In Defence of Marxism

O Fim da Globalização?

Em Maio de 2022, um CEO da BlackRock declarou que “a invasão russa da Ucrânia pôs um ponto final na globalização que temos vivido nas últimas décadas”. Ele inegavelmente tem razão. A guerra da Ucrânia trouxe para a ribalta os conflitos que têm fermentado entre as grandes potências desde há algum tempo. Este fenómeno precisa duma explicação. Os comentadores burgueses lamentam a iminente catástrofe e a miopia dos políticos. Mas não é possível compreender o mundo em termos de “escolhas políticas” ou terminologia análoga. Ao invés, devemos tentar compreender o contexto em que o livre comércio (que é o verdadeiro conteúdo da “globalização”) e o protecionismo se desenvolvem. A Globalização tem de ser entendida como um processo que foi criado sob determinadas condições, condições que já não existem mais…

Como o comércio mundial transformou o mundo

Há 20 anos a globalização e o livre comércio estavam na moda. Tanto liberais como conservadores prostravam-se sob o altar de Adam Smith. A Riqueza das Nações era considerado o mais profundo livro alguma vez escrito…

E a Sua admiração pelo comércio livre tinha alguma justificação. O comércio mundial transformou o mundo, e para melhor. As forças produtivas romperam os limites do Estado-nação. O mundo tornou-se interconectado de uma forma que nunca esteve antes. As cadeias de abastecimento conectaram nações, indústrias e trabalhadores por todo o mundo.

Com o crescimento do comércio mundial, a produtividade também aumentou. As indústrias nas economias avançadas produziram bens cada vez mais avançados, e mesmo os ex-países coloniais começaram a desenvolver bases industriais significativas, em particular na China,

O comércio mundial embarateceu as matérias-primas, ao deslocar a produção ou a extração para os lugares onde eram mais acessíveis, como previra Adam Smith. Por que não extrair minério de ferro na Austrália onde custa 30 dólares por tonelada, em vez de na China onde custa 90 dólares?

Da mesma forma, apenas a combinação de todos os recursos do mundo poderia criar a tecnologia moderna. Veja-se o cobalto, por exemplo. Metade das reservas e da produção mundial encontram-se na República Democrática do Congo. Um terço do níquel mundial é produzido na Indonésia e metade do lítio mundial é produzido na Austrália. Esses materiais são componentes essenciais das baterias dos carros elétricos.

Além disso, concentrando a produção em grandes fábricas que produzem para o mercado mundial, podem ser alcançadas enormes economias de escala. A linha de montagem do iPhone da Foxconn em Shenzhen, por exemplo, é capaz de produzir 100.000 iPhones por dia.  Isso está a milhas dos primeiros tempos do capitalismo, quando a produção era realizada por trabalhadores de teares manuais, tecendo, movidos por nada mais do que os próprios músculos e habilidades dos trabalhadores individuais.

Apenas nos últimos 30 anos, a economia chinesa foi completamente transformada. O número de trabalhadores envolvidos no setor primário (mineração, agricultura, etc.) caiu de 60 para 34%, enquanto o número de operários industriais aumentava de 20 para 34%, o que significa que a China tem, hoje em dia, a maior classe operária do mundo. O valor adicionado por trabalhador industrial na indústria chinesa aumentou dez vezes em termos de dólares americanos entre 1991 e 2019, embora permaneça apenas um quinto do produzido pelos trabalhadores americanos.

A divisão mundial do trabalho aumentou enormemente a produtividade do trabalho e possibilitou a produção de mercadorias baratas, incluindo o fornecimento de telemóveis por todo o mundo. Mesmo num país pobre como a Índia, existem hoje84 assinaturas de telemóveis para cada 100 habitantes (era 1 para 100 em 2001). Esta melhoria maciça da produtividade na indústria permitiu também que uma parcela cada vez maior da população dedicasse suas horas de trabalho ao setor de serviços, saúde e educação, bem como no turismo e hotelaria.

