Abortion protest USA Image Adam Fagen

Um retrocesso de meio século: as mulheres sob ameaça!

Artigo de Joe AttardSocialist Revolution, seção norte-americana da Tendência Marxista Internacional.

O Supremo Tribunal dos Estados Unidos anulou a chamada jurisprudência de Roe Vs Wade, que desde 1973 constitucionalmente tem protegido o direito das mulheres interromperem voluntariamente a gravidez. Espera-se agora que dúzias de Estados anunciem vários decretos banindo e restringindo o direito ao aborto nos próximos dias e semanas.

Este miserável ataque a um elementar direito democrático é parte da reacionária agenda de “guerra cultural”, agitada por uma particularmente degenerada secção da classe dirigente americana, procurando desviar as atenções, sobretudo dos sectores politicamente mais atrasados da sociedade americana que, no meio duma profunda crise económica, se tornaram fortemente polarizados à medida que a vida se torna insuportável para milhões de pessoas.

Quanto aos Democratas, estes provaram ser impotentes para resistir este novo impulso em direção à barbárie, apesar de controlarem a Casa Branca, o Congresso e o Senado. A classe trabalhadora tem agora de partir para a ofensiva e defender o direito das mulheres disporem do seu próprio corpo e todas as liberdades básicas conquistadas duramente no passado.

Espicaçando a Reação…

Esta decisão, redigida pelo Juiz Samuel Alito, defende que “a Constituição não faz qualquer referência ao aborto (…) tal direito não é implicitamente protegida pela Lei constitucional”.

Roe Versus Wade foi sempre uma frágil proteção ao direito das mulheres legalmente acederem ao aborto e baseava-se não no direito da mulher autonomamente dispor do seu corpo, mas na proteção à “privacidade” (i.e.: o Estado não tem o direito de saber acerca das decisões das mulheres em relação à sua saúde reprodutiva).

Mas a questão fundamental aqui não são as minudências legalistas. O sistema legal burguês não é um árbitro neutral, mas é antes, de mais e em primeira instância, um aparato para proteger os interesses burgueses. E o atual Supremo Tribunal revelou-se como o representante do mais atrasado, míope e brutal setor da classe dirigente americana.

Esta secção que se agregou em torno do ex-presidente Donald Trump, é agora completamente hegemónica no Partido republicano, e está determinada a apelar aos mais básicos preconceitos na sociedade – sexismo, racismo, homofobia e fundamentalismo religioso – para estimular a sua base social de apoio e desviar as atenções da deteriorada situação económica e do tumulto social que ameaça o capitalismo americano.

13 Estados (incluindo Texas, Missouri e Louisiana) já tinham anunciado propostas visando banir o aborto legal e espera-se agora que elas sejam implementadas assim que a decisão do Supremo Tribunal seja oficialmente lavrada. No total, é aguardado que um total de 26 Estados decretem novas restrições ao direito ao aborto, incluindo a Flórida, Alabama e Arizona.  Ou seja, em metade dos Estados Unidos da América, sob o capricho e dum só golpe do antidemocrático e não-eleito órgão de 9 juízes reacionários, dezenas de milhões de mulheres serão privadas do acesso legal ao aborto.

Uma decisão “pró-vida” que irá matar

Claro que esta decisão não impedirá o aborto de ocorrer, mas simplesmente forçará (especialmente) as mulheres trabalhadoras e pobres a recorrer a perigosos e ilegais esquemas abortivos.

Abortos legais são, por comparação, procedimentos médicos seguros com uma taxa de mortalidade de 0,4 por 100 mil casos nos Estados Unidos (de acordo com estudos de 2018).

Trata-se duma taxa ainda mais pequena que a mortalidade materna durante a gravidez e parto: 17 por 100 mil. Este valor, que é maior nos Estados Unidos que em qualquer outro país desenvolvido, mostra-se verdadeiramente obsceno quando apenas comparado com as 3 ou 4 mortes por cada 100 mil que ocorrem em países como Suécia, Noruega ou Nova Zelândia.

Entretanto, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, abortos ilegais matam 30 mulheres em cada 100 mil e, nos países em desenvolvimento, o número atinge uns estonteantes 220 casos mortais em cada 100 mil.

