da Venezuela”, mas numa rápida análise às medidas propostas podemos verificar o quão teatral continua a ser a “luta política” entre os servidores do establishment.
Vejamos mais atentamente as principais medidas para a habitação:
- Continuam intocados os benefícios fiscais aos fundos imobiliários
- É mantido o regime fiscal para os “residentes não habituais”, i.e.: nómadas virtuais, “vistos gold”, etc. Por esta via estima-se que são sonegados 1000 milhões de euros em impostos – muito mais do que o governo e propõe a investir na habitação
- Formalmente “os vistos gold” acabaram. Na prática continua a ser possível adquiri-los indiretamente, investindo em fundos de imobiliário
- Vendas de imóveis ao Estado ficam isentas da cobrança fiscal de mais-valias – os proprietários agradecem!
- São proporcionados maiores descontos no IRS aos proprietários que façam contratos de arrendamento de longa duração. Está por demais provado que a baixa de impostos não se traduz numa automática baixa de preços
- Proprietários de alojamento local que coloquem as suas casas no mercado de arrendamento ficam isentos de impostos durante 6 anos. Mais uma vez se apoia o proprietário e não o inquilino. E até duvidoso que essa medida seja apelativa q.b para que quem aposta no “alojamento local” se sinta motivado a mudar para o arrendamento tradicional.
- Se os inquilinos incumprem o pagamento da renda por mais de 3 meses o Estado poderá assumir a dívida ao senhorio. Como estas situações serão aferidas, fica por saber. Contudo, percebe-se que é proporcionado uma espécie de “seguro” ao proprietário… e como não há “almoços grátis” o inquilino irá, no fim, pagar o que o Estado adiantou
- São suspensas novas licenças para o alojamento local até 2030. Não resolve o facto que em certos bairros de Lisboa e Porto mais de metade dos fogos estão já destinados ao AL.
- São prometidos subsídios ao arrendamento e prestação bancária nos casos em que a taxa de esforço (isto é, a percentagem do rendimento destinado à “habitação” ultrapasse um determinado patamar) seja demasiado alta. No fundo, com o dinheiro dos impostos subsidiam-se rendas e prestações de casa altas, evitando que proprietários e bancos renegoceiem aquilo que mensalmente cobram.
- É anunciado um limite aos aumentos dos arrendamentos. O problema é que as rendas são já incomportáveis: uma renda de 1000 euros aumentada em “apenas” 5% vai continuar a ser exorbitante.
- Arrendamento de imóveis a preços de mercado para depois arrendá-los a “preços sociais”? O atual ministro das finanças e ex-autarca de Lisboa experimentou essa solução e conseguiu proporcionar 200 casas… numa área metropolitana com 2 milhões!
- Finalmente, a promessa de arrendamento compulsivo de prédios devolutos – que valeu ao primeiro-ministro o epíteto de… “comunista”! Na verdade, esta possibilidade já existe (há anos na lei), a única diferença é que o governo irá proporcionar uma linha de crédito aos municípios para avançarem com obras de restauro e arrendamento compulsivos dos prédios devolutos. Só. Nem sequer existe obrigatoriedade ou regra de atuação. O Estado não vai expropriar os proprietários. Na melhor das hipóteses, irá proceder a obras de restauro e posterior arrendamento par pagar as obras – das obras que proprietário que até aí não pudera (ou quisera) fazer. Obras feitas e posterior chave na mão… eis o famoso ataque ao “direito de propriedade”!
Mesmo admitido que “desta é que é” e que o Governo irá cumprir as promessas, o que salta à vista é… não tanto a defesa dos inquilinos, mas a defesa dos proprietários! Defesa essa feita à custa dos impostos pagos pelos trabalhadores. Toda e qualquer medida positiva terá de ser entendida como mero muito insuficiente paliativo – assim o demonstram os conteúdos das propostas, assim o indiciam toda a governação de anos do PS -s seja no formato “geringonça” ou a “solo”.
As boas intenções dos Reformistas
Durante anos PCP e Bloco foram suportando um governo PS que falhou todas as promessas no campo da habitação. E ainda que não duvidemos das suas boas intenções, cabe dizer que de “boas intenções está o inferno cheio” e que têm as suas responsabilidades na atual crise da habitação. Infelizmente, PCP e Bloco, pelas propostas que avançam demonstram nada ter aprendido da recente experiência da “geringonça” e nada compreendem da natureza e da atual crise global do capitalismo.
