Como tínhamos previsto, as eleições do dia 30 de janeiro deram a vitória a António Costa, que, para além disso, obteve a sua desejada maioria absoluta. Os dirigentes do PS parecem contentes por se terem livrado da influência “desestabilizadora” do BE e do PCP, uma alegria partilhada explicitamente pela burguesia portuguesa e internacional. Compreensivelmente, o pessimismo e a desorientação predominam nas fileiras da esquerda. Neste momento, o novo governo é um gigante de pés de barro que terá de confrontar-se com a crise económica, a polarização política e os novos desenvolvimentos da luta de classes. Um momento crítico também para a esquerda, a quem resta tirar conclusões sobre a experiência de colaboração com o PS, com vista a ultrapassar o impasse político atual.
A vitória do PS
O triunfo eleitoral do PS foi esmagador, com 41,5% dos votos e 119 deputados, ganhando em todos os distritos com excepção da Madeira. Importa, no entanto, pôr esta vitória em perspetiva. Pese embora a surpresa da maioria alcançada por António Costa, a verdade é que este se encontra, ainda assim, longe das maiorias de Cavaco Silva e José Sócrates em 1987 e 2005, respectivamente, mesmo com uma maior fragmentação parlamentar. Ou seja, longe dos níveis de estabilidade das décadas que precederam a crise de 2008. Embora de uma maneira distorcida e totalmente reacionária, o crescimento da Iniciativa Liberal (IL) e do Chega (CH) refletem o processo de polarização da população portuguesa. A abstenção persistente, que baixou em relação a 2019 mas que continua acima dos 40%, é também um sintoma da falta de confiança no sistema político do país e nos grandes partidos.
A vitória do PS reflete diferentes tendências. Após as convulsões políticas e sociais entre os anos de 2011 e 2015 e, sobretudo, depois da pandemia, existe um certo cansaço e uma procura de estabilidade entre algumas camadas da população, assim como ilusões numa recuperação económica. O PS parece oferecer esta estabilidade, combinando uma retórica de esquerda progressista com uma política de “responsabilidade fiscal” e “razoável”. Porém, esta atitude conservadora dos eleitores não é inevitável, mas é facilitada pelas vacilações e as incoerências do BE e do PCP e das suas políticas reformistas. De facto, o voto massivo no PS é mais um reflexo da desconfiança de amplos setores da população em relação aos outros partidos,tanto à direita como à esquerda, do que um sinal de entusiasmo pelo programa do PS. Em primeiro lugar, parece provável que as sondagens antes das eleições que assinalavam um crescimento do PSD tenham gerado uma tendência para o voto útil no PS, que, no nosso espectro político, é visto pela maioria das pessoas como um partido de esquerda. Esta é uma reação compreensível e que mostra que a maior parte da sociedade portuguesa se identifica mais com a esquerda. Em segundo lugar, o PS acumulou votos devido à desconfiança em relação ao BE e ao PCP, que é consequência das suas posições incoerentes ao longo dos últimos sete anos e, sobretudo, do chumbo do orçamento, que foi mal preparado politicamente.
Em qualquer caso, o resultado do PS é sem dúvida um volte-face aos seus “aliados” de esquerda. Como sublinhamos anteriormente, a maioria absoluta não respondia só às ambições políticas pessoais de António Costa, mas também às necessidades do capitalismo português. Este está mergulhado numa crise histórica, que a fraca recuperação dos anos 2015-19, e de 2021 após o choque inicial provocado pela pandemia, não permitiu ultrapassar. Apesar do crescimento económico dos últimos meses, a inflação descontrolada e o aumento constante da dívida pública, que já atingiu 135% do PIB, agravam os problemas estruturais da economia do país. A burguesia nacional e internacional, assim como a União Europeia, requerem um governo confiável e forte que possa implementar contrarreformas nas pensões, no mercado de trabalho e na negociação coletiva; que contenha os salários, baixe os impostos às empresas e mantenha a despesa pública sob controlo, cortando a despesa social. Porque, na verdade, a “solução” para a burguesia é colocar o fardo da crise em cima dos ombros dos trabalhadores, atacando as condições de vida da população, para assim aumentar os lucros e atrair capital. Recomendamos a leitura dos comunicados das organizações empresariais nacionais e internacionais após as eleições, para perceber as expectativas do grande capital. A dependência de Costa do BE e do PCP era um entrave para a implementação dessas medidas. Por trás das disputas partidárias, o pano de fundo do chumbo do orçamento significou a incapacidade do capitalismo português de oferecer quaisquer concessões perante as reivindicações mais básicas da classe trabalhadora.