Todo o período pós Segunda Guerra Mundial testemunhou uma expansão maciça do comércio mundial. Em 1970, a proporção do comércio mundial para o PIB mundial era de 13% – em outras palavras, aproximadamente um oitavo de todos os bens e serviços eram produzidos para exportação. Em 2008 atingiram-se os 31%.

De igual modo, Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) foi concluído em 1947 por 20 países. Mas aquando da criação da Organização Mundial do Comércio em 1994, o GATT tinha 128 signatários. A própria OMC incluiu um acordo comercial muito mais abrangente, incluindo serviços; um mecanismo de solução de controvérsias; acordos sobre a proteção da propriedade intelectual etc. Em média, as tarifas comerciais caíram de 22% em 1947 para 5% na época da criação da OMC.

Isso foi possível graças à expansão maciça da economia mundial que ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, o que significou que, mesmo que um país tivesse que ceder algum terreno para a concorrência ou encerrar uma parte de sua indústria, o aumento geral nos mercados mundiais deixá-lo-iam significativamente melhor. Nesse período, a dinâmica do livre comércio realmente funcionou da maneira que Adam Smith e David Ricardo sugeriram. O amplo domínio dos EUA sobre o mundo capitalista empurrou uma agenda de comércio livre para todos os participantes (até para os relutantes), suavizando todo o processo.

Na década de 1990, a Tendência Marxista Internacional (IMT) produziu um documento que explicava esse processo:

“O fato de termos entrado em uma situação inteiramente nova em escala mundial é demonstrado pela mudança do papel do comércio mundial. O desenvolvimento maciço do comércio mundial no período de 1948-73 foi uma das principais razões para a ascensão do pós-guerra no capitalismo mundial. Isso permitiu ao capitalismo – parcialmente e por um período temporário – superar as principais barreiras ao desenvolvimento das forças produtivas: o Estado-nação e a propriedade privada”. A New Stage in the World Revolution

Foi tudo isto que ficou conhecido como globalização, ou seja, uma expansão massiva do mercado mundial para superar as limitações dos mercados nacionais. Em outras palavras: os limites do Estado-nação.

O Estado-nação

Neste ponto, é necessário considerar como o Estado-nação se relaciona com o desenvolvimento do capitalismo. Quando o capitalismo surgiu no cenário da história mundial, ele superou as limitações regionais e feudais para criar um mercado nacional. As peculiaridades dos mercados isolados em torno de cidades-mercados e capitais regionais foram superadas e os preços foram estabelecidos por meio da competição à escala nacional entre grandes agrários e empresas. Este mercado nacional foi a chave para o desenvolvimento do capitalismo nos primeiros séculos de sua existência.

Mas à medida que o capitalismo desenvolveu as forças produtivas, a competição deu lugar ao monopólio. O tear manual deu lugar ao tear mecânico, e as “barreiras à entrada” (como as chamam os economistas) tornaram-se maiores. Para iniciar uma tecelagem, era agora preciso não apenas uma oficina e alguns teares manuais, mas de uma fábrica, uma máquina a vapor e teares mecânicos. O desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, o desenvolvimento de novas tecnologias e sua aplicação na produção, quase sempre leva a uma maior monopolização, ou seja, à concentração de mais capital nas mãos de menos capitalistas.

Assim que os monopólios tenham dominado e esgotado o mercado interno, eles são forçados a buscar outros mercados para seus produtos. Isso leva a uma expansão maciça do mercado mundial e do comércio mundial. No entanto, a determinada altura, deixa de ser suficiente. Os monopólios precisam então de encontrar novas saídas para seus lucros acumulados. O capital busca novos investimentos lucrativos, não mais disponíveis nos mercados domésticos. Este é o início da exportação de capitais.

O capital é exportado por meio do capital financeiro (bancos, seguradoras etc.), que passa a dominar o mercado doméstico e mundial. Este é o mundo que Lenin descreveu em sua obra O Imperialismo: a fase superior do capitalismo. Este também é o mundo em que vivemos hoje, embora num nível ainda mais elevado.