Sejamos claros: caso as suas propostas fossem aplicadas, embora algumas melhorias pudessem proporcionar às famílias trabalhadoras, de todo não seriam capazes de solucionar a crise atual. Tomemos uma mão-cheia de exemplos.
O PCP avançou com a proposta de um spread máximo de 02,5% a cobrar pela CGD. Isso seria positivo, mas ainda que um pouco menos, as taxas de juro continuariam a subir. Garantir a obrigatoriedade da renegociação dos empréstimos sempre que se ultrapassasse uma certa “taxa de esforço” também seria, a curto-prazo, benéfico para as famílias endividadas a banca… Mas não elimina nem um cêntimo da dívida a pagar ao longo duma vida pela aquisição duma casa para viver! Limite ao aumento de rendas é positivo? Sim, mas as rendas já se encontram num valor incomportável.
Já o bloco propõe, por exemplo, a proibição da venda de imóveis a “não residentes” nas zonas de pressão mobiliária. Certo. Mas isso não impede que “não residentes” investindo em fundos imobiliários, possam indiretamente tornar-se proprietários desses imóveis. Propõe também a “mobilização de património publico” para oferta de habitação a preços controlados. Mas num país com mais de 700 mil casas vazias é duvidoso que tal património possa fazer a diferença. Talvez o limite de rendas? E o que impede que um proprietário, forçado a reduzir o valor da renda, não passe a cobrar (por exemplo) um valor pelo recheio da casa que arrenda?
O que pretendemos com este curto exercício não é menosprezar a intenção de Bloco e PCP em aliviar as dificuldades da classe trabalhadora na atual crise da habitação, mas expor os seus limites. Toda a experiência demonstra que, seja na habitação, no comércio retalhista ou na banca, não há fiscalização, regulações ou procedimentos, que impeçam a quem possui a propriedade de contornar a lei e os legisladores – quando não abertamente boicotarem os seus esforços!
Ora, o que ambos os partidos de esquerda demonstram é que o seu limite é a propriedade. Podem propor mais fiscalização, mais tributação, usos diversos (limites ao Alojamento Local, por exemplo) não são capazes de tocar na propriedade. Não da propriedade do emigrante que trabalhou uma vida inteira para construir uma casa na sua terra natal; não a propriedade da família trabalhadora que investiu num segundo alojamento (seja para destinar a férias ou os filhos); não é a pequena propriedade que tem de ser chamada a resolver a crise da habitação, mas os grandes proprietários.
Não basta acabar com os benefícios fiscais para os fundos imobiliários como exige o Bloco ou o PCP. É necessário expropriar esses fundos, atualmente responsáveis, por 85% do investimento imobiliários – investimentos muitas vezes em casas de luxo, ao invés de habitação acessível para o “comum dos mortais”. É necessário que o solo urbano seja municipalizado. É necessário que a habitação devoluta seja desapossada da incúria dos seus proprietários. É necessário que a Banca financie um grande plano nacional para a Habitação – reabilitando onde se impõe, construindo onde urge – mas para isso é impossível que a Banca continue em mãos privadas. O mesmo para o setor da construção civil. Se queremos habitação barata e acessível, esta não pode ser um negócio: Solos, habitação por reabilitar, casas vazias, fogos destinados à especulação e negócio, setor financeiro e da construção, tudo isto tem de ter uma gestão pública, sob controlo dos moradores e trabalhadores para que se cumpra o direito humano de todos terem direito à Habitação. E nem sequer estamos a tocar na necessária reorganização da ocupação do território que acabe com a oposição campo/cidade!
Sabemos que nada disto é fácil. Fácil é fazer promessas, fácil é propor paliativos, fácil é deixar intocada a sacrossanta propriedade do grande capital! Mas a crise da Habitação ganhou uma dimensão tal que não se resolve mais com medidas “fáceis”, ou “realistas”, porque a amarga realidade é que 150 anos após o texto original de Engels, nem a burguesia nem os reformistas foram capazes de resolver a “Questão da Habitação” – muito pelo contrário.
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