Com a aguardada proibição do direto ao aborto, em particular nos Estados do Sul, milhões de mulheres serão forçadas a recorrer aos perigosos, insalubres e comumente chamados “abortos de vão de escada” – o que irá provocar uma explosão no número de mortes e de lesões graves e permanentes. 

As mulheres pobres, da classe trabalhadora, que não quererão submeter e arriscar as suas vidas a estes procedimentos, levarão ao fim as suas gravidezes, numa sociedade esmagada pela crescente crise. Enquanto o presidente Joe Biden despeja dezenas de milhões de dólares e montanhas de equipamento militar na guerra por procuração que os Estados Unidos travam com a Rússia na Ucrânia, dezenas de milhões de americanos lutam, literalmente, pela sobrevivência diária.

A inflação chegou aos 8,6% em junho, engolindo os salários e deixando incontáveis famílias trabalhadoras sem a possibilidade de acederem às mais básicas necessidades de vida. O aumento do preço dos alimentos está estimado em 9% ao longo de 2022, enquanto o custo dos combustíveis bateu um record de 40 anos, atingido agora os 5 dólares por “galão”. Entretanto, em maio, uma escassez de leite em pó para bebés transformou-se num pesadelo para muitos pais e o custo das creches e infantários aumentou já entre 5 a 15% nos primeiros meses deste ano.

Em resumo, o custo de aquecer as casas, pagar as creches, ir para o trabalho e alimentar os próprios filhos, está a atingir níveis intoleráveis para muitos pais da classe trabalhadora.

Quando este cenário é combinado com draconianas novas restrições ao aborto legal, as inevitáveis consequências resultarão em que milhões de americanos, e as mulheres em particular, serão empurrados ainda mais para uma pobreza asfixiante. Também significará que toda uma geração de crianças irá crescer em condições de duras privações.  E Este é o único futuro que o capitalismo promete para a classe trabalhadora no país mais rico do mundo…

A impotência dos Democratas

Os políticos republicanos, a todos os níveis, saudaram a decisão do Supremo Tribunal.

O governador do Mississípi, Tate Reeves, elogiou a decisão afirmando que “isto resultará em mais batimentos cardíacos, mas carrinhos de bebé empurrados, mais ligas juvenis de baseball jogadas e mais vidas vividas”.

Em linha com estas declarações, o ex-vice-presidente Mike Pence proclamou: “Tendo recebido uma segunda hipótese para a vida, nós não poderemos desistir ou descansar em restituir a santidade da vida ao centro da Lei americana em todos os Estados do país.”

Pela sua parte, os democratas têm rasgado as vestes em desespero. Nancy Pelosi, a porta-voz democrata da Câmara dos Representantes, acusou claramente o Supremo Tribunal se ser controlado pelos republicanos e de ter “atingindo os obscuros e extremistas objetivos do seu partido”. Acrescentou ainda que “as mulheres americanas têm menos liberdade que as suas mães” e que “esta é uma decisão cruel”.

Enquanto isso, o Presidente Biden foi fazendo algumas tépidas declarações sobre a “proposta radical” de anular a jurisprudência de Roe Versus Wade, sublinhando a necessidade de “eleger mais senadores pró-escolha e de existir uma pró-escolha maioria na Casa dos Representantes de modo a adotar legislação que codifique Roe versus wade”.

Este é o mesmo Joe Biden que, previamente, votou pela abolição de Roe versus Wade, que em 1974 considerou que essa jurisprudência tinha ido longe de mais, acrescentando que as mulheres não tinham o direito exclusivo de decidir sobre os seus próprios corpos. Ele também apoiou a “Emenda Hyde” em 1981, excluindo o uso de fundos federais para apoiar a interrupção voluntária de gravidez (apenas mudando de opinião em 2019); e até consagrou o seu nome à dita “Emenda Biden” que proibiu o auxílio de pesquisa biomédica estrangeira relacionada com a interrupção voluntária da gravidez.

Com toda a sua postura “progressista”, como alternativa aos Republicanos, e não obstante toda a pressão colocada sobre os trabalhadores e jovens americanos para apoiarem o dinossauro Joe Biden para derrotar o “fascista” Trump, a verdade é que os democratas mal têm levantado um dedo para proteger os mais básicos direitos das mulheres.