Lenin explicou que as fronteiras estreitas e limitadas da nação restringem as forças produtivas, que cada nação capitalista é forçada a tentar superar. Portanto, à medida que as forças produtivas se desenvolveram durante o século XX, o comércio mundial se desenvolveu muito mais rapidamente. As consequências foram tremendas:

“A intensificação da divisão internacional do trabalho, a redução das barreiras tarifárias e o crescimento do comércio, particularmente entre os países capitalistas avançados, atuaram como um enorme estímulo para as economias dos Estados nacionais. Isso contrastava completamente com o desmembramento da economia mundial no período entre as guerras, quando o protecionismo e as desvalorizações competitivas ajudaram a transformar a recessão em uma depressão mundial.” A New Stage in the World Revolution

Além disso, a ascensão do período pós-guerra foi tanto a causa quanto o efeito do desenvolvimento do comércio mundial.

Protecionismo

O protecionismo, o polo oposto do livre comércio, também existiu, é claro, ao longo da história do capitalismo, e por boas razões. Em meados do século XIX, as indústrias britânicas reinavam supremas no mercado mundial. Usando commodities baratas, conquistaram o mundo. Esta foi a era do comércio livre britânico. Isso refletiu-se no domínio dos whigs no Parlamento britânico e na revogação das tarifas sobre grãos, conhecidas como Corn Laws. Assim, o alimento para a classe trabalhadora foi embaratecido, permitindo que os patrões mantivessem os salários baixos.

No entanto, o domínio da indústria britânica representava um problema para outras nações cujas indústrias eram muito menos desenvolvidas. Elas precisavam de meios de proteger suas indústrias da concorrência britânica. Essas nações, como disse Engels: “não viam a beleza de um sistema pelo qual as vantagens industriais momentâneas possuídas pela Inglaterra deveriam ser transformadas em meios para garantir-lhe o monopólio das manufaturas em todo o mundo e para sempre”. O Tratado Comercial Francês, 1881

Na Suécia, por exemplo, introduziram um sistema de restrições à exportação. As indústrias britânicas extraíam quantidades cada vez maiores de matérias-primas. Mas fornecer à Grã-Bretanha toras não processadas, minério de ferro e outros minerais faria pouco pelo desenvolvimento das indústrias suecas. Portanto, foram impostas restrições às exportações de ferro-gusa, minério de ferro e toras, a fim de garantir que o processamento ocorresse na Suécia. Quando a indústria sueca de metal e madeira se desenvolveu, as restrições foram suspensas e a Suécia entrou num acordo de livre comércio com a Grã-Bretanha e a França.

De igual modo, os Confederados produtores de algodão durante a Guerra Civil dos EUA eram defensores do comércio livre. Eles queriam barreiras menores para exportar algodão cru para a Inglaterra. O Norte industrial, no entanto, favorecia tarifas protecionistas para proteger as suas indústrias da concorrência inglesa. A escravidão estava, portanto, intimamente ligada ao atraso econômico e ao comércio livre. Mas mais uma vez, assim que os EUA desenvolveram as suas indústrias, a sua burguesia tornou-se defensora acérrimo comércio livre.

No entanto, esse desenvolvimento em direção ao comércio livre não fluiu apenas numa direção. No final do século XIX, as indústrias britânicas enfrentavam uma concorrência cada vez mais acirrada no exterior, principalmente da Alemanha e dos Estados Unidos. Isso começou a causar uma mudança no Reino Unido. O Partido Conservador voltou ao poder e começou a promover uma agenda cada vez mais protecionista. O que era conhecido como “preferência imperial” tornou-se um meio de aplicar o protecionismo. Isso implicou que as possessões coloniais da Grã-Bretanha decretassem tratamento preferencial para o comércio dentro do Império Britânico. Esta política foi particularmente dirigida contra os EUA e a Alemanha.

