“A culpa é dos Russos”
Já começámos a escutá-lo, mas no futuro ser-nos-á servido ad nauseam o mantra “a culpa é do Putin”. Joe Biden tem sistematicamente referido o “Putin’s Price Hike” (aumento de preços do Putin) para explicar a inflação galopante nos Estados Unidos. E não tenhamos ilusões: também na Europa a burguesia irá imputar aos russos e à guerra as responsabilidades da crise emergente.
Que a guerra tenha sido consequência das suas irresponsáveis e imprudentes políticas ou que a inflação já superasse os 5% em finais de 2021 na Zona Euro e os 7% nos Estados Unidos… são “pormenores” que os capitalistas irão tentar varrer para debaixo do tapete porque, afinal… não vão querer estragar uma boa narrativa com essa coisa aborrecida que são os factos!
A propaganda, contudo, tem os seus limites. Normalmente o seu efeito e eficácia tendem a diminuir em proporção direta com a queda das condições de vida, rendimentos e expectativas da classe trabalhadora.
Mas se a guerra não é a razão da crise, se esta tem raízes mais fundas, não tenhamos a menor dúvida do efeito agudizador que esta terá sobre as dificuldades económicas, contribuindo para uma ainda maior alta de preços, uma mais séria perturbação das cadeias de abastecimento (que já ocorre desde o auge da pandemia covid 19) e uma grave ameaça ao comércio global, fruto das sanções aplicadas à Rússia e à emergência dos novos blocos políticos e militares e da consequente guerra económica entre eles.
Finalmente, a guerra atual já está a conduzir o mundo para uma nova corrida aos armamentos cujos orçamentos serão suportados por novas tributações, verbas retiradas do investimento público e aos gastos sociais, isto é: dinheiro retirado aos mais pobres e à economia produtiva. Porque se há uma certeza que podemos ter, é que o dinheiro investido num caça-bombardeiro não irá no futuro rentabilizar-se ou satisfazer qualquer necessidade das populações.
Da globalização à rivalidade internacional
Nas últimas décadas o capitalismo teve duas grandes alavancas para o seu desenvolvimento: a globalização e o endividamento. Fruto da irresponsabilidade política da classe dirigente, fruto sobretudo das contradições inerentes ao próprio sistema capitalista, estes dois expedientes encontram-se agora irremediavelmente comprometidos.
Durante anos, após a queda da URSS e dos estados operários burocraticamente deformados do Leste da Europa, os Estados Unidos apresentaram-se como o poder hegemónico mundial e foram os grandes impulsionadores do que passou a chamar-se de “globalização”, isto é: a exportação do modelo liberal na economia, a expansão do comércio mundial, a abertura de novos mercados, a desindustrialização acelerada do Ocidente e consequentes investimentos nas economias “emergentes” com mão-de-obra mais barata, a total dominação do capital financeiro e especulativo sobre a economia produtiva, a consolidação de grandes grupos económicos transnacionais.
Nunca como nos últimos 30 anos se assistiu a uma tão grande concentração de riqueza: ainda antes da pandemia os 8 maiores milionários detinham tanta riqueza como metade da população mundial. Os oito maiores! Mas agora tudo está agora mais desigual: pois, como sabemos, durante a pandemia, enquanto 99% da população mundial perdia rendimento, as grandes fortunas cresceram desmesuradamente.
A globalização, contudo, não permitiu apenas o enriquecimento escandaloso duma ínfima minoria parasitária. A globalização trouxe para a arena da economia mundial novos e emergentes países que, de fontes de matérias-primas e de mão-de-obra baratas, de destino de investimentos à procura de altas taxas de rentabilidade; rapidamente se industrializaram, diversificaram e sofisticaram as suas economias e se tornaram, por direito próprio, em competidores económicos do Ocidente.
Que todo este progresso económico das economias emergentes esteja assente diversas fragilidades já se irá (seguramente) descobrir com o desenrolar da crise, mas há um elemento promovido pela globalização que jogará um papel político decisivo no futuro próximo. Esse elemento chama-se “classe trabalhadora”. A globalização das últimas décadas acentuou o carácter urbano, citadino, dos países do Sul, a migração industrial do Ocidente para as economias emergentes e o seu desenvolvimento e relativa modernização criou em todos estes países uma poderosa classe trabalhadora que não existia há 30 ou 40 anos atrás em países como a Turquia, a Índia ou a China. Num futuro próximo, esta nova e emergente classe trabalhadora irá colocar-se no centro do palco da História.