A crise da esquerda
Após as eleições, é preciso fazer um balanço muito crítico da política do BE e do PCP, responsável por estes pobres resultados. Neste tipo de análise não estamos à procura de bodes expiatórios. Queremos, sim, retirar as conclusões necessárias que permitam o fortalecimento da esquerda. Durante quase sete anos, o BE e o PCP apoiaram o PS, estabelecendo mesmo um pacto de estabilidade conhecido como a “geringonça”. Este pacto entrou em crise no ano 2019, prelúdio da crise política de 2021, não por iniciativa do BE e do PCP, mas do próprio PS, determinado a livrar-se destes “aliados” incómodos. Qual foi a consequência desta política prolongada de colaboração? Por um lado, o PS assumiu uma estética de esquerda aos olhos da população. O BE e o PCP moderaram as suas críticas a António Costa. No “altar” da geringonça, foram sacrificadas as mobilizações e as greves. A luta passou das ruas para os corredores do parlamento. Por outro lado, a geringonça enfraqueceu o papel e o programa do BE e do PCP, diluindo as suas diferenças para com o PS. Perante a aparente sintonia entre estes partidos – não percebendo nenhuma diferença fundamental entre eles – e a ameaça da direita, muitos votantes penderam para o elemento mais forte do acordo, ou seja, o PS.
Em 2015, foi correto facilitar a tomada de posse de Costa para impedir um governo de direita. Contudo, foi um erro entrar numa aliança a longo prazo e assumir um compromisso de estabilidade. Foi um erro abrandar as críticas a Costa. E, sobretudo, foi um erro abandonar as mobilizações de rua, que teriam pressionado o governo. Em geral, os discursos complacentes do BE e do PCP sobre as conquistas da geringonça bateram de frente com a realidade portuguesa. Após quase sete anos de colaboração da esquerda com o PS, os trabalhadores portugueses deparam-se com os salários mais baixos da Europa Ocidental, em média €800 abaixo dos da vizinha Espanha, e com um aumento da pobreza de 2,2% em 2020/2021, afetando agora um quinto da população. Mas, ao mesmo tempo, o país é um paraíso para os ricos, com um aumento de 19430 do número de milionários só em 2020.
Ao longo dos últimos anos, esta atitude colaboracionista erodiu as bases do BE e do PCP. Mas a gota de água que condenou estes partidos ao fracasso foi a forma apressada como derrubaram o governo em outubro. Como já criticamos, essa decisão não foi preparada politicamente. Foi correto votar contra o orçamento, mas era preciso preparar essa tomada de posição, expondo as limitações do PS e a sua ligação à burguesia e agitando nas ruas a favor das reivindicações salariais e sociais do BE e do PCP. A rutura súbita do acordo com o PS gerou perplexidade entre a base social da esquerda. Passou-se de uma longa lua de mel a um divórcio repentino. Muita gente acreditou na demagogia de Costa, que culpou o BE e o PCP pela crise política. Isso colocou o BE e o PCP numa situação difícil perante as eleições antecipadas.
Durante a campanha, acreditávamos que era possível superar as dificuldades através de uma propaganda radical e estimulante que oferecesse uma solução socialista para a crise do capitalismo português e uma explicação para a rutura política. No entanto, nada disto aconteceu. O PCP evitou ao máximo falar desta questão e não explicou de forma clara que relação queria manter com o PS após as eleições. Preferiu, pelo contrário, limitar-se a uma campanha marcadamente económica, através de reivindicações materiais importantes mas insuficientes por si mesmas.
A classe trabalhadora tem consciência de que os salários e as pensões são baixos, de que o SNS está ao limite e de que os estragos provocados pela troika ainda se sentem. Porém, é preciso explicar como é que se vai resolver isto, ou seja, é preciso colocar as reivindicações económicas num contexto político e de luta de classes, explicando que há recursos para implementar as reformas de que a classe trabalhadora necessita, mas que esses recursos estão nos bolsos dos patrões.
É preciso colocar na ordem do dia uma perspetiva revolucionária, explicando que o socialismo não é o fraco reformismo do PS, mas uma sociedade radicalmente diferente onde os recursos não estão nas mãos de uma minoria, mas sim ao serviço das necessidades da maioria da população, em harmonia com a natureza e com a sua sustentabilidade, assegurando uma vida plena e digna para todas as pessoas, livre de exploração.
A campanha do Bloco conteve elementos positivos, como, por exemplo, a nacionalização das empresas estratégicas que foram privatizadas. Mas mesmo assim não foram além do quadro reformista de melhoria do capitalismo, ou seja, de tentar obter concessões para os trabalhadores sem atacar o princípio da propriedade privada. Contudo, a atitude dos dirigentes do BE em relação ao PS foi ainda pior do que a do PCP. Nos últimos dias da campanha, Catarina Martins dedicou-se a defender a possibilidade de uma reedição da geringonça! Perante isto, qual o sentido da queda do governo em outubro? Compreensivelmente, muitos dos eleitores do BE interpretaram esta atitude como simples cinismo. Isto explica a transferência massiva de votos do BE para o PS.
Durante a campanha, após o chumbo do orçamento de outubro, nem o BE nem o PCP explicaram claramente porque votaram contra, nem ofereceram nenhum balanço claro da experiência dos últimos anos. Por isso, muitos votantes de esquerda acreditaram na acusação do PS, que os culpou pela crise política, e castigaram os dois partidos nas urnas.
Estas críticas que fazemos são duras, mas necessárias. Após uma derrota desta magnitude, o debate torna-se fundamental. Convidamos os militantes do BE e do PCP a discutir estes resultados internamente. Os dirigentes de ambos os partidos têm de prestar contas aos seus membros, simpatizantes e eleitores. Não bastam explicações genéricas ou desculpas. É preciso analisar os erros e corrigi-los para que o BE e o PCP saiam deste impasse.