Essa política coincidiu com um impulso para a apropriação de terras coloniais. Lenin explicou esse processo no Imperialismo. A competição entre monopólios transformou-se numa competição entre nações. Em 1900, as nações imperialistas tinham dividido o mundo entre si e, portanto, qualquer expansão posterior só poderia ocorrer às custas das outras nações imperialistas. As crescentes contradições entre as potências capitalistas – a sua luta pelos mercados de bens e investimentos – estavam levando a tensões crescentes nas relações internacionais.

Como a Alemanha tinha o menor botim colonial, as suas indústrias lutavam contra as limitações impostas pela falta de colónias e acesso às colónias das outras nações. A burguesia alemã precisava e exigia uma redivisão do mundo, proporcional ao novo desenvolvimento econômico da Alemanha. Quando o boom do final do século 19 e início do século 20 terminou, as contradições se espalharam para a guerra mundial.

Há, portanto, uma estreita ligação entre crise econômica, protecionismo, crises nas relações internacionais e guerra. Devemos lembrar, como Clausewitz apontou, que a guerra é política por outros meios. E, como disse Lenin, a própria política é apenas economia concentrada.

A Primeira Guerra Mundial não resolveu nenhuma das contradições da economia mundial. Apenas foram intensificadas e, depois da guerra, o protecionismo realmente descolou. A Grã-Bretanha introduziu a “Preferência Imperial” em 1932-33, alinhando a política das colónias com a do continente. Em 1933, o presidente Hoover introduziu o Buy American Act, que obrigava os empreiteiros do governo a usar produtos fabricados nos Estados Unidos. Políticas semelhantes foram adotadas em todo o mundo, contribuindo para um colapso dramático no comércio mundial em cerca de 30% nos três anos seguintes ao crash de 1929.

Adam Smith disse que as nações protecionistas “empobreciam todos os seus vizinhos”, Smith tentava descrever as tentativas de curar a recessão e o desemprego exportando-os, transferindo o consumo para bens produzidos internamente. Claro, que numa recessão e especialmente numa depressão, essas contradições são exacerbadas, já que os mercados em retração criam mais fábricas “ociosas”.

Protecionismo no Horizonte

A crise de 2007-8 realmente pôs fim à extensão do livre comércio. As negociações de Doha lideradas pela OMC já estavam com problemas, mas a crise acabou com tudo. As negociações visavam enfrentar a questão dos subsídios agrícolas na Europa e nos Estados Unidos. Após o colapso das negociações, apenas tentativas tímidas foram feitas para renová-las. Em vez disso, o processo de reversão do comércio mundial começou.

Muitas vezes, Trump é culpado por trazer de volta o protecionismo, mas esse foi apenas o passo mais lógico.  Na verdade, Obama lançou o slogan “Compre americano!” em 2009. O Buy American Act permanecera em vigor desde 1933, mas foi significativamente diluído por vários acordos como GATT, NAFTA e o Acordo sobre Compras Governamentais. Obama reforçou-o com a Lei de Recuperação de 2009 e teria ido mais longe com a sua Lei de Empregos de 2011, se não fosse bloqueado pelos republicanos. Ambos os atos foram duramente criticados pela UE e pelo Canadá por minarem o livre comércio.

Trump, é claro, introduziu uma série de medidas protecionistas, particularmente em torno do aço, mas permaneceu limitado pelas disposições da OMC. Biden reverteu algumas dessas medidas, principalmente contra a Europa, Japão e Canadá. No entanto, longe de abandonar o protecionismo, ele prometeu tentar “modernizar” as regras da OMC, o que significa diluí-las para dar aos EUA mais espaço para medidas protecionistas. A UE, por razões óbvias, não está nada entusiasmada com esta proposta.