É o vertiginoso crescimento da China que a coloca hoje em dia como o principal rival dos Estados Unidos – e essa rivalidade não tem parado de aumentar! Se é verdade que a eleição de Joe Biden terminou com a retórica xenófoba de Trump e deixámos de escutar tiradas como a “gripe chinesa”, não é menos certo que a Administração Democrata não removeu uma única das medidas protecionistas de Trump na guerra comercial contra a China e até lhe acrescentou umas quantas.
São estas crescentes rivalidades e o espectro da crise económica, como pano de fundo, que estão por detrás da guerra da Ucrânia. A propaganda esforça-nos por pintar a guerra como “a guerra de Putin”, essa espécie de novo Hitler que um dia acordou maldisposto e desatou a querer conquistar o mundo. Na verdade, Putin foi durante 20 anos alguém com quem o Ocidente fez muito e bons negócios.
Sobretudo, a guerra nunca é resultado do capricho dum homem, ou mesmo duma clique autocrática, mas reflete necessidades mais profundas. Em tempos normais, em períodos de florescimento económico, as diferenças e rivalidades entre os diversos poderes podem ser mais ou menos acomodadas através de cedências mútuas, acordos diplomáticos e soluções pacíficas.
Contudo, quando a crise bate à porta, quando a competição por mercados e recursos se torna mais feroz, quando se atinge uma crise de superprodução; o que antes poderia ser resolvido por um acordo, terá agora de ser solucionado pela força. São as rivalidades inter-imperialistas que, em última instância, provocam as guerras: não a idiossincrasia ou os sonhos narcisistas deste ou daquele líder.
Ainda assim, parece evidente que, para lá das razões económicas mais fundas e gerais, o “prestígio” que os americanos tinham visto beliscado na debacle do Afeganistão, desempenhou um papel importante no braço-de-ferro com os russos e na arrogância de quem não quis negociar uma solução de compromisso para as reivindicações de Moscovo, de modo a não aparentar novamente “fraqueza” na arena internacional.
Independentemente de como se desenvolva a guerra militar no terreno, a formação de blocos político-militares antagónicos entre o Ocidente dum lado e a China, Rússia e provavelmente a Índia do outro, irão acicatar as rivalidades económicas e colocar um travão, fazendo retroceder, o que se convencionou chamar de “globalização”.
Uma pitada de Marxismo
Mas o que é afinal d “crise de superprodução” que os marxistas continuamente invocam como pedra angular da vida económica e a da correspondente luta de classes?
Resumidamente, no capitalismo a produção é orientada para o lucro. Mas para realizarem lucro, os capitalistas (em concorrência entre si) têm de vender os seus produtos e serviços. O lucro é obtido sob a forma de trabalho não pago aos trabalhadores. Isto é: os trabalhadores duma fábrica, duma empresa, produzem mais valor do que aquele que lhes é pago sob a forma de salários. À diferença entre o valor produzido e incorporado pelo trabalho no produto e o salário recebido pelo trabalhador, chama-se “mais-valia” que a classe capitalista se apropria na forma de proveitos, rendas e juros.
O resultado é que, no capitalismo, há uma inevitável tendência para a “superprodução”: por causa dessa “mais-valia” apropriada pelos capitalistas, os trabalhadores nunca poderão comprar todos os produtos e serviços que globalmente produziram. A capacidade e o potencial de produção não são absorvidos pelo “mercado”.
Parelhamente, Marx descortinou outra lei económica: se a “mais-valia” é retirada do trabalho produzido pelo assalariado que não é remunerado pelo patrão; quanto mais o capitalista investe em maquinaria e novas tecnologias (e todos os capitalistas têm necessariamente de fazê-lo porque concorrem entre si), menor é a percentagem do peso do fator “trabalho” no conjunto dos investimentos e “custos operacionais”, ou seja: menos possível será a taxa de lucro passível de ser extraída para o conjunto do investimento realizado.