Biden, inclusive, tem resistido a tomar tão simples passos como o de providenciar os magros recursos necessários a que mulheres que queiram interromper a gravidez, se possam deslocar a um Estado onde o aborto continue legal…

Comparem-se os punhos de renda com que os Democratas resistem à decisão do Supremo Tribunal com a determinação e brutalidade com que asseguram um contínuo fornecimento de armas à Ucrânia, um conflito que está a causar consequências catastróficas à escala mundial, apenas para servir os interesses do imperialismo americano…

Tal como já o dissemos inúmeras vezes não há uma grama de “conteúdo progressista” no Partido Democrata, que está inteiramente devotado ao serviço do imperialismo americano, e implacavelmente oposto aos interesses dos trabalhadores, sejam homens ou mulheres.

O problema não são apenas os Democratas, mas todo o edifício do Estado capitalista, que contém vários mecanismos antidemocráticos, incluindo o colégio eleitoral ou o Supremo Tribunal. Tal como os camaradas do Socialist Revolution previamente escreveram:

“Após décadas a “jogar pelas regras”, deveria ser cristalino que o jogo está viciado desde o princípio. Que o próprio “Roe vs Wade” esteja em perigo de ser derrubado deveria desfazer quaisquer ilusões no Supremo Tribunal, na Constituição, nos Democratas e em toda a estrutura da democracia burguesa americana. Estas são as instituições duma classe exploradora e opressora, cujos interesses são diametralmente opostos aos dos trabalhadores. A solução não é lutar pelo “mal menor” para a classe trabalhadora, mas sim o de colocar um ponto final em todos os males da sociedade de classes! O caminho em frente será desbravado não pela colaboração entre as classes, mas pela independência de classe e pela formação dum partido de massas da classe trabalhadora.”

Contra-ataca!

O alarmante desfecho de Roe versus Wade é um sintoma da decadência senil do capitalismo americano. Os seus líderes encontram-se irremediavelmente divididos, e uma larga secção da classe dominante americana encontra-se determinada a arregimentar os setores mais atrasados da sociedade americana, de modo a perseguirem os seus egoístas desejos de poder, mesmo que à custa do total descrédito das instituições do Estado.

Desde já, Trump acelera para uma possível campanha de reeleição, na qual terá todas as chances para triunfar contra a frágil figura de Joe Biden, cuja taxa de aprovação baixou para uns míseros 36%.

Biden conseguiu desapontar até as mais escassas expectativas que existiam em torno dele nas eleições de 2020, e Trump prepara-se para surfar uma onda de raiva, desespero e reacionário chauvinismo para reconquistar a Câmara dos Representantes, sinalizando as pessoas racializadas, LGBT+, migrantes e mulheres como alvos a abater.

O Capitalismo é incapaz de garantir sequer as mais básicas vitórias e concessões ganhas pela luta da classe trabalhadora no passado. Nestas condições de crise histórica, apenas a classe trabalhadora, mobilizada através das suas organizações de classe e preparada para lutar, será capaz de defender os direitos das mulheres e todos os direitos democráticos conquistados.

Para lá disso, apenas através da luta concertada para derrubar este vil sistema e estabelecer uma sociedade socialista poderá impedir as bárbaras condições das quais padecem os trabalhadores americanos e os demais, e às quais crescentemente são sujeitos.

Desde já, manifestações espontâneas estão a ser convocadas por todo o país e mais serão organizadas nos próximos dias e semanas. Ao lançar um ataque aos direitos das mulheres, o Supremo Tribunal arrisca provocar uma reação de enormes proporções.

Devemo-nos lembrar, ainda, que o acesso ao aborto legar foi uma das conquistas da Revolução de Outubro em 1917. E assim o será também numa nova revolução socialista, nos Estados Unidos e através do mundo; uma revolução que afastará duma vez por todas a opressão, garantido uma decente e dignificada existência para toda a humanidade.

Tal como escrevemos em maio :

“Estas notícias do Supremo Tribunal são uma chamada para a realidade dirigida a todos os trabalhadores. Este é o “novo normal” da vida sob o capitalismo – na realidade um regresso ao “velho normal” – composto pelas convulsões dum sistema terminal que pode ir temporariamente mantendo-se à tona apenas pela rapina de todos os ganhos e conquistas ganhas no passado pela luta dos trabalhadores. Portanto, sim devemos protestar, mas acima de tudo prepararmo-nos para a luta de classes e a revolução socialista. O caminho não será fácil, mas não há maior cauda – e não há alternativa.”

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