A nova Lei de Redução da Inflação (IRA) de Biden segue o precedente estabelecido por Obama. Para se qualificar para um subsídio para a compra do seu carro elétrico, p consumidor americano terá de comprar um carro ‘Made in America’. Da mesma forma, os investimentos em energia verde precisam cumprir as condições do Buy American Act, ou seja, precisam obter suas matérias-primas dos EUA. Isto realmente inflamou as tensões entre os EUA e a UE, que sentem que os EUA estão discriminando os seus “aliados”. Macron pediu um ‘Ato de Compra Europeia’ e, embora os alemães tenham adotado uma abordagem menos conflituosa, eles têm pressionado os EUA por concessões. O chanceler alemão Scholtz no seu estilo tipicamente reservado, afirmou: “Acredito que o que estamos testemunhando é o fim de uma fase excecional da globalização, uma mudança histórica acelerada, mas não inteiramente como resultado de choques externos, como a pandemia de COVID-19 e a guerra da Rússia na Ucrânia.”

Ou seja, a globalização como a conhecemos acabou, e não vai voltar, justamente porque não é apenas fruto da guerra na Ucrânia ou da pandemia. Juntamente com as forças econômicas que pressionam o protecionismo, também existem fatores políticos ligados ao impacto da crise nos trabalhadores das economias avançadas. Pressões de desemprego, ataques a salários e condições etc. criaram um enorme descontentamento entre a classe.

Os partidos burgueses tradicionais encontram-se sem nada para oferecer exceto mais ataques e austeridade. A única maneira de tentar encontrar uma base nesta situação é mover-se para a direita e para o nacionalismo, incluindo o nacionalismo económico. Agitação de bandeiras, sentimento anti-imigração e protecionismo andam de mãos dadas e são a única maneira pela qual a burguesia pode de alguma forma construir uma base eleitoral.

Trump foi o exemplo mais óbvio disto. Ele falou sobre restaurar a posição da “classe trabalhadora americana” restringindo a imigração e o comércio exterior – uma combinação de políticas para “empobrecer o seu vizinho”; para manter a indústria em casa; e para afastar as massas de imigrantes, empobrecidos pelas guerras imperialistas e pela pilhagem econômica. Pelo menos foi isso que ele tentou alcançar.

A ascensão da China

Outra fonte pressão é a ascensão da China. O desenvolvimento económico da China foi de um enorme benefício para a economia mundial. A abertura das economias ao mercado mundial – no Leste Europeu, mas especialmente na China – foi um dos fatores-chave para prolongar o boom nos anos 1990 e no início dos anos 2000.

O desenvolvimento industrial que vimos em escala mundial nos últimos 30 anos ocorreu principalmente na China, que emergiu como uma nova potência mundial. Desde meados da década de 1990, a produtividade do trabalho na China cresceu de 7% a 10% por ano.

Depois de saudar inicialmente o sucesso econômico chinês e apoiar-se na China para se recuperar do crash de 2008, os EUA e a UE começaram a preocupar-se com o crescimento chinês. Eles começaram a perceber como as empresas chinesas se interessavam seriamente por patentes e propriedade intelectual. Isso variou da agricultura à eletrônica. Empresas chinesas como Lenovo, Geely e Huawei também estavam adquirindo empresas e participações de mercado no Ocidente. E assim as potências ocidentais começaram a inquietar-se.

Já durante a presidência de Obama, se falava num ‘Pivot to Asia’, mas após o anúncio (em 2015) do plano ‘Made in China 2025’, a quantidade se transformou em qualidade. A China tornou-se uma séria preocupação e durante a presidência de Trump, os EUA iniciaram seriamente uma tentativa para conter o desenvolvimento da China. ‘Made in China 2025’ foi um anúncio ao mundo de que a China não se contentava mais em produzir apenas móveis e roupas ou montar carros. Queria competir nos setores tecnológicos mais avançados e reduzir sua dependência de fornecedores estrangeiros.

A China tem uma população enorme e o valor da produção total de sua economia está agora está aproximando-se do dos EUA. A modernização das indústrias chinesas transformou a China numa das maiores nações industrializadas. No entanto, a China ainda está muito atrás. O FMI estima que a produtividade média da mão-de-obra na indústria é 35% em relação às das melhores práticas globais.