Ainda que a taxa de mais-valia aumente com o aprofundamento da exploração do trabalho, quer seja pelo aumento da jornada de trabalho, quer seja intensificação dos ritmos do trabalho; a taxa de lucro deve cair sempre que a elevação do capital constante (investimento em maquinaria, etc.) em relação ao capital variável (salários), crescer mais rapidamente que a taxa de mais-valia extraída.
Complicado? Exemplifiquemos!
Se uma unidade de um produto X, depois dum processo de inovação tecnológica passar a conter 100 euros de mais-valia ao invés de 200 (porque em cada produto vendido teremos de amortizar o investimento realizado na inovação tecnológica e os custos correntes associados), ocorre uma diminuição de 100% da taxa de lucro. Porém, se pelo investimento em maquinaria, tecnologia, se conseguir agora produzir (e depois vender) três vezes mais dessa mesma mercadora, apesar de baixar a taxa de lucro, a massa de lucro irá aumentar!
E precisamente! Para manter e aumentar a massa de lucro, o volume de lucro (e atenção que inovações tecnologias custam caro, cada vez mais caro…) é necessário aumentar, cada vez mais, a produção para adquirir lucros que cubram o crescente “capital constante” necessário e compensem a tendencialmente baixa da taxa de luro em cada produto ou serviço vendido! E aqui chegamos, uma vez mais, à tendência para a “superprodução” inerente ao capitalismo!
Mas chegamos também a outro problema sério do capitalismo: se a tendência da taxa de lucro é baixar enquanto o capital constante necessário aumenta… para quê investir… em produção? Para quê investir no sector agrícola, na indústria ou no turismo, para quê o ciclo Dinheiro – Mercadoria – Dinheiro, quando é potencialmente mais simples e rápido o retorno do investimento quando através do investimento puramente financeiro, puramente especulativo encurtamos o trajeto para que Dinheiro possa gerir Dinheiro sem a intervenção da “Mercadoria”? E aqui chegamos à “economia de casino” que caracteriza o capitalismo contemporâneo, com todas as consequências económicas e socias decorrentes dos cíclicos rebentamentos das bolhas especulativas…
Claro que o sistema pode temporariamente superar estas limitações através do reinvestimento da mais-valia em novos e inovadores ramos de produção (atente-se às Tecnologia da Informação nas últimas décadas) , ou através da expansão do crédito e endividamento, para artificialmente expandir o “mercado”. Mas estes artifícios apenas irão conduzir (mais à frente) a novas e mais destruidoras crises.
Ora uma crise não é mais do que um gigantesco “Reset”. Para os trabalhadores é uma experiência dramática que põe em perigo a sua própria existência, mas para os capitalistas um contratempo temporário e, muitas vezes, uma oportunidade de negócio – relembramos aqui como o número de bilionários aumentou em Portugal durante a crise das “dívidas soberanas” e a intervenção da Troika na década passada.
Esse “Reset” limpa o obsoleto, o medíocre e o deficitário do sistema, elimina aqueles produtos e produtores pouco competitivos que desaparecem contribuindo para o fim da crise de superprodução e para novas oportunidades de negócio sobre as carcaças dos capitalistas mais incompetentes e pouco adaptáveis – uma espécie de darwinismo económico, portanto!
Em períodos de crescimento globais capitalistas (por exemplo, os 30 anos após 2ª guerra mundial), essas crises cíclicas (estimadas por Marx entre os 7 e os 10 anos) são mais ou menos absorvidas pelo conjunto da população e da classe trabalhadora com alguns sacrifícios temporários e alguma concertação social cedida pelos reformistas: aumenta o desemprego, perdem-se horas extraordinárias, congelam-se os salários, reformam-se as legislações laborais, etc., mas a breve prazo, o “inexorável progresso” da história estará apto a ser retomado.