Os comentadores neoliberais esfregam as mãos perante o “colapso” do BE e falam do “envelhecimento” do PCP. Porém, a crise do BE e do PCP não é geracional, mas sim política. Estes partidos, adotando uma linha política correta, podem conquistar os jovens e os trabalhadores.
A direita e a ameaça do Chega
As eleições foram um duríssimo golpe para o PSD e o CDS. Rui Rio encontra-se agora numa situação insustentável, e é possível que o CDS desapareça após perder a representação parlamentar. É positivo que estes resultados tenham revelado que em Portugal a direita é fraca e que, perante a ameaça do regresso do PSD, amplos setores da classe trabalhadora se mobilizaram para o impedir. Porém, o aspeto negativo do declínio do PSD e do CDS é que muitos desses votos foram capturados pela IL e, sobretudo, pelo Chega, que se tornou a terceira força política, passando de um para doze deputados.
O Chega é uma ameaça que a esquerda deve combater sem tréguas. Porém, a batalha contra a extrema-direita, para ser efetiva, deve ser abordada com os métodos e os programas corretos e baseada numa análise clara. A extrema-direita, em Portugal e no resto da Europa, alimenta-se do desespero resultante da crise do capitalismo, sobretudo entre as camadas empobrecidas da pequena burguesia – isto é, lojistas, gerentes, donos de negócios, pequenos proprietários, etc. – mas também de alguns setores desmoralizados entre a classe trabalhadora. Todavia, o desespero destas camadas é o reflexo do fracasso da esquerda numa altura em que é fundamental oferecer uma saída clara desta crise orgânica do sistema capitalista. Em Portugal, os partidos de esquerda, por terem estado ligados aos governos do PS, são considerados como partidos de poder aos olhos dos setores mais frustrados.
A função social de André Ventura é aproveitar-se da frustração da população para dividir a classe trabalhadora, fragmentando-a em função da raça ou da identidade de género, entre outros, e canalizando o descontentamento contra os mais fracos, afastando desta forma a atenção para as questões de classe e protegendo assim os interesses dos ricos.
Ao mesmo tempo, a retórica anti-imigração de Ventura marginaliza e isola os imigrantes, criando uma camada particularmente vulnerável de trabalhadores sobre-explorados pelos patrões, com o objetivo de empurrar os salários de todos para baixo.
Não é suficiente criticar o Chega de uma perspetiva moralista. Só é possível combater a extrema-direita percebendo o seu caráter de classe: é preciso demonstrar sistematicamente a demagogia de Ventura, explicando que, apesar do seu discurso “radical”, o Chega apenas serve os interesses dos ricos e não tem solução nenhuma para os problemas dos trabalhadores. É um partido que serve apenas para desviar o descontentamento social numa direção segura para o sistema capitalista. Ao mesmo tempo, é necessário propor uma alternativa revolucionária e de classe, que ofereça uma saída dos horrores do capitalismo.
O êxito da IL também é preocupante. Se o Chega divide os trabalhadores segundo linhas raciais, a IL procura a atomização em termos individualistas, explorando a frustração contra o “socialismo” do PS e da geringonça. É um partido que reflete, de forma distorcida, o beco sem saída onde se encontra o capitalismo português, propondo um programa aberrante de privatizações selvagens e desregulação agressiva. Temos de explicar o que é o verdadeiro socialismo e distingui-lo das políticas reacionárias do PS.
Costa: um gigante com pés de barro
António Costa e a classe capitalista portuguesa estão muito contentes com a maioria absoluta do PS, que é todavia um gigante com pés de barro. Os patrões estão satisfeitos porque o Governo pode agora implementar contrarreformas a favor dos capitalistas sem impedimentos parlamentares. No entanto, fora do parlamento existe um obstáculo importante para estas medidas, muito mais determinado e capaz do que os deputados do BE e do PCP: o movimento dos jovens e dos trabalhadores.
Durante os últimos anos, as esperanças depositadas na geringonça e a insistência da parte do BE e do PCP de que eram possíveis conquistas para os trabalhadores por via do reformismo facilitaram uma prolongada paz social nas ruas de Portugal. Isso agora mudará, uma vez que Costa já não tem a proteção da esquerda. Este governo do PS irá intensificar as suas medidas reacionárias, o que inevitavelmente provocará uma reação nas ruas. É preciso que BE e PCP tirem as conclusões necessárias dos últimos anos e que promovam uma mobilização incessante contra todas as medidas retrógradas que o PS vai tentar implementar.
Porém, o futuro da luta de classes em Portugal não pode depender da boa vontade dos dirigentes do BE e do PCP. É necessário organizarmo-nos numa corrente Marxista, que empregue a poderosa ferramenta do materialismo dialético para analisar e mudar a realidade, levando o programa do socialismo revolucionário a todas as lutas, aos sindicatos e aos partidos da esquerda. É isso que procuramos no Colectivo Marxista. Junta-te a nós e luta pela revolução!
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