“Só” nas zonas mais avançadas, como as cidades do estuário do Rio das Pérolas, Xangai ou Pequim, se consegue um PIB per capita comparável ao de Espanha ou Portugal. A China não está no mesmo nível dos Estados Unidos, mas expôs sua ambição de tornar-se assim.

Os EUA agora estão alavancando seu poder econômico e diplomático para impedir que os países exportem componentes-chave para a China e comprem tecnologias como 5G da Huawei. Também se propôs à tarefa de “libertar” as suas cadeias de abastecimentos e as dos seus aliados da China.

Muitos de seus aliados não estão ainda convencidos desta abordagem. Com efeito, Scholtz, contrariando a vontade dos EUA, decidiu fazer uma visita a Xi Jinping. Ele estava determinado a resolver as disputas da Alemanha com a China independentemente dos EUA. Macron tem uma abordagem muito semelhante, e o seu comunicado após o recente encontro com Biden, notavelmente não mencionou a China.

As potências menores da UE estão descontentes com a forma como o conflito com a Rússia tem sido conduzido pelos EUA: contorcendo-se para tomar medidas e adotar sanções que têm um impacto limitado na economia dos EUA, mas que prejudicam fortemente a indústria europeia, em particular a da Alemanha. Nos bastidores, a Europa acusa os EUA de lucrar com a guerra e, por isso agora, as potências europeias resistem a embarcar noutra guerra comercial, na qual teriam de obedecer aos ditames dos EUA.

No entanto, os EUA são perfeitamente capazes de tomar medidas unilaterais, e continuam a fazê-lo. Está impondo uma nova legislação, não apenas às empresas americanas, mas a qualquer empresa do mundo. A recente proibição da exportação de máquinas para produzir semicondutores para a China é um exemplo. Da mesma forma, no seu bloqueio contra Cuba, os EUA exigiram unilateralmente o cumprimento do mesmo por parte de empresas na Europa, Taiwan etc., sob o risco de serem sancionadas por sua vez.

O maior produtor mundial de semicondutores é uma empresa taiwanesa chamada TSMC. Agora, ela precisa solicitar permissão do governo dos Estados Unidos para importar maquinaria para as suas fábricas na China. O maior produtor desse tipo de máquinas é a ASML, uma empresa holandesa. O governo holandês está agora em discussões com os EUA sobre quais barreiras adicionais a impor às exportações para a China. Os EUA estão essencialmente coagindo os seus aliados a aceitarem os seus métodos de “competição” com a China.

Os EUA continuam sendo a superpotência e, assim como a frota britânica em 1914 tinha como política de manter uma capacidade naval maior do que seus dois maiores concorrentes juntos, os EUA estão gastando tanto quanto as dez nações seguintes combinadas nas suas forças armadas, ou 2,7 vezes mais do que a China, que vem em segundo lugar. No passado, esse poder era usado para manter o comércio livre comércio. Mas cada vez mais, agora está sendo usado para o propósito oposto.

Esta mudança nos EUA tem grandes implicações. Ao contrário do passado, o seu poder não é mais usado para defender os interesses gerais da classe capitalista contra a União Soviética ou contra a revolução mundial, mas si pelos seus próprios interesses contra os das outras grandes potências. Assim, assumiu o papel de uma potência em declínio, tentando-se proteger da concorrência, um pouco como a Grã-Bretanha no final do século XIX.

No entanto, seria muito errado ver o protecionismo apenas da perspetiva dos EUA. A União Europeia também tem interesse em combater a concorrência chinesa. Eles têm seu próprio “Chips Act”, suas próprias tentativas de garantir fábricas de baterias para baterias de lítio e assim por diante. O governo chinês limitou novas iniciativas protecionistas, mas há muitas reclamações sobre medidas não oficiais tomadas para dificultar a vida de empresas ocidentais que operam na China.