Contudo em períodos de crise e depressão globais do capitalismo (por exemplo, no período entre a 1ª e a 2ª guerras mundiais), malgrado os momentos de expansão económica (a “euforia” dos anos 20, por exemplo), esse “Reset” tem consequências verdadeiramente catastróficas: a primeira metade do século XX conheceu a ascensão do nazi-fascismo, duas guerras mundiais e um nível de destruição e carnificina sem precedentes na história humana!
Que uma guerra (da Ucrânia) da qual sabemos como começou, mas ignoramos como acabará e que (independentemente do modo como termine), se esteja a desenrolar neste preciso momento … não é, não pode ser, coincidência ou fruto dos caprichos dum homem só!
Do Endividamento à inflação
Definidos (na verdade simplificados nesta exposição) os processos gerais que conduzem à crise da superprodução, é altura de colocar uma paradoxal pergunta:
Se as crises de “superprodução” significam um excesso de oferta em relação á procura e se isso deveria significar, implicitamente, uma queda de preços por parte da “oferta” … porque estamos nós a viver já um surto inflacionário na antecâmera desta crise que nos contempla? Será culpa dos russos e do “Putin’s Price Hike”?
Ora uma das características do “modelo económico” das últimas décadas tem sido o constante endividamento de famílias, empresas e Estados. No final de 2020 o total do endividamento global já ultrapassava 256% do PIB mundial! Ou seja: mesmo que pudéssemos todos “viver do ar”, toda a riqueza produzida no mundo durante 2 anos não seria suficiente para pagar o total de dívidas acumuladas. A tendência que vinha detrás foi brutalmente acelerada com a pandemia da Covid 19.
Este endividamento foi alimentado por uma injeção sem precedentes de dinheiro na economia, dinheiro que os Bancos Centrais imprimiram: 10 triliões de dólares só no primeiro ano de pandemia! E de que modo reagiram os “mercados” a esta avalanche de notas? Embarcando numa orgia especulativa! Não é por acaso ou por intervenção divina que a fortuna estimada dos bilionários cresceu 60% durante a pandemia, quando quase toda a população mundial perdia rendimento e cerca de 250 milhões de trabalhadores em todo o mundo perdiam o seu posto de trabalho!
Não foi por acaso, foi de propósito: ao invés de terem apostado todos esses recursos financeiros em produção real que respondesse às necessidades das populações, os capitalistas preferiram investir essas pilhas de dinheiro fácil (que os Bancos Centrais imprimiam) na aquisição de bens facilmente rentabilizáveis, fossem ações em bolsa, cripto moedas ou NFTs – Non-Fungible Token. E com efeito, as bolsas tiveram ganhos astronómicos, as cripto-moedas “valorizaram-se” em 3 triliões de dólares durante 2021 e aos NFTs, imagens criadas em ficheiros “JPG” (contendo por vezes alguma da mais horrível “arte” alguma vez produzida) passaram a ser transacionadas pelo preço duma casa ou dum carro de luxo, tanto por estrelas pop como por jogadores de futebol…
Precisamente o sector high-tech, independentemente da extravagância em causa, foi um dos grandes alvos desta enorme especulação financeira. Em 2021, existiam cerca de 1000 Startups com uma avaliação de 1 bilião de dólares ou mais! – Os chamados “Unicórnios”. Isto representou uma valorização de 69% num ano apenas. 44 destes “Unicórnios” estavam valorizados em mais de 10 biliões.
A grande cabeça de cartaz foi, sem dúvida, a Tesla, empresa de Elon Musk. No início da pandemia a empresa estava avaliada em 100 biliões de dólares mas, entretanto, atingiu o inacreditável valor de 1.1 triliões de dólares! Por comparação, a General Motors que produz 10 vezes mais carros, tem um décimo do valor da Tesla!
E esta expansão monetária não teve início sequer com a pandemia Covid 19: começou já há muitos anos atrás, nomeadamente durante a crise financeira de 2008. Primeiro para salvar bancos e agências de investimento, depois para suster e expandir os ganhos em bolsa; e durante anos os “investidores” habituaram-se a um aparente infindável fluxo financeiro com taxas de juro reduzidas, por vezes até negativas! Foram anos e anos de dinheiro fácil e de endividamento gigantesco.
Diz o adágio popular que não “há almoços grátis” e desde o início deste ano de 2022 que se tem tornado claro para os mais avisados “investidores” que toda esta insanidade terá um final penoso – a queda abrupta do valor das cripto moedas ou das cotações em bolsa nestes primeiros meses é apenas a ponta do iceberg!
Mas penoso para quem? Não tenhamos dúvidas que os grandes tubarões (ou muitos deles, pelo menos) saberão sair do carrocel na altura certa, como sempre aconteceu no passado. Mas o que acontecerá com os milhões de pequenos investidores que lançaram mão das suas magras poupanças ou até se abalançaram em empréstimos para investir na roleta financeira?
Fixemos estes números: cerca de 16 milhões de americanos (5% da população) descarregou apps de transações bolsistas nos seus telemóveis, enquanto 16% assumiu ter investido em cripto moedas. E este é um fenómeno que não se circunscreveu aos Estados Unidos… Os milhões de falências individuais produzidas pela crise de 2008 poderão vir a ser uma pequena tempestade comparando com o enorme tsunami de bancarrotas que se avizinha…
Claro que toda esta injeção financeira não apenas proporcionou a acumulação de (umas quantas…) grandes fortunas. Sempre que os Bancos Centrais se põem a imprimir dinheiro sem uma relação direta com o valor do que é produzido… a inflação dispara!
… E quando a inflação dispara, a primeira coisa que os governos e Bancos Centrais resolvem fazer para contrariá-la é subir as taxas de juro. Isto já está em marcha! A subida das taxas de juro irá tornar mais difícil às famílias conseguirem pagar o crédito à habitação, por exemplo! À subida das taxas de juro, acrescentam os governos e patrões o congelamento salarial – o que em época de surto inflacionário – representa uma queda abruta e real dos rendimentos dos trabalhadores.
Com a estafada desculpa que a subida dos salários faria aumentar a inflação, na verdade o que procuram é manter os lucros dos capitalistas, forçando os trabalhadores a pagar a crise! Mas a fraude deste postulado é bem fácil de desmontar: se numa empresa o fator trabalho pesar 20 num custo operacional total de 100; então, aumentar 10% o salário faria aumentar o custo operacional para 102 – 2%. A taxa de inflação em Portugal em Abril foi já de 7,2%, enquanto os aumentos salariais da função pública (que sinalizam e balizam os aumentos nos privados) em 2021 foram 0% e em 2022 serão de 0,9%.
É preciso fazer mais algum “desenho”?
Claramente não são os salários que puxam o os preços para cima, mas estes disparam pela expansão fiduciária dos últimos anos que se concentrou nalgumas poucas mãos, a especulação desenfreada – o preço da habitação, por exemplo, subiu em Lisboa e Porto durante a pandemia! – e a destruturação e instabilidade das cadeias de abastecimento decorrentes, primeiro pela pandemia e depois pela guerra na Ucrânia e as sanções impostas pelo Ocidente.
Subida das taxas de juro, limitando o investimento e o consumo; congelamento e degradação salarial, reduzindo a procura interna; inflação galopante que acrescenta ainda mais risco e incerteza à atividade económica, desmotivando o investimento; crise energética, comercio mundial comprometido pelas sanções e guerra económica, bolha especulativa prestes a rebentar… Inflação + estagnação = a estagflação.
Estagflação: a economia não cresce, o desemprego sobe e os preços disparam. A última vez (anos 70) que o mundo capitalista conheceu um cenário desta natureza, arrastou-se penosamente a crise durante cerca duma década…. Podemos todos concluir que as perspetivas económicas mundiais são realmente más?
E Portugal, este jardim à beira-mar plantado?
Portugal é um país pobre, atrasado e periférico. Pelo menos desde as invasões napoleónicas (há mais de 200 anos!) que tem sido incapaz de acompanhar a marcha da Europa! As causas do atraso estrutural português são bastante profundas e não as poderemos desenvolver aqui, mas cabe-nos apontar uma causa primordial para a nossa debilidade económica: Portugal tem uma das classes dirigentes mais obtusas de todo o mundo. Ou, pelo menos, de toda a Europa!