Todos esses conflitos estão intensificando-se sob a pressão dos acontecimentos. Isso terá grandes consequências. Reformular as cadeias de abastecimentos para evitar a Rússia e a China será extremamente dispendioso. A tentativa de mover a produção de microchips aparentemente significa investimento em sistemas de litografia da ordem de 300 biliões de dólares da TSMC, Intel e Samsung. A TSMC já anunciou planos de investimento de 100 biliões de dólares. Uma vez estabelecidas, essas novas fábricas terão de ser protegidas contra a concorrência estrangeira por meio de tarifas e outras medidas. O facto de todos eles provavelmente superarem a procura do mercado mundial de semicondutores, com consequências para os preços, torna isso particularmente verdadeiro. Assim, o protecionismo alimenta o protecionismo.

Isso terá consequências de longo prazo para os níveis de investimento. O FMI estimou que cada redução de ponto nas tarifas resultou num aumento de 0,4 ponto no investimento, por causa do embaratecimento da maquinaria. Agora, o aumento do protecionismo levará a máquinas mais caras e, portanto, a menos investimentos.

Nesta corrida, o comércio mundial não cessará. Como pode? Mas ficará mais caro, o que significará bens mais caros, ou seja, mais inflação. Isso terá que ser combatido então com o aumento das taxas de juros para tentar arrefecer a economia, o que por sua vez provocará a recessão.

Por que estão os capitalistas fazendo isso, poderá alguém perguntar? Certamente a imprensa liberal questiona isso repetidamente. No entanto, não é difícil encontrar o motivo.

Em primeiro lugar, são as políticas de comércio livre que nos conduziram precisamente a este ponto. O comércio livre tanto adiou quanto exacerbou massivamente a crise. Nem o comércio livre nem o protecionismo podem resolver as contradições do capitalismo.

Em segundo lugar, em condições econômicas cada vez mais difíceis, os governos estão tentando encontrar alguma forma de estabilizar o sistema político e garantir que os principais monopólios mantenham ou ganhem vantagem sobre a concorrência. Eles tentam ganhar um pouco de tempo, de modo que, se convulsões revolucionárias derrubarem um regime, eles possam garantir que não será o regime deles. No entanto, como todos agem da mesma maneira, eles destroem o tecido da economia mundial e, por extensão, do sistema capitalista como um todo.

A posição dos marxistas

O mercado, ou a “mão invisível”, desempenhou um papel historicamente progressista, mas claramente não pode mais fazê-lo. Para nós não se trata de apoiar o comércio livre contra o protecionismo. Não é nosso papel tentar voltar os ponteiros do relógio para 2006 ou mesmo para 1967. Toda a crise mostra a incapacidade do capitalismo de levar a humanidade adiante e, em seu declínio senil, o capitalismo está destruindo muitas das conquistas que obteve no passado.

Está destruindo suas cadeias de abastecimento, está destruindo seu sistema de relações internacionais, está nos fazendo regressar às guerras, militarismo e todo o desperdício associado em recursos económicos e vidas humanas. O nosso papel é explicar porque é que isso está acontecendo, bem como porque é que nenhuma das duas faces desta má moeda, com as suas medidas, resolverá a crise.

Devemos entender que o protecionismo é um beco sem saída. Todo o desenvolvimento dos últimos 80 anos mostra a completa utopia reacionária que era o “socialismo num só país”. Somos um globo interconectado e temos grandes vantagens em compartilhar experiências, tecnologia e recursos. O socialismo seria construído sobre uma base de comércio e internacionalismo, não forçando as forças produtivas a vestir a camisa-de-forças do estado-nação.

O comércio livre e a “globalização” não podem mais nos levar adiante, enquanto a guinada para o

protecionismo só piora as coisas. Somos socialistas, marxistas e revolucionários.

Vemos neste colapso da globalização apenas mais um estágio na crise do sistema como um todo. Vemos os grandes benefícios do comércio mundial, mas esse caminho agora está concluído. Somente com base na tomada do poder pela classe trabalhadora, podemos restabelecer o comércio mundial e as relações mundiais de forma saudável. Vamos preparar o caminho para um grande salto à frente.

Niklas Albin Svensson

06 January 2023

Publicado em

https://www.marxist.com/is-this-the-end-of-globalisation.htm

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