Com efeito, a burguesia portuguesa (que apenas foi capaz de industrializar o país tarde e a más horas, nos anos 60 do séc. passado) passou os últimos séculos (literalmente) a enriquecer à custa da pilhagem dos recursos das colónias e da exploração da mão-de-obra barata de África e da “metrópole” sob asa protetora da Monarquia, 1ª República e Estado Novo, primeiro; e depois, nos últimos decénios, a enriquecer com a pilhagem dos fundos europeus e da exploração da mão-de-obra do país “à beira-mar plantado” sob a asa protetora desta nossa 2ª República!
Portugal tem uma das burguesias menos instruídas da Europa. De facto, a escolaridade mínima do patrão português (ainda hoje) é o 9º ano de escolaridade! Claro que os CEOs da MEO ou da GALP não terão o 9 º ano de escolaridade… mas têm uma coisa muito melhor à sua disposição: um sistema económico dominado pelos seus oligopólios que concertam entre si a exploração de fornecedores e consumidores ao mesmo tempo que beneficiam das benesses, contratos, parecerias, apoios ou rendas garantidas pelo Estado português. Estado esse dirigido por políticos medíocres que acabam inevitavelmente por fazer das suas carreiras na “causa pública” uma porta-giratória para um lugar bem remunerado numa qualquer mesa dum conselho de administração de uma grande empresa.
E o que faz a burguesia portuguesa de todos estes colossais lucros adquiridos? Pega na riqueza criada no país e “investe” (pausa para rir!) em offshores no estrangeiro! Já em 2019 se estimava que Portugal era o terceiro país da União Europeia a transferir mais riqueza para offshores, nada mais, nada menos, que cerca de 26% do seu PIB no período considerado desde a adesão ao euro nesse já longínquo ano de 2001! Poderá haver imagem mais gráfica do parasitismo da burguesia portuguesa?
A cupidez, ganância e vistas curtas dos capitalistas portugueses acabaram por condenar os trabalhadores deste país a uma realidade de baixos salários, numa economia predominantemente “rentista”, produtora de produtos ou serviços com um baixo valor incorporado e com uma produtividade medíocre.
Dificilmente a pequena economia portuguesa poderia, por si só, contrariar as tendências da economia global, mas a sua condição periférica, atrasada e empobrecida no conjunto europeu, somada à dependência direta aos grupos económicos e financeiros estrangeiros e à subserviência imposta pelos tratados, regras orçamentais da U€ e ao peso duma dívida pública sempre crescentes desde a introdução do €uro; tornam as fragilidades portuguesas num dos elos mais fracos do capitalismo europeu nesta crise que se avizinha!
Ou melhor: nesta nova crise! A perceção existente na Europa de que a atual geração de trabalhadores não viverá melhor que a geração dos seus pais, não encontrará melhor eco que em Portugal: um país cujos trabalhadores não chegaram a recuperar da perda de rendimentos decorrentes da intervenção da Troika em 2011, que continua a padecer duma sangria emigratória que afasta anualmente do país dezenas de milhares de jovens (muitos deles detentores de altas qualificações académicas) e que é um dos países mais envelhecidos do mundo!
2011-2022: um decénio marcado pela crise, pelas políticas neoliberais do FMI e da U€, pelo parêntesis da Geringonça, pela pandemia e agora pela guerra, pela inflação e pela nova crise que se avizinha!
Mas elencando a sucessão de acontecimentos, do que resultou o “parêntesis” da Geringonça? Do que resultou da governação do governo PS apoiado pelo PCP e pelo Bloco de Esquerda?
Acaso deixámos de ser, no quadro Europeu, um dos países mais endividados, ou com maiores transferências financeiras para offshores, ou com maiores fugas fiscais, ou com maiores percentagens de trabalhadores precarizados, ou com os salários e pensões mais baixos, ou com as maiores disparidades de rendimentos, ou com as maiores diferenças sociais, ou com os serviços públicos mais degradados, ou com as piores taxas de investimento público, ou com uma das legislações laborais (herdadas da troika) mais nefastas para os trabalhadores? Deixámos de ter bancos “resgatados” ou rendas garantidas às empresas de Energia (por exemplo) ou Parcerias Público-Privadas altamente lesivas para o Estado e altamente lucrativas para o Privado?
E se os anos da “Geringonça” corresponderam a um certo “desanuviamento” da sociedade portuguesa, se no quadro duma certa expansão económica transversal à Europa, foi possível recuperar algum (que não todo!) dos rendimentos perdidos pelos trabalhadores nos anos de chumbo da intervenção da Troika, se foi possível baixar a taxa de desemprego ou subir o salário mínimo… a verdade é que agora, em face do choque da pandemia e da séria crise económica que se avizinha, se revelam todos os limites do reformismo em Portugal:
Continuamos a ser um país profundamente pobre, endividado, precarizado, desigual; um país subjugado aos ditames das instituições europeias, aos caprichos da economia mundial e à cupidez, rapina e miopia dos “nossos” capitalistas autóctones.
Contudo, nós não estamos destinados a viver de crise em crise. A última década não nos trouxe apenas uma sucessão de desgraças e desilusões. A ultima década trouxe-nos também as maiores mobilizações sociais do pós-25 de Abril. As manifestações da “geração à rasca”, contra a “Troika”, contra a “redução da TSU” (com que, na época, o governo Passos Coelho pretendia reduzir a pó a Segurança Social e as futuras reformas e pensões) trouxeram para a rua milhões de trabalhadores. Literalmente milhões de trabalhadores: estima-se que só na tarde de 15 de setembro de 2012 cerca de um milhão e meio de jovens e trabalhadores, por todo o país, tomaram as ruas em protesto contra a política da “Troika” e do governo. Foi a maior manifestação popular… de sempre!
Essa enorme explosão, essa força imensa do povo trabalhador, com uma direção e perspetiva revolucionária teria rapidamente derrubado o governo da Direita. Mas malgrado a ausência dessa liderança revolucionária e a canalização do protesto para o confronto puramente parlamentar, puramente institucional, a força do movimento popular daria ainda à esquerda o seu melhor score eleitoral em décadas! Em 2015 o PCP e Bloco de Esquerda somavam cerca de 20% do escrutínio popular, acumulando um milhão de votos e, com os seus deputados eleitos, ajudaram a dar posse a um governo PS.
Essa expectativa reformista dos dirigentes do PCP e do Bloco soçobrou já há uns meses atrás com a queda da Geringonça, a convocação das novas eleições e a penalização eleitoral destes partidos. Não é certo que os seus dirigentes tenham aprendido a lição dos seus erros e das suas ilusões… Facto é que, diante dos piores resultados eleitorais de sempre, as direções de ambos os partidos não acharam pertinente convocar os respetivos congressos para que escalpelizassem os erros, prescrevessem o remédio para tão fracos resultados e mobilizassem com renovadas energias, perspetivas e propósitos os seus militantes para os combates futuros! Porém, os jovens e trabalhadores deste país irão aprender rapidamente os limites que o reformismo (por mais bem-intencionado que seja) tem no quadro da crise capitalista.
Não estamos, por isso, destinados a viver de crise em crise! As perturbações que já se vivem e se avizinham despertarão a consciência de milhões! Cabe-nos aprender com os erros do passado, armarmo-nos com as ideias do socialismo revolucionário, cabe-nos (enfim) difundir essas ideias e métodos de luta entre os nossos sindicatos e partidos de classe, em Portugal e no mundo, forjando as ferramentas da nossa libertação.
Até porque uma das mais importantes lições da história é que se não formos capazes de derrubar o capitalismo, este sempre encontrará uma solução (por temporária e limitada que seja) para a crise do seu sistema, solução engendrada necessariamente à custa da exploração e da desgraçada dos trabalhadores.
Contudo, se a história recente do país nos demonstra a falência do capitalismo e os limites do reformismo, também nos releva a capacidade lutadora da classe trabalhadora. Saibamos nós ter a clarividência política de compreender que a criação duma vanguarda firmemente organizada em torno das ideias dum programa de transformação socialista da sociedade não se faz no calor dos acontecimentos, tem de ser preparada, organizada muito antes e que essa vanguarda é a “condição subjetiva” que nos basta para derrubarmos a árvore “apodrecida” do capitalismo.
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